Shawn Mendes marca presença em Portugal





“You know when you’re in a state of unhappiness when you have no reason to be unhappy?
  I hate that.”
Shawn Mendes

Fui inteirar-me sobre a paixão assolapada das adolescentes portuguesas por Shaw Mendes desconfiando que a idolatria melosa se ficasse a dever ao facto do rapaz ter uma costela portuguesa. Nós não deixamos passar em branco essas coisas: os avós maternos de Danielle Steel, eram açorianos, Tom Hanks tem um bisavô português, Maria Isilda Ribeiro, a costureira que coseu a bandeira americana colocada na Lua por Neil Armstrong, fabricada numa  fábrica em New Jersey, era portuguesa. E até o BO, o cão de água português, de Obama, era o melhor do mundo. A Katty Perry, a Nelly Furtado...A lista aumentou, pois, com Shawn Mendes, é mais um luso-canadiano com êxito na música. 

Shawn Mendes, o cantor e compositor de 20 aninhos acabados de fazer, é obcecado com o sucesso, temendo um dia acordar e ninguém querer mais saber dele. Começou a tocar guitarra aos 13 anos e agora anda a fazer tours de 50 ou mais espectáculos, promovidas por elogiosas referências como "multiplatinado e sensação mundial", "uma ascensão meteórica", e os ídolos que ele imitava na extinta Vine aprestam-se a colaborar nos seus discos, mais coisa menos coisa: Sheeran, Taylor Swift, John Mayer. São apenas três álbuns, mas já são três álbuns e um sucesso à escala global. É obra, mesmo que se queira torcer o nariz ao miúdo, não dá para ignorar. 

Começou por construir um pop-folk que fisgava descaradamente o coração das adolescentes, ele próprio era um adolescente. As canções que somavam e seguiam nos tops eram tipicamente juvenis, de encher o coração, ora tipo baladeiro, ora de saltar a pés juntos de emoção. A voz adocicada e falsettos de Mendes apareciam a cada vez que se ligava uma FM - eu detestava Stiches, embora constatasse distraidamente que era pop do bom, mesmo que tratasse do mau que é ter um desgosto de amor. Sempre a ominpresente guitarra acústica, por vezes trocada por uma eléctrica. Agora já se mete por caminhos de RB, e sabe-se lá onde irá parar - There's noting holding him back. 

Cresceu em popularidade de um momento para o outro, como um cogumelo que brota do solo, a par da música cultivando um look clean e uma postura de gratidão e simpatia pelas fãs. Diz-se apoiado pelos pais desde sempre e pelos amigos, aí assentando o equilíbrio que transmite. Mas depois treme que nem varas verdes quando o provocam dizendo que aparenta uma aura gay, sentindo-se na obrigação de prestar contas; ou então mete-se a cismar que a música que faz pode não durar e fica ansioso.

É cada vez mais frequente assistir ao êxito de jovens no território pop - veja-se (ou ouça-se) When We All Fall Asleep, Where Do We Go?, o aguardado primeiro álbum de Billie Eilish, que tem 17 anos. Esquecemos facilmente que são ainda jovens e que nem sempre conseguem lidar da melhor forma com muitas pressões que fazem parte do estrelato súbito. No caso de Mendes, que conquistou a fama com dedicação e trabalho sério, quase dá a impressão de que o sucesso é que o tomou nos braços e o elevou às estrelas,  num capricho. Não foi uma coisa que lhe aconteceu, foi algo que fez acontecer. O êxito não tem geração espontânea, não na música nem em domínio algum, por exemplo, a escola, embora para alguns, mais dotados, possa ser mais fácil. Há que saber o que se quer. E, mesmo sabendo, chegar lá nem sempre é possível, por vezes nem mesmo com muito trabalhinho. Finalmente, o fenómeno Mendes nunca o seria sem o poder da internet e das redes sociais. Estes dois jovens artistas são fenómenos muito do tempo presente, a que certos números facilmente dão expressão melhor do que palavras. Por exemplo: Mendes tem  21.5 M seguidores no Twitter.

Shawn Mendes apresentou-se em digressão mundial de apresentação do terceiro álbum de originais, o  homónimo, Shawn Mendes, no dia 28 de Março, em Lisboa, na Altice Arena. Os bilhetes esgotaram quase de imediato, em Maio do ano passado. Em Agosto de 2018, o músico já tinha actuado no MEO Sudoeste, na Zambujeira do Mar. 


Neste momento fiz uma pausa e fui ouvir o tema Youth, que penso ter aberto o concerto, e que foi escrito motivado pelo ataque terrorista no Manchester Arena, em Maio de 2017. Morreram 23 pessoas e mais de uma centena ficaram feridas, após o concerto de Ariana Grande.Trata-se de uma espécie de hino motivacional ou inspiracional para a juventude instigada a não deixar de ser como é apesar das horríveis provações que tenha de enfrentar. Youth conta com a colaboração de Khalid e não está nada mal. Ouvi e vi também o video de Lost in Japan. Quando me apercebi de que se tratava de uma recriação do filme Lost in Translation, de que gosto imenso, quase gritei blasfémia! O final do vídeo de Lost in Japan não podia ser amargo, nem sequer agri-doce. Onde no filme, os dois protagonistas, Chalotte e Bob, se separam, sem nunca sabermos o que este lhe disse ao ouvido, no vídeo, Shawn é incentivado a ir no encalço da miúda. As fãs não se contentariam com menos que um "Happy ending", não é? Um final em aberto para cada um dar asas à sua imaginação. Ao ver Shawn vestido de robe e chinelos, no quarto de hotel, imaginei que não faltará muito para que seja convidado para interpretar um papel num filme: já tem um perfume Shawn Mendes Signature nas lojas e empresta o corpo à campanha da marca Calvin Klein, que sabe muito bem onde está o que é preciso para fazer bom dinheirinho. Next!


Mas se me fui dar ao trabalho de refletir sobre Shawn Mendes não foi, claro, por causa do jovem e antes por causa de uma jovem, filha de uma amiga, que foi ao concerto, e que encontrei às voltinhas no shopping. A Joanita, como eu a chamo, desde pequena, tem agora 13 anos, e desconfio que já não gosta muito do diminutivo. Esteve nove horas na fila com as amigas para poder obter um bom lugar no Altice Arena. Até veio de lá bronzeada. Diz que foi o melhor concerto que viu na vida, que nunca vai haver outro tão bom. (Bem sabemos que não será assim. A Joanita vai assistir a muitos concertos e cada um que vir será sempre melhor que o anterior. )

Os adolescentes são um grupo muito particular. Tão depressa lhes dizemos que ainda não têm maturidade para fazerem isto ou aquilo, como que já são crescidos o bastante para fazerem aquilo  ou isto. É natural que sintam estar num beco da vida e que se refugiem na sua cama populada de almofadas, a olhar para o tecto, a viver cada verso e cada batida das canções do Shawn Mendes, que os phones do smartphone lhes descarregam aos ouvidos, como se fossem um mantra. É evidente que querem experimentar tudo, incluindo ir ao concerto do ídolo, que não há outro como ele na terra inteira nem nunca haverá.  É nesta altura que se fazem toda a espécie de tolices a coberto da imunidade que a adolescência unicamente confere. E não é porque não estejam cientes da tolice: é porque vão tirar um benefício dela, que para eles será importante, por exemplo, euforia, respeito, Likes. É o tempo de fazer tudo com urgência mas não como se a vida terminasse em breve e apenas porque ainda não se viveu nada e é tudo fome de viver e de aventura. Se até nós, tantos anos vividos, ainda gostamos de novas ideias, conhecimentos, sensações, como não perceber o que excita o adolescente e o move para a experimentação de tudo, por mais imprevisto ou até perigoso? É também o tempo para consolidar aprendizagens de toda a espécie, intelectuais e emocionais, para apalpar o futuro e ir adaptando o cérebro às novas realidades experimentadas. É o tempo para ser o mais imperfeito possível de forma exemplarmente perfeita. Porque ser adolescente nada mais é do que ser perfeito imperfeitamente.

Para orientar os adolescentes são necessários adultos compreensivos e em sintonia com estas entidades complexas, por vezes com mais uns centímetros que os progenitores, mas firmes o suficiente para fazer face aos ímpetos e desejos juvenis sem parecerem uns algozes parentais, ainda que os olhem agora de baixo para cima, numa posição inconfortável, é certo. Mas nem adolescentes nem adultos se medem aos palmos. Afinal, até uma pequena e singela agulha numa caixa redonda  nos pode indicar o norte. Os adolescentes precisam ainda de orientação, mesmo que afirmem, sem rodeios: "Eu já tenho idade", ou , "Já não sou uma criança". Paciência, mas é assim mesmo. A ponte da adolescência lá há-de conduzir, ao mundo dos adultos. Mas os pais, ou os seus responsáveis, os educadores, sejam eles quem forem, devem ter uma palavra a dizer durante a travessia.

Mas é mais fácil de dizer do que fazer. A Joanita, tem 13 anos, é aluna do 6º ano,  e faltou às aulas para ir ver o concerto do Shawn Mendes. Shawn Mendes marca presença em Portugal, as alunas faltam. Não deve ter sido caso único. Não me levou a melhor, a Joanita, não senhora, pois andava eu na escola primária, quando a meio da tarde, a minha avó me foi buscar para irmos ao cinema ver Música no Coração. Sim, eu sei, ir ver a Maria Lay ee odl lay ee odl-oo, o Capitão von Trapp, e as cabrinhas, não é bem a mesma coisa que ir ao Altice Arena, mas é parecido. Ir à noite estava fora de questão, suponho eu, e os adultos da casa talvez só tivessem sabido do filme no Theatro Circo depois do fim de semana. Não fui eu que pedi. Nunca tinha ido ver um filme com actores de carne e osso e em nossa casa apenas havia TV a preto a branco. Estão a imaginar a surpresa que foi, não é verdade? Qual foi o prejuízo em termos de frequência escolar? Nenhum. Eu já lia e escrevia muito bem, desenhava melhor, apenas não atinava com os números, e esse desatino acompanhou-me vida fora. A Joanita, pelo contrário, é uma aluna com muitas dificuldades, embora eu não saiba exactamente quais, apenas sei que a mãe se queixa do aproveitamento a várias disciplinas. Ora, mesmo assim, o que fariam vocês? Levariam a miúda ao concerto? Bom, eu talvez levasse, sim. Mas, e agora, veio a revelação da miúda: "Até tinha teste a matemática!"  Fiquei perplexa. No dia em questão a Joanita tinha teste a matemática e, mesmo assim, a mãe assumiu que não havia problema algum em que ela faltasse às aulas? Nesse caso, eu já não teria deixado a Joanita ir ao concerto. Não era negociável.

A adolescência serve também para os miúdos aprenderem como funciona o mundo. Ou não será? Então que mundo é este onde a diversão vem um passo à frente do trabalho? Uma avaliação?! Estarei a ser bota de elástico? O "trabalho" dos adolescentes é estudar. Ou não é para isso que os pais os colocam na escola? Há um tempo para a escola e há o tempo livre para ir à praia, ao cinema, aos concertos, ao campismo, para namorar. Afinal, ainda não há muitas semanas, aquando da Greve Climática Juvenil, se assistiu a tanto protesto de pais, mesmo dos que são sensíveis à causa e que não a consideram uma mera propaganda esquerdista,  que criticavam a iniciativa porque os alunos (do secundário) iam faltar às aulas.  O que estamos a passar aos miúdos é que um dia será legítimo faltar ao trabalho para ir a um concerto ou não será? Ou a um piquenique? Ou aproveitar a vaga de calor para ir à praia?

Mas há mais. O professor de Matemática, soube da ida ao concerto, e logo concordou fazer um teste extra para a miúda ser avaliada. Todos ficaram felizes: o professor, esse grande compincha, a Joanita e os pais da Joanita. E agora vocês dizem-me: assunto encerrado, Belinha. Tudo está bem quando acaba bem. Mas porque será que sinto um certo desconforto com o final feliz? Estou à espera de me cruzar com a mãe para lhe perguntar se justificou a falta assim: art.16º, i), "  Participação em atividades culturais, associativas e desportivas reconhecidas, nos termos da lei, como de interesse público ou consideradas relevantes pelas respetivas autoridades escolares." Tudo é possível porque o mundo onde estas jovens crescem já não é o mundo onde eu cresci.

Já agora, que é feito do Estatuto do Aluno? Talvez já não exista. Para quê? Ninguém o deve ler. Quando fui uma aluna de 13 anos, na Preparatória André Soares,  posso garantir que os meus pais nunca leram nenhum regulamento. Mas também não era preciso. Todos sabíamos o que era e como funcionava a escola e o que era ser estudante. Eles garantiam que eu chegava a horas, que andava alimentada, vestida, limpa; que fazia os TPC; que tinha os materiais. Não me policiavam, não era preciso. Eu faltava quando apanhava uma gripe ou ficava com febre alta. Levava os meus livros, esferográficas, o que era preciso. Nunca tive uma falta de material. Uma vez, em Trabalhos Manuais, esqueci-me de levar a peça de madeira e pedi ao professor para ir a casa buscá-la. 50 minutos depois estava de volta, ensopada em suor pois tinha ido a correr. Havia noção da responsabilidade, mesmo se éramos adolescentes. Hoje os alunos vão para a escola mas até parece que vão é passear o telemóvel - é objecto que nunca esquecem. Não sei para que os pais compram livros (ainda por cima caríssimos) se os deixam em casa, ou cadernos, se andam sempre a cravar folhas uns aos outros. E as fichas distribuídas pelos professores andam sempre a voar pela Via Láctea, transformadas em aviões de papel, mas nunca nos dossiers, quando são precisas, ou a fazer as vezes de bolas em remates ao cesto do lixo dos seus quartos. 

Não perguntei muito mais à feliz Joanita e muito menos perguntarei à mãe como justificou a falta, quando a encontrar. Guardarei a minha perplexidade. Talvez a minha amiga se tenha mudado para Marte sem me ter dito, ou andasse com a cabeça na Lua, ou talvez seja eu que estou no planeta errado. Talvez em Marte, um dia, no mundo do trabalho, a Joanita também vá faltar para assistir ao concerto da Tour dos 15 anos de carreira da Billie Elish,  e uma colega marciana, sem questionar, aceite trabalhar por duas nesse dia para assegurar as tarefas da Joanita faltosa. E depois a Joanita, ainda assim, talvez receba o seu salário por inteiro,  porque o patrão é mais um marciano bacano que acredita que a vida é uma pândega total onde a adolescência dura até aos trinta anos, pelo menos. 

Digam-me lá se é isto ser melhor educador, ou se é isto melhor escola, ou se não estamos apenas a ser uns totós que perderam por completo o norte do que é educar e ensinar, e depois queixamo-nos que os jovens de hoje são assim e assado: egoístas, irresponsáveis, alienados, uns tontos, "a quem aparece tudo feito". Todavia, não se alarmem, o fenómeno não é nada de novo, está connosco desde o princípio dos tempos: "O pai teme os seus filhos. O filho acha-se igual ao seu pai e não tem nem respeito nem consideração aos seus pais. O que ele quer é ser livre. O professor tem medo dos seus alunos. Os alunos cobrem o professor de insultos. Os mais novos querem tomar já o lugar dos mais velhos. Os mais velhos, para não parecerem antiquados ou despóticos, consentem nesta demissão".*

Os adolescentes são, desde sempre, entidades complexas. E sempre irão colocar os pais perante situações críticas, dificuldades, para as quais os pais terão de encontrar uma resposta. Os pais, tal como os adolescentes, não nasceram ensinados e crescem dentro deste papel à medida que lhes vão sendo passados testes. Talvez nem sempre encontrem a resposta certa perdida no meio de tantas respostas múltiplas. Talvez até errem redondamente. Talvez não saibam como responder. Talvez lhes seja difícil meter a cruz no quadrado da resposta certa por saberem que vão despoletar um confronto.  É mais fácil deixar o adolescente fazer o que quer e evitar uma crise, aturar a frustração impossível da criatura, que por uma semana andará pelos cantos da casa com uma cara de poucos amigos e a esquivar-se a qualquer diálogo.  Só que ser educador não é evitar, é fazer a sua parte, por vezes ingrata e com consciência disso mesmo.

Mas outros, mais modernos, talvez até já se tenham demitido de dar respostas. Tratam o adolescente como se ele fosse um adulto, um ser autónomo, e soubesse já decidir o que é melhor para si. Para estes, os adolescentes já sabem tudo e estão prontos para a vida. Não precisam de ser educados para serem mais humanos ou colaborativos ou responsáveis. Os pais já não procuram dar repostas - nem tão pouco são questionados - porque as respostas que estes adolescentes procuram estão todas no Google. Deixam-nos displicentemente tomar as rédeas do seu destino, faltar às aulas, ir aos concertos com os amigos, pedir ao professor para ter trabalho extra e fazer uma outra ficha de avaliação especial só para si (que não custa nada, ora, temos de ser uns para os outros). Estão a criar uns pequenos monstros. Mas ainda bem que é sobretudo em Marte, e não por cá, que isso mais acontece.


*Autor da frase a negrito:  (Platão ; 428-348 a.C.; A República, livro VIII)


Sugestões de leitura:

Estudo de 2018 sobre os adolescentes : Health Behaviour in School-aged Children (HBSC) . Nele participam 44 países. Em Portugal é realizado desde 1998, e a ritmo quadrienal, pela equipa Aventura Social, da Faculdade de Motricidade Humana. "O mundo digital é, sem dúvida, o mundo que maioritariamente preenche o tempo dos adolescentes portugueses. 60,8% conversam online várias vezes por dia com os amigos chegados e 35,7% admitem ter amigos que apenas conhecem por meio da internet. As redes sociais servem regularmente para “fugir de sentimentos negativos” (28,6%). E 26% tentara passar menos tempo online sem o conseguir. Tanto durante a semana como aos fins-de-semana, a presença online mantém-se estável: os adolescentes não dispensam a partilha e a consulta no Instagram, o visionamento de vídeos no YouTube e a troca de mensagens por WhatsApp.

Comentários