Séries no Netflix: opinião sobre Fauda, a 1ª temporada


Calhou ter visto recentemente a 1ª temporada da série Fauda que já vai em três temporadas. As acções das suas personagens são ficcionadas mas ancoradas em experiências reais que foram presenciadas ou vividas pelo par de argumentistas no seio do conflito israelo-árabe, um enquanto jornalista e o outro enquanto membro de uma unidade contraterrorista israelita. Quando vi a série fiz um apanhado à história conturbada daqueles territórios, aliás, ela não fornece qualquer pista quanto a isso, talvez porque seja de todos os israelitas e palestinianos conhecida, e porque a série foi feita a pensar nesses antes de ser distribuida pelo Netflix, ou porque o seu foco é o mero entretenimento.

Há spoilers a seguir...

Em FaudaTaufiq Hammed (Hisham Sulliman) uma lenda do Hamas, um líder a quem chamam "Pantera", julgado morto há meses por Doron, operacional do exército israelense, prepara-se para executar um grande golpe contra Israel e o seu nome aparece durante um interrogatório. Doron Kavillio (Lior Raz), que tinha deixado a vida militar para se dedicar à produção vinícola, regressa então à unidade contraterrorista israelita para lhe dar caça e terminar o assunto que deixara inacabado e não sabia. Esta unidade é semelhante às unidades do exército israelita, em especial dos Mistaravim, ou seja operacionais "disfarçados de árabes", que se fazem passar por Palestinianos para se aproximarem dos alvos. A localização dos acontecimentos e a visão da geografia da Cisjordânia ou de Israel chega-nos através de filmagens de drones que mostram o território visto dos céus, a tecnologia está sempre presente, com a unidade a socorrer-se de meios informáticos e telemóveis para as suas missões, evidenciando meios bélicos e tácticos superiores aos dos Palestinianos.

Fauda tem sido elogiada por ser realista mas em alguns momentos, foi como se estivesse a ver a encarnação israelita de Jack Bauer, embora Doron seja menos sensacionalista. Jack Bauer era um agente contraterrorista americano, uma personagem 100% ficcional, que não olhava a meios para conseguir alcançar os fins, agindo frequentemente à margem da lei. O fantasma de Bauer apareceu ao de leve no primeiro episódio mas materializou-se quando Doron manda raptar a filha de Abu e depois lhe coloca - e ao Sheikh Awdallah - um cinto de explosivos à cintura. Perante uma situação dessas, creio eu que em qualquer força de intervenção do mundo seria de esperar que o agente fosse chamado para dar explicações. Aqui não, ou por conveniência da intriga ou porque nos quiseram mostrar que o exército israelita é capaz das maiores atrocidades e beneficiar de impunidade. Ou porque fazer justiça é difícil quando quem manda nesses subordinados tem um passado sujo que a qualquer momento pode ser usado para chantagem e bloquear decisões. Doron está longe de ser um agente modelo. Doron é Fauda porque Fauda em árabe quer dizer caos e o homem é exímio a lançar o caos: não lhe é fácil cumprir ordens e quando resolve tomar a iniciativa, nem sempre corre bem.

A unidade é também ela um caos: um soldado israelita diz que eles são treinados para atacar como os cães: é por instinto, a razão não existe mais, daí serem capazes de torturar. Entre eles, estão longe de ser disciplinados, são antes quezilentos, normais, alguns com passados duvidoso, sem grandes contemplações morais nem éticas nas suas vidas, em especial, privadas: o chefe da unidade anda enrolado com uma das operacionais, e Doron seduz uma médica palestiniana, enquanto um dos seus anda a dormir com a mulher de Doron. Também o caos se instala no seu casamento, como não podia deixar de ser,  - com o clímax da traição a acontecer quando o filho aponta uma arma ao amante da mãe - e na sua família: o jovem e impulsivo cunhado morre em circunstâncias trágicas, a mulher afasta-se dele. Caos, portanto, não é apenas a palavra de código que usaram para comunicar que tinham sido descobertos.

Os autores gabam-se de nos mostrar os dois lados do conflito, algo pioneiro na televisão de Israel, e assim justificando parte do seu êxito. Julgo que talvez seja assim ou não. Para mim, mais do que isso, a série é uma montanha russa bem oleada de acções e reacções, bem filmada e com desempenhos notáveis dos seus actores. Para mim tem também o apelo de ser falada em árabe e hebraico, confiando que a legendagem seja capaz. Quem a ouça dobrada perderá bastante, tenho a certeza, pois duvido que se  consiga alcançar a mesma expressividade além da língua ter um protagonismo importante nos acontecimentos e como sinal da identidade daqueles povos. 

Os episódios são breves e a acção corre ágil de jogada violenta em jogada violenta, porque quando alguém mata, tem de ser morto. O noivo morreu, logo tem de ser vingado. Então a noiva oferece-se como mártir e leva mais cinco consigo na explosão num bar, incluindo a namorada de um dos operacionais. Quando esse operacional israelita é capturado pelo Pantera e ele descobre que ele matou o noivo, seu irmão, mais uma retribuição está na calha. E é assim que ele acaba em pedaços. Não há um enquadramento maior, político, filosófico, histórico, o que fosse, porque o objetivo é entreter com acção, violência, perseguições, fugas, reviravoltas, em suma, um thriller que pega nas fórmulas que também foram exploradas pela série 24, entre outras, mas que as aplica bem.

Não sei se Fauda irá alguma vez mostrar a realidade tal qual ela é pois tornar-se-ia insuportável de assistir. Com a expansão dos colonatos, a violência com motivações ideológicas sob a forma de intimidação torna o dia a dia dos Palestinos civis num inferno, mesmo sem serem apanhados em operações especiais ou em esquemas do Hamas: à insegurança, soma-se o constrangimento de movimentos, abuso policial, medo constante, ineficácia da justiça em caso de crimes, etc. Mas o público quer apenas realismo o que é diferente de realidade. E Fauda é bastante violenta, podia até ser menos para conseguir contar a mesm história: abre logo com um assassinato num casamento de Palestinianos, esmerando-se para nos dar a conhecer os sonhos dos que vão ser massacrados; prossegue com um Israelita e um Palestino feitos em pedaços no chão de uma estrada, um deles tinha sido torturado brutalmente, o outro carregava uma bomba no abdómen. Também mostra a segurança palestiniana a espancar à bruta um individuo, que julgam ser Israelita, (e é) durante um interrogatório. O Pantera, o grande líder, que tem vivido como uma ratazana, escondido, é acusado de ter morto 112 pessoas, e nem é sequer bom para os seus: a própria mulher, cansada de passar por viúva, é aliciada pelos Israelitas a deixar a Palestina com as crianças, depois de uma delas quase ter sido sacrificada pela causa, pelo marido terrorista, e ter sido ferida. Apesar disto, a perturbação quotidiana da população em geral pela ocupação está ainda sub-representada na série, pelo menos na sua primeira temporada, que foi aquela que vi. É uma série israelita, outra coisa não seria de esperar. É claro que o Pantera acabou por ser apanhado, mas, surpresa, não pela unidade: ele é morto por um dos seus mais leais seguidores, quer porque ao agir isolado do Hamas se tinha tornado uma inconveniência para o movimento, quer porque o jovem Walid queria proteger a prima por quem estava apaixonado, quer porque o próprio estivesse desapontado com a obsessão do líder que mostrava mais fanatismo do que racionalidade na sua luta, ou por tudo isso.

O Pantera desde o primeiro episódio que tinha estado na mira de Doron mas quando parecia que ia ser apanhado, escapava. Os dois opositores chegam a estar frente a frente sem que nada possa ser feito. São criadas ao longo da série situações de grande tensão, sempre bem controladas. Curiosamente, no final, o Pantera observa Doron através do ecrã de um computador e vê que, ironicamente, recrutara para executar o grande golpe o seu pior inimigo, enquanto desconfiava de pessoas inocentes que mandava executar. Perdera o amor da sua vida e tinha sido implacavelmente derrotado por Doron, que se tinha conseguido infiltrar tão fundo que comprometera tudo.

Fauda compensa a narrativa de violência ao explorar a vida pessoal das suas personagens, que, mesmo quando inocentes, sejam adultos ou crianças, é sempre de alguma forma impactada pelas actividades violentas ou traições fruto de chantagens que se vão sucedendo, protagonizadas quer por Palestinianos, quer por Israelitas. O caos afinal instala-se na vida de todos, grupos de operacionais, casais de namorados, noivos, famílias, é uma doença contagiosa, qualquer que seja o lado em que militem, inocentes são arrastados para o conflito, sejam adultos ou crianças, homens ou mulheres, novos ou velhos, ninguém escapa. Não é a realidade mas Fauda chega e sobra para perceber o inferno que é viver naqueles territórios e para reforçar em nós o desejo de que alguém consiga o milagre de acabar com este caos.

Para quem tiver curiosidade e quiser ver antes filmes ambientados no Médio Oriente, deixo aqui alguns títulos de alguns filmes de realizadores israelitas e palestinianos:

A Noiva Síria, de Eran Riklis (Israel)
Lemon Tree, de Eran Riklis (Israel)
Laila's Birthday, de Rashid Masharawi (Palestina)
Divine intervention, de Elia Suleiman (Palestina)
The time that remains, de Elia Suleiman (Palestina)
Omar, de Hany Abu-Assad (Palestina) 
Sand storm, de Elite Zexer (Israel)
Waltz with Bashir, de Ari Folman (Israel)
The cakemaker, de Ofir Raul Graizer (Israel)
Fill the void, de Rama Burshtein (Israel)
Paradise Now, de Hany Abu-Assad (Palestina)
5 Broken Cameras, de Emad Burnat, Guy Davidi (Palestina)
The Gatekeepers, de Dror Moreh ( Israel)
Roof Knocking, de Sina Salimi ( Palestina)

Um extra:
Mayor, de David Osit (EUA)

Comentários