Série Califado/Kalifat: opinião sobre a 1ª temporada
O texto contém spoilers!
Muitas jovens ocidentais foram recrutadas pelo Estado Islâmico, umas muçulmanas e outras que se converteram. Kalifat mostra como se processa a "radicalização" de jovens muçulmanas que vivem na Suécia e ao mesmo tempo a preparação de um grande atentado terrorista no país. Permite perceber um pouco da estratégia que culmina em fugas para o Médio Oriente que deixam familiares e amigos amargurados. Nem todas as mulheres vão por vontade própria. Muitas contam histórias de terem viajado com os maridos até à Turquia e de repente encontram-se a viver na Síria. Califado/Kalifat, conta com excelentes interpretações, em especial da actriz e actor que compõem o casal que vive em Raqqa, na Síria, e suficiente drama, reviravoltas e suspense para justificar um thriller capaz de nos prender no sofá.
Um outro, segue a linha de uma investigação, através de Fátima, uma oficial de inteligência do Säpo em Estocolmo que caiu em desgraça no seu departamento e que deseja recuperar o seu estatuto reunindo evidências para construir um grande caso. Pervin menciona um atentado em preparação e Fátima tenta ajudar-se enquanto ajuda Pervin, mas chega a ser quase cruel com a sua fonte: Pervin só a muito custo e sobe enorme risco vai conseguindo migalhas de informação que se pouco servem a Fatima, que segue todas as pistas de forma incansável. Este processo vai ter consequências assinaláveis para ambas: Previn mata um homem e outra vê morrer uma amiga e de repente também ela tem de se esconder para evitar ser presa.
Esta história tem muitos pontos de contacto com a de Ângela Barreto, conhecida como "noiva do Daesh", acrónimo em árabe do Estado Islâmico. Esta jovem vivia na Holanda, onde diz que se sentia odiada por usar burka, até que um dia conhece, na Internet, o português Fábio Poças, natural de Sintra. Fábio queria ser jogador de futebol, mas Alá reservava-lhe outros planos: convertido ao Islão radical, sem nada revelar à família, acabou na Síria a combater e a treinar recrutas do Estado Islâmico. A sua missão de vida passou a ser combater os opressores de Alá e ajudar a implementar a sharia — a lei islâmica que não parece compatível com a vida em democracia. Ângela parte para Raqqa e casa com Fábio aos 19 anos. O marido morre e ela casa de novo, como é habitual pois as mulheres precisam de um homem que as proteja e cuide. O casal foge dali com os filhos e acompanha os extremistas até ao último reduto dos jihadistas, Baghouz, quando as forças da coligação se uniram para libertar Raqqa. A filha pequena é ferida e acaba por morrer. Por essa altura já estava detida e separada do marido, num campo controlado pelos curdos, um amontoado de tendas brancas sobrelotadas, com pouco de tudo, higiene, cuidados de saúde, comida, privacidade, e onde os conflitos entre as mulheres são frequentes.
Os criadores são Wilhelm Behrman, com experiência jornalística, e Niklas Rockström, argumentista. A série desenvolve-se em três enredos. Tudo é desencadeado pelo facto de uma amiga perseguida pela Al Al Kansaa, uma brigada feminina armada que policia o cumprimento religioso por parte das mulheres, por exemplo se saírem descobertas ou desacompanhadas, ter deixado com Pervin o telemóvel que possuía e que era proibido. O enredo mais cativante é o centrado nela, uma mulher muçulmana sueca que fugiu para a Síria e que agora não resiste a pedir ajuda para voltar ao seu país. Pervin é casada com Hosam, também sueco muçulmano, têm uma bebé de meses. Pervin e Hosam são personagens fascinantes e só por eles vale a pena ver a série. O casamento deles não é um de total subjugação da mulher a um homem embora esteja longe de ser perfeito. Ela, a mulher frágil que nem sabia que era tão forte, e ele, é o homem forte que no fundo é frágil. Hosam vive atormentado por ter morto crianças. não consegue servir a brigada militar de que faz parte como gostaria, sente-se inferiorizado, teme a morte, vive dividido entre o seu amor por Previn e a devoção ao Islão.
Um outro, segue a linha de uma investigação, através de Fátima, uma oficial de inteligência do Säpo em Estocolmo que caiu em desgraça no seu departamento e que deseja recuperar o seu estatuto reunindo evidências para construir um grande caso. Pervin menciona um atentado em preparação e Fátima tenta ajudar-se enquanto ajuda Pervin, mas chega a ser quase cruel com a sua fonte: Pervin só a muito custo e sobe enorme risco vai conseguindo migalhas de informação que se pouco servem a Fatima, que segue todas as pistas de forma incansável. Este processo vai ter consequências assinaláveis para ambas: Previn mata um homem e outra vê morrer uma amiga e de repente também ela tem de se esconder para evitar ser presa.
Outra história contempla Al Musafir (O Viajante), um jovem assistente escolar (Ibbe para os amigos) que recruta noivas para o islão, "radicalizando" duas irmãs: Suleika, é uma jovem culta, independente mas cuja revolta Ibbe alimenta com propaganda anti- ocidental , e Lisha, a irmã mais nova. Além delas há a amiga Karima, que acabará por pagar com a vida a grande ilusão em que acreditou. Ao mesmo tempo, Ibbe estabelece contactos diversos e operacionaliza um complexo ataque terrorista na Suécia. Para isso conta com um duo de irmãos suecos: o mais velho, perigoso, converteu-se ao islão na prisão e o mais novo, com problemas mentais, seguiu-o no caminho do martírio.
Ibbe, é hábil, brinca com a mente das jovens com elas construindo relações de cumplicidade e confiança, baseadas no seu carisma e atração. Ele parece treinado em detectar certas características, descontentamento, sentimentos de marginalização, de inutilidade, fragilidades emocionais, que depois explora para estreitar laços que lhe permitem chegar a treinar verdadeiros soldados do islão.
Ibbe, é hábil, brinca com a mente das jovens com elas construindo relações de cumplicidade e confiança, baseadas no seu carisma e atração. Ele parece treinado em detectar certas características, descontentamento, sentimentos de marginalização, de inutilidade, fragilidades emocionais, que depois explora para estreitar laços que lhe permitem chegar a treinar verdadeiros soldados do islão.
As famílias das vítimas de Ibbe podem, ou não, ser disfuncionais: a família síria está bem integrada na Suécia mas as duas filhas estão revoltadas e eles incapazes de lidar com o problema delas: as miúdas acreditam que a Suécia não lhes dá liberdade e que só na Síria poderão finalmente viver em conformidade com a sua fé sem serem acusados de racismo. Contrariamente, o pai de Karima parece ser um manifesto abusador, talvez alcoólatra, dado a violências. Já a mãe dos dois rapazes-soldados parece considerá-los como dois empecilhos e só os quer longe da vista.
Em parceria com Ibbe, uma jovem muçulmana mostra às jovens fotos de uma cidade e de um estilo de vida que não existe, convencendo-as de que a vida em Raqqa é um sonho: o islão é o paraíso. E que ser viúva de um mártir é uma honra para todas as mulheres. Mais do que convencidas estas jovens são iludidas, manipuladas. A irmã mais jovem das irmãs nada sabe sobre o islão, mas acaba por reagir como se o seu cérebro tivesse sido formatado, mesmo depois de alcançada a Síria ser vendida para casar e de perceber a vida que efectivamente a aguarda. No caso destas três raparigas houve o contacto físico com um recrutador, mas muitas são aliciadas online e acabam por se radicalizar sem sair dos seus quartos, onde passam o tempo a assistir a propaganda bem elaborada ou a conversar com recrutadores ou em grupos de partilha de experiências onde o extremismo é normalizado: são chamadas "bedroom radicals".
Até ao último instante Califado/Kalifat reserva-nos algumas surpresas e quando termina deixa algumas questões que podem ser a ponte para uma 2ª temporada. Apesar de tudo o que se vê nesta série ser mais ou menos do conhecimento comum, já que não faltaram notícias ao longo da guerra da Síria sobre estes "recrutamentos", que também sucederam em Portugal, a conjugação das três histórias, com os seus focos geográficos diferentes e etapas de tensa concretização, resulta numa série cativante quer para o público adulto, quer para o mais jovem.
O realizador luso-brasileiro Sérgio Tréfaut está a rodar um filme no Curdistão, "A Noiva", algo semelhante ao argumento da série e que diz ser inspirado em histórias reais de raparigas que se juntaram a combatentes pelo autoproclamado Estado Islâmico. O filme é sobre uma adolescente europeia, de famílias cristãs, e que, segundo a sinopse divulgada ela foge de casa para casar com um guerrilheiro do Estado Islâmico. Três anos mais tarde a sua vida mudou dramaticamente e vive num campo de prisioneiros no Iraque. É viúva de dois guerrilheiros, mãe de dois filhos e está gravida outra vez. Em breve será julgada em tribunal.
Esta história tem muitos pontos de contacto com a de Ângela Barreto, conhecida como "noiva do Daesh", acrónimo em árabe do Estado Islâmico. Esta jovem vivia na Holanda, onde diz que se sentia odiada por usar burka, até que um dia conhece, na Internet, o português Fábio Poças, natural de Sintra. Fábio queria ser jogador de futebol, mas Alá reservava-lhe outros planos: convertido ao Islão radical, sem nada revelar à família, acabou na Síria a combater e a treinar recrutas do Estado Islâmico. A sua missão de vida passou a ser combater os opressores de Alá e ajudar a implementar a sharia — a lei islâmica que não parece compatível com a vida em democracia. Ângela parte para Raqqa e casa com Fábio aos 19 anos. O marido morre e ela casa de novo, como é habitual pois as mulheres precisam de um homem que as proteja e cuide. O casal foge dali com os filhos e acompanha os extremistas até ao último reduto dos jihadistas, Baghouz, quando as forças da coligação se uniram para libertar Raqqa. A filha pequena é ferida e acaba por morrer. Por essa altura já estava detida e separada do marido, num campo controlado pelos curdos, um amontoado de tendas brancas sobrelotadas, com pouco de tudo, higiene, cuidados de saúde, comida, privacidade, e onde os conflitos entre as mulheres são frequentes.
Existem mais três mulheres com documentos portugueses nos campos de refugiados. E também crianças cujos pais portugueses combatentes morreram. Mulheres europeias como Ângela são consideradas uma ameaça para a segurança nacional e os estados de origem não as querem de volta. Desde 2015 que a Holanda emitiu um mandado de captura internacional por pertencer a uma organização terrorista e suspeita de recrutar jovens holandesas para se juntarem ao grupo jihadista na Síria. O seu novo marido, Nero Saraiva, também foi preso no Iraque e vai ser extraditado para Portugal onde será julgado pelos crimes de adesão, financiamento e recrutamento para uma organização terrorista. Posteriormente, a luso-descendente conseguiu alcançar a capital turca depois de fugir do campo de Al Hol, onde esteve detida. Acabou por ser presa na Holanda, ao sair do avião, em Janeiro deste ano. O julgamento está a decorrer ou começará em breve. Não percebo como é que uma mulher para ser muçulmana tem de escolher ser radical e quanto mais leio sobre o assunto menos percebo.
Nunca vi uma mulher vestida com uma abaya , nome dado à burka pelos árabes, tradicionalmente pretas, e com o rosto coberto pelo niqab, o véu que lhe cobre a cara e apenas revela os olhos, mais o lenço que envelopa a cabeça. Nem de luvas pretas que vemos Previn colocar quando resolve fugir com a sua bebé. Esta cobertura terá sido mais um dos mandamentos do Profeta. Os homens que não sejam família de sangue ou por via do casamento, não podem ver o corpo feminino, e as vestes também não podem moldar a sua silhueta. Curiosamente o véu começou por ser um símbolo erótico do Oriente - as dançarinas de véu fazem parte do nosso imaginário sobre essas terras longínquas - e agora tornou-se um símbolo de opressão. Por toda a Europa há problemas com o uso do véu, desde alunas impedidas de frequentar aulas, a funcionárias despedidas, ou atletas que são impedidas de jogar de véu e com os braços tapados, etc. Mas também existem muitos casos de tolerância. Na minha escola primária havia um cruxifixo na parede da sala de aula, mas foram removidos depois do 25 de Abril. Os símbolos religiosos levantam problemas em sectores públicos mas ao mesmo tempo atende-se à diversidade cultural porque o país é laico, mesmo se isso faz com que surjam incómodos entre os cristãos, ou apenas entre aqueles que não suportam os muçulmanos, que sempre acabam por dizer que no Oriente seriam obrigados a andar de véu, pelo que aqui deviam remover o trapo da cabeça.
O hijab é o dress code feminino do Islão: só mãos e cara podem ser mostradas. Mas também se refere a uma peça de roupa que apenas deixa ver a cara, escondendo cabelos e peito. O modelo largo está a ganhar terreno, que tapa os cabelos, o pescoço e os ombros, ajusta-se por volta da face do rosto, passando por baixo do queixo. Umas usam a peça mais solta, outras mais justa. A variedade do hijab é muita. varia de acordo com o território, e dentro desse mesmo território, dentro e fora de casa, etc. Deixo um link para pesquisarem o que a muçulmana veste hoje. A loja vende roupa nos estilos de Marrocos, Turquia, Jordânia, Arábia Saudita e Paquistão.
Tudo vem do hábito, do costume e da prática, bem sei. Para nós o hijab é um símbolo de submissão. Mas para muitas dessas mulheres o seu uso nesses territórios significa que são modestas e castas, funciona como protecção contra o assédio sexual, e elas aceitam essa justificação. Outras afirmam que o véu faz com que sejam apreciadas não pela sua aparência mas qualidades intrínsecas. Como o Islão promove uma separação entre homens e mulheres, o uso de véu permite às mulheres conviver na esfera pública com eles ou nunca poderiam sair de casa. Mas hoje também o vestem na Europa como prática de afirmação muçulmana, sinal de um certo poder perante um Ocidente cujos valores querem assim criticar se forma simbólica, à medida que se deslocam para o nosso espaço geográfico, onde além de circularem na rua, ocupam lugares profissionais variados.
Mas usar um véu, um lenço, que até pode ser colorido, bordado, enfim, uma peça que até é gira, - vejam o link abaixo - não muito longe da forma que tantas avós nossas usaram e até as nossas mães nos anos 50, não é o mesmo que vestir de negro da cabeça aos pés e só mostrar os olhos. Não entendo como podem fazê-lo a não ser por obrigação, tal como também não entendo certas modas ocidentais. Podem as mulheres aqui não ser obrigadas a usar isto ou aquilo mas são também iludidas pela máquina da moda. Acaba por ser também uma espécie de submissão, fruto de manipulação psicológica. Evidentemente, que nunca é o mesmo. E em países como a França, onde os ataques dos extremistas e os problemas de convivência são agudos, o uso de um traje negro, que dificulta a identificação pessoal de quem o usa, levanta questões que não podem ser pura e simplesmente ser ignoradas.
Em Lisboa a comunidade muçulmana é numerosa, - o primeiro e maior grupo de imigrantes muçulmanos
vieram da Guiné Bissau e de Moçambique depois do 25 de Abril - mas ainda assim pouco significativa, e sobretudo pacífica. Por alguma razão o nosso país não é atractivo para os muçulmanos como a Suécia o foi, nem a outra realidade dos "recrutamentos" femininos - que a série mostra - ou masculinos nos tocou em larga escala, ainda que os casos conhecidos não deixem de ser preocupantes. Talvez seja por isso que Califado/Kalifat não ganhou grande popularidade entre nós quando na Suécia se tornou uma das séries mais vistas. Mas o Islão já assentou arraiais na Península Ibérica: os muçulmanos estiveram no Al-Andalus, ou seja, na Andaluzia, até ao séc. XII, e deixaram-nos e aos espanhóis, o seu legado.
Algumas leituras extra!
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