O Islão é um assunto complexo e não foi minha intenção aprofundar, não tenho tempo para isso. Fiz algumas leituras sobre o assunto, pois a série sueca Kalifat, sobre a qual escrevi aqui, suscitou-me reflexões e dúvidas várias. Então aproveito para deixar as notas aqui no blogue, podem sempre ser úteis a mais alguém que veja Kalifat.
A palavra "califado" em árabe significa escolha de um sucessor, um líder para os muçulmanos ou o sistema de governo iniciado após a morte do profeta Maomé. O último califado foi o Império Otomano, e foi abolido pelo nacionalista e secular líder turco Mustafa Kemal Ataturk, em 1924. Ataturk, além de líder militar e combatente, foi um completo reformista transformando a Turquia dos califados numa nação moderna. O ISIS evolui no Iraque a partir da Al Qaeda (que quer dizer "A base" ) e expande-se para a Síria, (Levante) em 2013 aproveitando o caos da guerra civil ali instalado. O objectivo era fazer reviver o "califado " como organização religiosa e política, ambicionando então tornar-se o líder dos muçulmanos, uni-los segundo o modo original de viver o Islão. O Estado Islâmico é então regido pelo autoproclamado califa Abu Bakr al-Bagdadi, dois vices e alguns conselheiros, que auxiliam com questões de diferenças religiosas, execuções e assuntos políticos.
O ISIS visou desde logo atrair mais recrutas e expandir o seu poderio. Através da violência e de muita propaganda que alcançou o mundo inteiro através da internet, a sua ferramenta de eleição, jovens homens e mulheres ficaram fascinados com a promessa de uma vida na Síria ou então com a glória do martírio, ou com as ideias do Islão Primeiro foram apenas homens que deviam combater, mas depois também mulheres. Às mulheres atraídas à Síria não era solicitado que pegassem em armas, elas serviriam na rectaguarda: apoiariam moralmente os seus maridos guerrilheiros, cuidariam das suas feridas de guerra, e dariam à luz os seus filhos, que educariam dentro da religião, para mais tarde, também eles, ou elas, servirem o Estado Islâmico.
Em 2013, Raqqa, a cidade no norte da Síria onde parte da série acontece, foi controlada por forças leais ao presidente sírio Bashar al-Assad, depois passou para as mãos da oposição síria (não vou falar da
guerra civil que começou em 2011, dura há 10 anos, e que provocou enorme destruição e um dos maiores êxodos recentes de refugiados e que foi aproveitada pelo Estado Islâmico para também invadir e conquistar) e depois foi tomada pelo ISIS, sendo então a capital do seu califado. Serviu como sede do poder para o Estado Islâmico do Iraque e al-Sham (ISIS) por quatro anos, desde 2014. Tornou-se um verdadeiro símbolo: a capital do Estado Islâmico. Durante esse período aconteceram toda a espécie de crimes de guerra e contra a humanidade, tortura e mortes de quem ousasse opor-se-lhe. Através da violência brutal o Estado Islâmico pretendia demonstrar que a sua vitória seria inelutável, o califado estender-se-ia sobre o Ocidente corrupto e corrompido e sobre os estados moderados que se haviam deixado relaxar na observação dos mandamentos do Islão. Rússia, Irão, Qatar, Arábia Saudita, Turquia e os Estados Unidos, apoiaram grupos para recuperar o poder e libertar a cidade, mas em vão.
Finalmente uma campanha militar da coligação (Reino Unido, França e outros) liderada pelos Estados Unidos conseguiu expulsar o Estado Islâmico em Raqqa, Síria, mas matou e feriu milhares de civis. Quatro meses de bombardeio reduziram casas, empresas e infraestrutura a escombros. Hoje a cidade de Raqqa está livre do ISIS mas há quem tema o retorno do extremismo. Apesar de considerado derrotado pelas Forças Democráticas Sírias em 2019, os seus guerrilheiros continuam activos em vários pontos da Síria e a aterrorizarem a população, como é relatado neste
vídeo. Durante quatro anos de governo do EI, as crianças, foram educadas nas linhas do islamismo extremo e se não lhes derem uma educação e um horizonte de vida, acabarão por se tornar guerrilheiros. A derrota do Estado Islâmico não significa que a ameaça às sociedades democráticas que eles consideram decadentes tenha diminuído: a internet é agora o espaço onde o seu "califado" continua a crescer.
O número de adeptos do Islão tem crescido mais do que qualquer religião. As conversões são simples. O processo nada tem de formal: basta uma simples declaração em que o candidato testemunha que só Alá pode ser adorado e que Maomé é o seu mensageiro. É o que basta para alguém se tornar muçulmano. Deve então praticar a
jhiad , a busca constante pela submissão completa aos preceitos da religião, de acordo com o Alcorão: é neste livro sagrado que estão as revelações feitas por Deus através do anjo Gabriel ao profeta Maomé. Por extensão dos radicais,
jhiad passou a ser também a luta armada contra o infiel, o descrente em Alá, que justificam com uma passagem do Alcorão embora esta pudesse ter sido interpretada no sentido de mera conversão sem recurso à força bruta. Segue-se a prática das rezas como prova da submissão a Alá, cinco vezes por dia, o jejum (comida e outros prazeres) no nono mês do calendário islâmico, do nascer ao pôr do sol, e uma vez na vida a peregrinação a Meca, na Arábia Saudita.
Sunitas, mais tradicionalistas, e xiitas, são as duas correntes que, após a morte do profeta Maomé, conflituaram quanto à sucessão de Maomé, o califado, que é motivo de divergência entre ambos. Sunitas são maioritários e são mais moderados do que os xiitas na interpretação da Suna (a prática do profeta, os ensinamentos reunidos por alguns de seus seguidores ), livro que complementa o Corão, e da Sharia (a lei islâmica). O Irão é mais xiita, conduzido pelo clero islâmico, por exemplo, Khomeini defendia o retorno à "pureza inicial" do Islão nos tempos de Maomé mediante um governo teocrático, em que a política e a religião se fundem. O Paquistão também, mas mais moderado. Já a Arábia Saudita é sunita e muito rigorosa na observação dos preceitos islâmicos. A Turquia é um estado laico embora de maioria muçulmana maior abertura religiosa, separando o Estado da religião. Existem, portanto, modos diferentes de viver o Islão.
A brigada feminina Al-Khanssaa publicou um manifesto em 2015 cujo propósito era atrair mais mulheres, depreende-se sobretudo as árabes, por não ter sido difundido traduzido, à causa do Estado Islâmico. Li a tradução de Charle Winter. O objectivo era clarificar o papel da mulher e a vida desejada para ela. Espelha a mentalidade de quem aceitou o plano do Califato. Foi importante porque o que se sabia sobre isto vinha das mulheres ocidentais que tinham sido recrutadas e que estavam nas redes a recrutar, dourando a vida que levavam no território, falando de aventura. Ao mesmo tempo critica o Ocidente e os seus aliados, como inimigos da castidade e da pureza.
Por todo o Manifesto, escrito por mulheres que policiam mulheres, a ideia de que as mulheres devem ter uma vida sedentária, sendo essas as que melhor compreenderão o que o Estado Islâmico pretendia. O Ocidente, em vez de adorar Deus, único fim para que Deus criou o homem, distrai-se a pesquisar ciências sem interesse porque não trazem benefício espiritual, e a entregam-se ao materialismo: o homem decora este mundo para que ele pareça um paraíso pois não acredita no Paraíso. Os muçulmanos seguem estas falsidades e desviaram-se do caminho. As ciências de que os muçulmanos precisam, por exemplo, a medicina, a construção, a agricultura, é que devem ser seu objecto de estudo, não aquelas.
Atacam a crescente ausência de barreiras entre os dois sexos, que está a destruir a sociedade Ocidental. O homem ocidental não é um homem real, não é masculino que chegue, deixa que a mulher faça o papel dele, e assim não permite que a mulher seja como deve ser. Não há maior responsabilidade para a mulher do que ser esposa. O homem não deve usar a sua força para magoar pois o muçulmano deve proteger o fraco. O dever divino de toda a mulher é a maternidade. O Ocidente libertou as mulheres e falhou. A mulher tem de ser sedentária e estável, nem à mesquita vai rezar, O homem é que está em movimento, essa é a sua natureza. Caso contrário, a sociedade colapsa enganada por ideias de progresso e desenvolvimento. No Ocidente o trabalho doméstico não é trabalho, a educação é que é precisa. Sim, a mulher precisa de saber ler e escrever, acerca da sua religião, não precisa de ir para longe estudar para provar que é superior ao homem. Se uma mulher for iletrada e ignorante não pode desempenhar a sua função: entre os sete e os quinze anos devem ser educadas para o sedentarismo, estreitamente ligado ao casamento, que pode acontecer a partir dos nove anos. Entre os cinco e os nove estuda a lei islâmica, religião, aritmética, árabe falado e escrito, contabilidade e ciências da natureza. Dos dez aos doze, mais leis e religião, regras do casamento e do divórcio, e manualidades como os têxteis, tricot e cozinha. Dos treze aos quinze, estudam a Sharia e como educar crianças, menos ciências e mais história islâmica - da vida do Profeta e seus seguidores.
Coberta, tapada, é o que é melhor para ela, e assim deve contribuir para a sociedade, para o Califado, na rectaguarda. O Ocidente desvirtua a mulher que cede à moda com adornos, fazendo plásticas. A mulher poderá, no entanto, sair de casa em certos casos: para estudar teologia, se quiser ser professora ou médica, ou para lutar, se autorizada, em caso de grande necessidade. No Ocidente a mulher estuda por longo tempo e adia o casamento, isso não é bom. Ter um emprego remunerado é coisa dos homens, para isso ele tem um corpo e um cérebro, e é assim que cuidará das mulheres. A igualdade ocidental entre homens e mulheres só lhes trouxe transtornos. Nem liga ao facto delas terem "complicações mensais" e gravidezes, tendo de trabalhar e descansar como se fossem homens. Se por alguma razão forçosa a mulher tiver de trabalhar fora de casa, o trabalho tem de ser leve, só alguns dias e não ocupar o dia todo, deve cuidar das necessidades do marido, ter dois anos de licença de maternidade...tem de se cuidar da sua casa e crianças. Se não se portar bem, claro que pode ser punida.
O Manifesto terminava com a descrição de casos de vida de mulheres a viverem em Mossul, no Iraque, ou em Raqqa, na Síria, ou na Arábia Saudita, criticando-se as liberdades aqui dadas, o decepcionante modelo de vida islâmico do governo apóstata, onde mulheres e homens convivem e trabalham lado a lado, não estão separados "nem por uma folha de papel", e apelando a que venham viver para a Síria onde poderão experimentar o verdadeiro Islão.
O número de adeptos do Islão tem crescido mais do que qualquer religião e o número de muçulmanos no mundo excede o de qualquer outra religião. Os extremistas são uma minoria mas têm grande capacidade de penetração. Costumo pensar que estão para o Islão como os hooligans para o futebol, por muitos considerado uma espécie de religião. As conversões são simples. O processo nada tem de formal: basta uma simples declaração em que o candidato testemunha que só Alá pode ser adorado e que Maomé é o seu mensageiro. É o que basta para alguém se tornar muçulmano. Deve então praticar a
jhiad, a luta, a busca constante pela submissão completa aos preceitos da religião, de acordo com o Corão. A
jhiad também é entendida como a luta armada contra o infiel, o descrente em Alá. O Corão fala dela podendo também ser interpretada no sentido de mera conversão sem recurso à força bruta.
Os cinco pilares da fé islâmica são os seguintes: A
Chahada ou os dogmas da fé em Deus, e de que Maomé é o mensageiro de Deus, além dos Anjos, - Gabriel ditou os ensinamentos divinos a Maomé - e nos Livros Sagrados (Salmos, Tora, Evangelho e Corão), nos Profetas, na Predestinação, na ressurreição, no dia do Juízo Final. A
salah ou oração, que é feita cinco vezes ao dia a certas horas. A
Zakat ou caridade obrigatória, que cada muçulmano retirada do lucro líquido do rendimento anual, quando pode. O jejum no mês sagrado do Ramadão (
Saum) para todos os que atingem a puberdade. A peregrinação à cidade Sagrada de Meca (
Haj) pelo menos uma vez na vida, também só para quem tem posses.
A Lei Islâmica (Sharia) baseia-se em quatro pontos, designadamente, o Corão que contém as tradições do Profeta; o Ijmá e o Qiyas, que são tradições do Profeta transmitidas por palavras, gestos e acções. O seu conjunto é o que se chama Hadice. O Ijmá é o consenso dos teólogos juristas islâmicos e que é completada com o Qiyas, que é uma interpretação por analogia, da religião. A Sunna é o caminho seguido pelo Profeta que os crentes devem seguir. A comunidade de crentes chama-se Umma. Os intérpretes da lei islâmica defendem a unidade da religião e os Imãs dirigem as orações e o culto.
A crença baseia-se no Deus, nos profetas em que os judeus e os cristãos também creem (Abraão, Moisés, David, etc), sendo Jesus o penúltimo deles, no mesmo Céu e Inferno dos judeus e dos cristãos.
Sunitas, mais tradicionalistas, e Xiitas, são as duas correntes que, após a morte do profeta Maomé, conflituaram quanto à sucessão de Maomé, o califado, que é motivo de divergência entre ambos. Sunitas são maioritários e mais moderados quanto ao Islão do que os xiitas na interpretação da Suna, Alcorão, e da Sharia (a lei islâmica). Os Xiitas não seguem literalmente a Sunna. Estes seguem o genro do Profeta que é Ali, e repartem-se em treze outras seitas, como a do dozismo (doze imãs), o septismo (sete imãs), o pentismo (cinco imãs). Estão espalhados pelo Iraque, Líbano, Afeganistão, Síria, Golfo Pérsico, Índia, Irão, África Oriental e Iémen, e são uma minoria.
O Islão deriva directamente de Deus. A Lei Divina foi revelada pelo Profeta e regula o modo de vida dos muçulmanos de forma completa. Tanto pode ter regras sobre orações como sobre política e leis. A Sharia é a lei divina que se completa com a Sunna/Hadice (as acções e ditos de Maomé Ijmá e Qiyas.) A Sharia foi elaborada à parte e interpretada por escolas jurídicas, os Mazaib: Hanafi, Maliqui, Shafi e Hanabila (para Sunitas) e Jafari (para Xiitas) .
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