Escrita criativa
10/01/20 - Luz e Sombra (17)
Quando a Estrela do seu Sistema finalmente se apagou, o grupo dos Inteligentes ligou a Grande Lux e, limitando o seu alcance, assim dominou uma parcela da população do território sobrevivente. Totalmente dependentes dos Radiantes por mais de dois séculos, os Sombrios revoltaram-se, decididos a conquistar um bem maior que a liberdade. Na história do Reino de Pantona, hoje desaparecido, o trágico episódio nunca foi registado.
A Luz irradiava de uma Torre de muitos quilómetros ligada ao núcleo do Planeta. Os Radiantes abriam as escotilhas negras e raios luminosos estendiam-se como um manto dourado sobre Pantona. Os Sombrios choravam o desolado território assim descoberto pela penumbra. Quando as trovoadas artificiais iluminavam os céus, o arco-íris era uma memória que feria e o verde-musgo uma ténue esperança. A Sombra aprisionara o presente e condenava o futuro. Consumidos pelo desejo de ver tudo, o que estava longe e perto, a revolta contra esta pálida impressão da vida cresceu neles como um fungo.
Um grupo de Rebeldes foi consultar a Consciência do Reino. Ela comunicou que as sortes não eram favoráveis. Pereceriam em vez de renascer das trevas. Guerra, nunca. Negociação era o caminho. Um Emissário partiu e nunca regressou. De novo os Rebeldes a auscultaram sem entender o enigma: “Há luz para além do vermelho ao violeta. A sombra não é nossa inimiga nem a luz nossa aliada.”
O regimento de armaduras negras movia-se a coberto da Fase Escura. Os Radiantes dormiam quando a plataforma energética foi invadida, dominados os poucos operadores ali presentes. Comandaram-lhes que libertassem a Luz sobre o Reino e, quando eles se recusaram, mataram-nos um a um até conseguirem o pretendido. As escotilhas negras subiram lentamente. Selaram as portas da Torre, um grupo de guarda. Outro avançou para o Palácio Radioso e também ali pelo poderio da força e da surpresa conseguiram subjugar as Governanças do Reino.
O assalto fora uma vitória inesperada. Eufóricos, entregaram-se a festejos intoxicantes, observando a Luz crescer com intensidade inaudita. Choravam, deslumbrados com o seu esplendor, não conseguindo desviar o olhar, acometidos por uma cegueira que era o menor dos males. Em Sombria, lentamente, a pele da face e corpos nús que se banhavam na desejada Luz, libertos das habituais máscaras e fatos de protecção contra o álgido quotidiano, começava a borbulhar, a ferver e a cair. Alguns Sombrios refugiavam-se a tempo no subsolo, aguardando o regresso da penumbra com preces nos lábios.
03/01/20 - Sobre a vida adulta: ainda não entendi o qu é para fazer (16)
Criança, ela pensava que, quando crescesse, a vida seria tal como aprendera nas histórias. Qual Gato das Botas, ardilosa e hábil com as palavras, assim tornaria o mundo um lugar melhor para os outros, e para si. Avisada, nem Formiga, nem Cigarra, saberia escolher uma profissão divertida. Assim seria fácil derrotar os monstros da fome, do escuro e do frio, sem prescindir da folia. A beleza seria o desígnio deste Patinho Feio ultrapassadas as dores do crescimento, uma qualidade natural que um dia se revelaria como um botão de rosa que desabrocha. A verdade sempre seria preferível à mentira, esse nariz de Pinóquio demasiado comprido para disfarçar. Sempre alguém andaria por perto para despertar a sua boa consciência, evitando erros estúpidos. Mas errando, encontraria no erro uma lição a extrair. A vingança, nunca uma maçã venenosa que valesse a pena fazer engolir a alguém. O amor chegaria garboso e valente, numa reluzente armadura de heroísmo. Duraria uma vida e uma morte. Confiava ela que ser uma heroína estava escrito algures num livro monumental e que a sua missão cumprir-se-ia no futuro como num conto de fadas. Se por ingenuidade se achasse na floresta, na boca do lobo, se perdesse o fio à meada do seu destino na encruzilhada dos dias, ou se achasse subitamente confusa num labirinto de escolhas, uma fada madrinha viria em seu auxílio.
Até que, jovem adolescente, acordou cedo, numa madrugada fria, no rescaldo do primeiro desgosto amoroso, com uma certeza que a abalava e combalia: era tudo uma mentira. Estava por sua conta e risco. Só podia contar consigo para derrotar os dragões do medo, da insegurança e da incerteza, e outras criaturas assim, que se atravessassem no caminho do seu triunfo. A realidade já não a deixou dormir. Havia razões para temer o desconhecido. Ser adulta devia ser então aquilo: ter uma vida pela frente, cheia de mudanças abruptas de parágrafo, pontos de exclamação, reticências. Um dia de cada vez. Um ano de cada vez. De improviso em improviso. Até à última página, até ao ponto final, sempre uma constante interrogação. Mesmo sem perceber toda a urgência com que a vida, naquela madrugada decepcionante, a chamava a ser sua protagonista sem rede, mesmo tremendo de frio, e temendo o futuro, intimamente sentia que começava ali a grande aventura. Não entendia ainda bem o que fazer. Apenas o que não fazer. E era um bom princípio.
20/12/19 - #rudolfo@casadopainatal
Srª. Rudolfo. Venho por esta via reclamar do resultado do concurso de recrutamento e selecção para a posição de Pai Natal que teve lugar online. Tomei conhecimento de que fui preterida em virtude do meu sexo. A legislação laboral nacional e internacional está do meu lado. O que a srª. fez foi descaradamente discriminatório! A srª. é um animal que não sabe reconhecer o que é talento. Já me informei junto da Autoridade para as Condições de Trabalho e irá ser notificada em breve. Ser assim tratada por uma rena que foi gozada pelas suas congéneres por ter um nariz diferente só prova que o poder cega mais que o nevoeiro na noite. Já se esqueceu como foi escolhida pelo Pai Natal para ser a 9ª rena do trenó? Por causa da sua luz! Porque assim se evitavam atrasos e acidentes!Também eu sei que posso fazer a diferença como o Pai Natal do séc. XXI: tenho muita luz para oferecer. Prepare-se para provar que não houve preferência de tratamento do candidato seleccionado só porque ele tem uma pila. Isto vai ser o fim da sua história radiosa, sua bola de pelo cruzada com um semáforo de trânsito! Pedirei uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais pela afronta sexista e exigências absurdas: uma fotografia de rosto, outra de corpo inteiro e cinco cartas de recomendação? Horas para conseguir preencher o curriculum vitae no formulário online do site oficial! E os dois dias que passei no Centro Médico para tratar do atestado de robustez física e psicológica? E as longas semanas a estudar geografia mundial, a santa história de S. Nicolau, a vida no árctico, a biologia dos cervídeos? A srª. sabia que a sua espécie se encontra ameaçada de extinção? E a lista interminável de catálogos de brinquedos infantis que tive de decorar? E o curso intensivo obrigatório dos 50 idiomas básicos para ler cartas das crianças e conversar com elas? Mais a formação, paga por mim, em psicologia infantil que tive de frequentar! E depois disto tudo, uma entrevista relâmpago online onde me pergunta qual é o meu maior defeito?! Tenho brevet de voo e disponibilidade para viajar para a Lapónia amanhã. Ainda podemos resolver isto sem recurso ao tribunal. Já não bastava toda uma história de opressão patriarcal, agora, em pleno séc. XXI, inaugurar-se a história da opressão renal é muito má publicidade para o Natal, srª. Rudolfo!
Tema da semana: O Pai Natal decidiu reformar-se e as entrevistas começam esta semana. Descreve uma dessas entrevistas na perspectiva do recrutador de recursos humanos: A Rena Rudolfo.
13/12/19 - Não nasci para isto
Miss Parker, corpo negro, macio ao toque, adornado a ouro, possuía uma beleza intemporal. Fria e distante, ainda assim, HB admirava-a. Ela gabava-se frequentemente da sua rica história. Que descendia de linhagem importante. Quando a rendição alemã foi assinada, estavam lá. Tinham lugar em museus. Hemingway dizia-se inspirado por uma quando escrevera um livro. Privavam com os membros da família real britânica. Eram disputadas por coleccionadores. Já HB tinha um jeito modesto embora ambicioso. As suas origens perdiam-se no tempo, talvez um escriba egípcio que raspara com um estilete num papiro. Não nasci para isto, queria sempre dizer-lhe quando a via olhá-lo com desdém. Mas seria inútil. Ela estava-se nas tintas para ele.
Miss Parker recolhia-se a um estojo de veludo nas horas vagas. Ele dormia em pé, misturado com outros num copo de estanho, numa promiscuidade colorida. Enquanto ela era chamada a escrever cartas de amor, a ele cabia listar as compras da mercearia, fazer maçadoras contas, e, ocasionalmente, esboços em folhas brancas que acabavam no lixo. Durante estes devaneios criativos HB temia pelo seu corpo que via encurtar-se a olhos vistos. Alto e esguio, aproximava-se rapidamente da altura de Miss Parker. Mas nem assim poderia considerar falar-lhe de igual para igual. Também a cada queda o seu coração de grafite se partia um pouco. E mais vezes era aparado. A sua esperança de vida reduzia-se a cada volta. Uma doce tontura sempre anestesiava o corte da lâmina mas não a sensação do tempo a fugir-lhe. Não nasci para isto. Eu sei, eu sinto no mais íntimo da minha negritude, que há algo maior. Todavia, o seu momento não chegava.
Um dia a criança que corria pela casa foi ao escritório e o pai deu-lhe aquele lápis. Foi com ele que começou a ensaiar o a,b,c num caderno de duas linhas. O HB passou a dormir num estojo com a divertida Miss Bic Cristal. Transparente, despretensiosa, ainda que por dentro dela corresse sangue azul, a química entre os dois foi imediata. Viram, orgulhosos, as primeiras palavras escritas pela miúda feliz. Depois, na escola, Miss Bic Cristal escreveu-lhe a primeira redacção e ele fez-lhe uma última ilustração. A professora classificou com Muito Bom.
Hoje o velho estojo escolar, a esferográfica vazia e um lápis HB de 4 cm fazem parte do museu pessoal da minha infância. Da caneta Parker 51, possivelmente adormecida em alguma loja de antiguidades, perdeu-se o rasto.
06/12/19 - Endgame (13)
Batalha final. Três homens avançam apressados. São interceptados pelo Homem Formiga.
HOMEM FORMIGA
(surpreendido)
Sr. Scorsese?!
SCORSESE
(olhando em volta)
Deve estar a confundir-me com alguém.
HOMEM FORMIGA
E tu, baixote? Quem és? Tens um ar engraçado!
TOMMY
(irritado)
Engraçado? Engraçado como? Como um palhaço? Divirto-te? É?
SCORSESE
Deixa-o, Tommy. Não estamos no Bamboo Lounge.
Homem Formiga
(examinando Bill the Butcher)
Chapéu alto, amigo?! Algum casamento hoje?
BILL THE BUTCHER
Amigo? A que gangue pertences tu? Pelas antigas leis do combate nos juntámos neste chão sagrado para resolver para sempre quem governará os Cinco Pontos.
HOMEM FORMIGA
Cinco Pontos? As Jóias do Infinito, queres tu dizer. Não são cinco, idiota, são seis.
BILL THE BUTCHER
(irado)
Idiota és tu. Cada um dos Cinco Pontos é um dedo. Se fechar a minha mão ela torna-se um punho. E se me apetecer, posso dar-te um murro.
Scorsese
(Interpondo-se entre ambos)
Pára, Butcher. Temos mais que fazer. Vamos.
HOMEM FORMIGA
(para Scorsese)
Gostava mesmo de um autógrafo seu mas estou atrasado. Cuide-se!
Levanta voo.
Os três caminham de novo.Scorsese guia-os.
TOMMY
Ainda não entendi que guerra é esta...
SCORSESE
Uma que temos de vencer. Trouxeste-o?
TOMMY
Sim, está no meu bolso.
Bate com a mão direita no peito.
SCORSESE
(para Butcher)
E tu?
Ergue a mão que segura um cutelo.
SCORSESE
Isto é um parque de diversões, Tommy.
TOMMY
De que falas?
SCORSESE
Deste universo cinematográfico em que nos encontramos. Cheira a estagnação. Não sentes?
TOMMY
Chefe, eu estou morto. Não sinto lá grande coisa.
SCORSESE
A arte está morta. Mas nós vamos resolver isso.
Interrompem a marcha. Scorsese aponta Thanos e o Homem de Ferro que lutam.
SCORSESE
São eles.
TOMMY
Chefe, a quem aplico a solução que dei ao Morrie? Ao grandalhão?
SCORSESE
Ao “baixote”.
Tommy sorri.
O Homem de Ferro está de joelhos no solo. Tommy aproxima-se por trás. Agarra-o pela testa.Espeta-lha o picador de gelo na nuca. Ele cai por terra.
SCORSESE
(para Bill)
Corta, Butcher.
Bill atira o cutelo ao ar. Ele dá voltas e cai,cortando o braço do Homem de Ferro.
Scorsese agarra o antebraço com as Jóias do Infinito.Ergue-o acima da cabeça.
SCORSESE
Hoje o reinado da Marvel será apagado para sempre. Em nome da arte.
Desaparece.
SCORSESE transpõe a 4ª parede.
SCORSESE
(para o público)
Thanos sabia: enquanto existirem os que se lembram como foi, não aceitaremos o que poderá ser.
Estala os dedos.
CORTA.
Tema da semana: Reescreve o final de um filme
Filme escolhido: Endgame (2019), trailer, aqui
As personagens dos filmes de Scorsese:
Tommy DeVitto em Goodfellas
Bill the Butcher em Gangues de Nova Iorque
Martin Scorsese: “I don’t see them. I tried, you know? But that’s not cinema. Honestly, the closest I can think of them, as well made as they are, with actors doing the best they can under the circumstances, is theme parks. It isn’t the cinema of human beings trying to convey emotional, psychological experiences to another human being.”
Entrevista na Empire Magazine, Outubro 2019
29/11/19 - Aqueles pássaros não se calam
Na bagageira viajava uma televisão acabada de comprar na Black Friday. A casa da mãe fica no bairro dos pescadores. Raul, parado nos semáforos, foi assaltado por histórias antigas que ela contava. Ele era filho do comandante Jota “Tubarão”, entregue não por uma cegonha mas por um albatroz. E a coruja que habitava a casa modesta e que caçava ratos melhor que um gato, enquanto ele dormia? Nunca a viu e não acreditava. Hoje, dia de aniversário, a mãe, vestida de negro desde que o mocho piara, sinal de número parnão no céu, assim antevendo a sentença do naufrágio, esperava-o acompanhada do gato que condizia com seu eterno destino.
Tinham combinado uma sopa rica de peixe. A importância do jantar festivo acompanhado por uma garrafa de vinho foi disputada por um documentário sobre aves de rapina na nova TV. Raul bebeu para estancar a náusea dos abutres a limpar carcaças. Não tinha estômago para aquilo. A mãe parecia imune ao nojo. Alimentava um fascínio por rapaces. Tarde, à porta da escuridão, ela perguntou:
– Quando voltas, filho? Daqui a um ano?
Raul iludiu a resposta e acelerou noite dentro.
A criança dormia quando Raul deslizou pelo corredor. A mulher, aconchegada na cama, perguntou por D. Adelina. Que estava bem, disse ele. O gato engordara. E foi ao duche.
Morto de cansaço, fechou a luz e apagou-se no edredão.
O telemóvel acordou-o cedo. A mãe. A televisão. Um problema. Raul, que já tinha combinado reunir com o sócio do restaurante naquela tarde, sossegou-a. Iria.
Ao final do dia, a carrinha do INEM parada à porta da vivenda isolada sobressaltou-o. Cruzou-se com um médico no passeio que logo o esclareceu: ataque de pânico. Talvez um sinal de demência. Seria bom despistar. Raul correu. A mãe não o deixou falar:
– Leva-a daqui! Aqueles pássaros não se calam! – disse, apontando o ecrã. – Não me saem da cabeça!
A mulher preparava o jantar quando ele chegou com a televisão ao colo:
–Então…?!
– Está maluca. Vou devolvê-la.
– Dá-a ao Miguel.
O dia seguinte foi de festa para o filho. Mas, noite adiantada, a criança entrou no quarto dos pais, queixosa:
– Aqueles pássaros não se calam. Não consigo dormir. Posso ficar?
Raul agarrou na almofada e foi para o quarto do infante. Sono espantado, ligou a televisão.
Manhã dentro o telemóvel tocou. O sócio queria saber o porquê do atraso de Raul.
– Pá, aqueles pássaros não se calam.
Bom dia. Permitam que me apresente: Chernobyl, peixe kinguio japonês. Ganhei o meu nome quando desenvolvi uma enorme bola na cabeça, um tumor. Até aí era simplesmente tratado por “Peixinho”. Hoje, com 13 anos, e 20 cm de comprimento, seria ridículo. Todavia, a única radioactividade a que fui exposto é a música clássica da Antena 2 que o namorado da mulher com quem partilho apartamento põe a tocar ao sábado, mal chega a casa. Nesse dia, a rotina altera-se radicalmente. A voz dele ecoa pelo ar e faz tremer as paredes de vidro do meu aquário. Um vero Parvarotti e um beijoqueiro. A primeira vez que o vi beijá-la pensei que ele a fosse matar. Na loja do shopping, há muito tempo, conheci um peixe-beijador. Guardava respeitosa distância, embora ele fosse agressivo apenas para com os da sua espécie. Afinal o homem é inofensivo, aquilo não era briga, antes preliminar do acasalamento. (Nunca os vi a procriar, nem quero.)
À hora do almoço, ele é um mãos largas com os grânulos, diferente da mulher, sempre com a mania da dieta, uma unhas de fome. Espero em vão por coração de boi, cozido e esmigalhadinho com ervilhas semi-cozidas, levemente amassadas! Anseio por artémias, larvas de mosquito, moscas de fruta! Mas só me dão enlatados industriais. O pior é vê-los à mesa a devorar os meus semelhantes. Inicialmente, atemorizado, até julguei que me destinavam ao estômago. Vi douradas, robalos, sardinhas, e muitos outros, a chegarem ali a fumegar em bandejas metálicas! Sacrilégio! No meu país natal são mais civilizados: comem-nos crus, e até vivos, bem frescos, como deve ser! Não sei que barbárie é esta, mas a cena repete-se duas vezes por dia. Ao jantar até acendem velas na mesa como se tudo aquilo fosse um sacrifício aos deuses.
Chega a noite, novo suplício. Sentam-se abraçados no sofá a ver filmes de terror. Lá por não ter pálpebras, não quer dizer que não durma. De sono leve, a cada grito sobressalto-me, dou meia volta e provoco um tsunami. Ignoram-me. Cada vez se agarram mais um ao outro: deve ser o medo, não? E voltam aos beijos antes de se irem embora dali, apressados, sem sequer saber como a história acaba. A TV fica acesa, a luz ligada. Que desperdício. Resto eu. E que tédio: morreram todos novamente! Que filmes mais previsíveis. Humanos! E dizem-se eles os seres mais evoluídos do planeta. Pff!
15/11/19 - Já chegámos? Já chegámos? (10)
“Já chegámos? Já chegámos?” O mundo unido numa redonda pergunta. 384.400 km. A raça humana embarcara, temerária, naquele Saturno esguio. A Águia aterraria em quatro dias, periclitante, no solo lunar.
Alheia à História que se fazia naquela noite, eu viajava no berço dos meus sonhos enquanto na imaginação mundial acordava um universo de possibilidades. Na saleta, os meus pais controlavam o sono a poder de cafés e entusiasmados cigarros, ouvidos atentos à Emissora Nacional, olhos colados na TV a preto e branco. Aproximavam-se as quatro da manhã do dia 21 de Julho de 1969, era ainda a noite de 20 nos Estados Unidos, quando demos um pequeno passo no regolito lunar e nos lançamos no salto gigantesco que um dia, ainda longe, há-de resgatar a humanidade da sua extinção. Fomos em paz e em nome de todos. O mundo unido numa redonda conquista. Nunca fôramos tão grandes.
O educador Charles Morton escreveu no séc. XVII um tratado sobre a migração das aves no qual defendeu que no Inverno elas voavam até à Lua, regressando depois na Primavera. Estimou que a distância a percorrer fosse de 179,712 milhas e que elas demorariam 60 dias a chegar lá a 125 milhas por hora. Se desapareciam da paisagem, para onde poderiam elas ir senão para a Lua?
Vi um fuselo na praia a comer avidamente. Está de passagem. As aves migram desde tempos ancestrais para fugir de ameaças à sua sobrevivência. Regressam ao local de partida, na estação seguinte, para acasalar e cuidar das crias. Os fuselos dispensam qualquer foguetão. Preparam-se para viajar acumulando enormes reservas de gordura: é o combustível. Mais de metade do seu peso é gordura. À medida que engordam, os músculos peitorais e as patas também crescem. Batem as asas durante a maior parte da viagem. Além da força muscular, os fuselos também tiram partido do vento embora não planem. Orientam-se pela sua misteriosa “bússola interna”:tecnologia de ponta. É bem possível que dormitem enquanto voam, quem sabe se não sonharão com uma viagem à Lua!
Em 2007, um fuselo fêmea, uma ave com apenas 40 cm de comprimento e 80 de envergadura, percorreu 11.570 km, um voo de 8 dias, sem escalas. Partiu de um estuário no Alasca e alcançou a costa da Nova Zelândia, uma distância equivalente a ¼ da circunferência da Terra.
Da próxima vez que olharmos a Lua, se nos sentirmos grandes, lembremo-nos do fuselo.
08/11/19 - Mulher nua numa ilha deserta (9)
No Verão anterior, Simão, 14 anos bem encorpados, acompanhara a primita Lúcia ao Casino para receber um jogo da Majora que ela tinha ganho no concurso. Neste, apostara com ela que ficaria em 1º lugar. Nunca supus ser a sereia que um dia o mar depositara nos braços daquele beirão moreno e de olhos pestanudos, quando, de férias na praia da Claridade, anos 60, as nossas famílias, a banhos, se conheceram. Mais novo, marinheiro de água doce no amor, a voz embargava-se-lhe quando me dirigia a breve palavra, o que eu tomava por juvenil timidez.
E foi assim que acordei nua e só numa ilha deserta sem me lembrar de nada. Simão, ajoelhado, transpirava ao sol, a cabeça protegida por um boné, o tronco nu curvado. Movimentando os braços e mãos num afã amoroso, penteava os cabelos longos com os dedos, enfeitava-me o peito de conchas e búzios, acariciando cada curva com enlevo. O júri avisou bem alto o termo do tempo. Ele sentou-se junto a mim, deleitado. Quis erguer a mão para festejar os seus caracóis negros e foi quase trágico. O antebraço desfez-se no ar. Sobravam breves minutos para Simão recompor a construção de areia.
Uma moldura humana rodeava o recinto, pais, mães e curiosos, ansiando a coroação dos pequenos grandes artistas. O júri atravessou vagarosamente o areal construindo castelos no ar com palavras de apreciação. Porém, à vista daquela ousada nudez, apenas questionaram:
– Nº 23, menino Simão Tavares, “Mulher nua numa ilha deserta”, certo?
Não, não. Aquela era Isabel, a sua paixão, que, filas adiante, apoiava a prima Lúcia, Nº 7. Chamara-a insistentemente com o olhar mas ela apenas se chegou ali já o concurso acabado:
– Tenho tanta pena que não tenhas ganho. Já pensaste um dia ser escultor?
As palavras dela souberam-lhe a tão pouco que foi dar um mergulho. Deixou a água do mar temperar-lhe o corpo e o espírito por longa hora. Quando voltou a multidão tinha dispersado e ele deitou-se ao lado da solitária escultura. Já muito tarde, o sol anunciando a retirada, o pai veio por ele, mas Simão recusou abandonar a sua mulher de sonho. Adormeceu ali. Devagar uma onda aproximou-se, e depois outra, e, sem remorsos, arrancaram-lhe aquele amor de areia dos braços. Os seus pensamentos levaram-no até casa, onde chegou, com fome e a tremer de frio, mas de coração lavado. Aquilo que o mar dá, o mar leva.
01/11/19 - Uma carta para a criança que fui (8)
Estávamos as duas sentadas frente ao mar, eu e a folha branca de papel. Ansiosa sem saber. Macia. Pura. Original. À espera do risco que lhe ia acontecer.
Era uma vez uma maçã talvez. E um traço. E outro. Um telhado? E um ovo deitado. Dois gomos de laranja, mais um triângulo bem afiado. Duas linhas de pé.
– O que é?
– Um pássaro.
– E voa?
– É pequeno ainda!
– Deixa-o tentar...
– E se cai da folha e fica magoado? E se tomba ao chão e deixa de cantar? E se morre de desgosto por não saber voar?
– Amanhã, então.
– Ajudas-me?
–Tens de ser tu.
Grande é a vontade de voar! Toca a recomeçar. Cabeça e coração alinhados no lugar. Mas aquela mão desobediente, sem mãe nem pai nem Deus que a oriente. Uma. Duas. Três, toca a riscar. Ai Mão-Cega, ai que jogo mais difícil de jogar! Quatro, cinco, seis, vai de apagar. Rasga-se a folha infernal. Voa a bola de papel amassado em vez. Faz ninho do cesto onde pousou. E o pássaro que havia de ser? Hibernou.
Eis o Inverno já passado. A Primavera a passear. Já corre de novo o risco.
Revisão: A de Asas. B de Bico. C de Cabeça. D de Desafio...
– Mãe, quem desenhou a linha do tempo? Como posso apagar um mau momento?
– Porque não vais brincar?
– Depois...
Cresce um dia igual aos outros de uma semana habitual. A folha de papel levanta voo finalmente. Tímida, primeiro. Quase um segredo para se guardar. Depois, aberta de par em par.
– Olha, mãe!
O pássaro subiu, subiu até ao sol e desceu até ao mar.
– O que foi que lhe deu? Caiu? Morreu? Não aguentou sonhar?
– Não sei, meu amor. Não sei.
– Que mal fiz eu? A cabeça. O bico. Um corpo de pássaro. Um par de asas. A cauda. Duas patas e pernas na perpendicular. Estava tudo no seu lugar. NÃO QUERO MAIS DESENHAR.
– Não chores. O momento ideal há-de chegar. Olha, amor, lá longe!
– Onde? Onde?
– Ali. No futuro!
Um V de Vontade fugia pelo canto da folha azul sem nuvens, em breve apenas um ponto preto no horizonte. Estava vivo o pássaro afinal!
– Onde está ele agora, mãe?
– Na tua Imaginação.
Estávamos as duas sentadas junto ao mar, eu e a criança que fui. E então desenhei-lhe esta carta na areia e assinei com G de Gratidão.
Figueira da Foz, 1 de Junho
Constança, uma fulva trintona, foi comprar uma máscara capilar hidratante. Joana colocou sobre o balcão um frasco de compota de abóbora biológica com amêndoa. – Está em promoção, – disse. O patrão queria livrar-se daquele stock quase no fim da validade. Constança recusou: não precisava. – Ora – continuou a empregada – precisa, sim. É adoçada com stevia. A abóbora é rica em vitaminas A,C e E, e potássio, além de ter propriedades antioxidantes. Nutre e retarda o envelhecimento do cabelo. E protege dos danos do sol. Aplica após a lavagem, faz uma pose de 3 minutos e enquanto espera faz esfoliação corporal graças à amêndoa de Foz Côa. E para evitar o desperdício chama a sua amante para lamber o seu doce e goza um orgasmo extra. É 3 em 1!
Constança, vegetariana, cliente habitual da única loja vegana do bairro, achou que Joana tinha andado a fumar erva mais poderosa que o habitual tabaco. Ainda que nova ali, costumava esticar-se na oratória, mas nunca como desta vez. Constança não fez escândalo. Levou a compota e telefonou ao patrão, seu conhecido. Joana não sofreu repreenda nem procedimento disciplinar. Uma semana depois o seu contrato não foi renovado. Quando lhe comunicaram o facto, apenas disse, com desprezo:
– Gente que gosta mais dos animais que de pessoas.
Uns meses depois havia corrida e marcaram uma manifestação junto às portas da praça de touros da cidade. Cerca de 100 pessoas e alguns cães fizeram parar o trânsito, sob vigilância da polícia. Constança compareceu com um cartaz contra o sofrimento animal. O seu olhar e o de Joana cruzaram-se. Aproximaram-se e juntas agitaram concertadamente os seus papelões no ar aos gritos de Cultura sim, tortura, não! , até ficarem roucas e quase despenteadas.
– Queres vir tomar um chá quente?
Constança seguiu-a. Pararam no ecoponto para deixar os cartazes. Joana vivia sozinha com cinco gatos num T1. Entraram para a cozinha. Na mesa, alinhados, estavam três frascos de compota de abóbora com amêndoa e pão integral numa cesta. Depressa o chá fumegava histórias. Tinha uma Pós-Graduação em Filosofia Contemporânea. Nunca conseguira dar aulas. Quando a conversa chegou ao fundo da chávena, Joana pegou num dos frascos e desapareceu, seguida pelos cinco gatos. Constança ouviu água a correr. Olhou. Havia vapor no hall. Foi e abriu a porta recortada a luz. Joana massajava compota no corpo. Constança despiu-se com avidez. Quando entrou na banheira, perguntou, timidamente:
– Como adivinhaste?
18/10/19 - O Amor, uma cabana ... um frigorífico (6)
– Apresento-vos o Marquês. É Português. Vai ajudar-nos à festa, mais logo – disse Luísa, retornando à cozinha.
Na sala, os convidados acercaram-se dele mas isso não impediu o Marquês de notar uma pequena encantadora, de verde esmeralda, no extremo da mesa. A curva pronunciada da sua cintura parecia esculpida mesmo à medida da mão de um homem.
Luísa trouxe o bolo de aniversário por si confeccionado para Norberto. Como se tivesse adivinhado os pensamentos do Marquês, conduziu-o e ao seu objecto de desejo até à cozinha. Fechou a porta e a luz atrás dos dois.
A luminosidade das velas entretanto acesas na sala a todos envolveu numa atmosfera aconchegante ao redor da mesa.
– Parabéns a você... – começou Luísa, logo seguida dos convidados.
O aniversariante, de cabelo acinzentado curto e denso, cantava, sorrindo:
– Nesta data querida…
De repente...
– Muitas fe-fe...
...voltou ao princípio.
– Parabéns a você…
Todos riram. Sempre brincalhão. Mas quando ele deixou cair na mesa a faca de cortar bolo que segurava, agarrando-se depois à cabeça, parecendo ter dores, Luísa, exclamou:
– É um AVC! Chamem uma ambulância! Acendam a luz.
Luísa empurrou a cadeira de rodas para onde havia espaço. Examinava-o procurando acalmar-se, acalmando-o. A boca ao lado confirmava-se.
Norberto ficara em observação. Era cedo para prever o futuro. Chegada a casa, acompanhada pela incógnita, deitou-se. Ela sabia que eram necessários mais exames para apurar a causa do acidente isquémico. O cansaço venceu-a.
A sede despertou-a pela manhã. Na cozinha lavou e fatiou laranjas e maçãs na tábua. Cortou os morangos maduros. Juntou tudo num jarro, mais uns bagos de uva branca e um gole de licor de laranja.
Abriu o frigorífico. A garrafa de Marquês de Marialva estava colada à de água gaseificada. Aquele par lembrou-a do seu casamento, um ano e meio atrás. Norberto vestido de castanho mel, ela de verde, ele, enorme, ainda que sentado, ela, uma miúda. A jovem enfermeira, que viera a Portugal de férias, despedira-se depois do Brasil para casar com um velho aleijado e sem dinheiro. Morariam num R/C degradado com vista para a fábrica, origem da reforma antecipada do operário por incapacidade. O amor era aquilo. Não trocaria aquela cabana por outro lugar no mundo se era onde ele queria estar.
Acrescentou o espumante e a água com gás. Misturou. Faltava o gelo. Dois copos. Encheu-os.
– À nossa! – disse. Bebeu um a seguir ao outro. E outro. E outro. Até conseguir chorar.
17/01/20 - Extra para O Amor, uma cabana ... um frigorífico (6)
Leonilde, empregada de limpeza, conheceu Raul enquanto regateava o preço de um Poirot e o imaginava na sua cama a folhear o Kamasutra. Ele já não tinha todos os dedos nem ela o juízo completo. O dia amanheceu na forma de um pedido de casamento:
– Casa comigo. Nunca mais terás de comprar um livro.
Um ano depois viviam nos arrabaldes de uma cidade perdida. Nunca faltavam à missa exceptuando se andavam longe, fazendo feiras de velharias. No regresso, depois do almoço habitual no Centro Social Paroquial, sempre visitavam o prior.
– E novidades da terra?
– O Engenheiro Garcia.
– Que descanse em paz.
– Raul, como vai o negócio? Não é fácil viver com esse infortúnio...
– Sr. Padre, não o é. Três dedos chegam para fazer o sinal da cruz. – E sorria. – Esse Engenheiro é o que morava na vivenda azul?
Daí a dias tocavam à porta do falecido para apresentar sentimentos:
– ...e se tiver por aí alguns livros que estejam só a ocupar espaço, nós podemos ajudar.
Certa vez Leonilde trouxe do lixo uma televisão que ainda funcionava. Colocou-a numa pilha de livros. À Sexta nunca mais perdeu o Concurso que dantes via no café. Enciclopédias faziam de banco. Então uma camioneta veio descarregar um frigorífico enorme. Telefonara e acertara na resposta. Mas Leonilde ligou-o e o quadro eléctrico estoirou.
– Serve de estante, – resolveu Raul.
Estavam nisto quando a TV bateu à porta para os transformar em estrelas por um minuto.
A coberto da noite, entre romances, confessou-lhe:
– Assaltei a casa de um ricaço. O meu cúmplice foi preso, os cães perseguiram-me pinhal adentro. Ia perdendo as duas mãos. Safaram-se estes, – disse sorriu, afundando os dedos nos pelos púbicos dela.
Leonilde saiu da cama. Voltou da cozinha e saltou-lhe em cima, colando-lhe uma faca gelada ao pénis:
– Voltas a mentir, capo-te.
Dito isto, cavalgou-o com fúria.
Nem um mês volvido, Raul entrou de rompante na velha casa.
– Onde o guardaste?
Pela porta forçada a pontapé entraram dois colossos que caíram em cima do maneta. Leonilde, atirada contra a parede, desmaiou. Voltou a si e Raul no chão, de olhos temerosos nela:
– O envelope?
– No frigorífico.
– Vai ver. Vasculharam tudo.
Ali estava, no congelador, atrás dos seus livros preferidos. Abriu-o. Era a primeira edição dos sonetos de Antero de Quental. Lembrava-se do célebre roubo ter sido notícia há alguns anos.
– Leonilde! – chamou Raul, tentando levantar-se.
Da cozinha chegou-lhe aos ouvidos um som metálico.
11/10/19 - Engarrafamento no purgatório (5)
À minha frente, na fila, o inconfundível Mercedes-Benz 70K Grosser Offener Tourenwagen está parado na portagem da auto-estrada. IA v 148461. O branco da chapa de matrícula daquele sarcófago negro e cromado fere-me a vista. A capota recolhida deixa ver o casal sentado no banco corrido. Apeio-me do meu híbrido batido e passo por eles a coxear a caminho das cabines da portagem. Espreitei pelo canto do olho para confirmar a suspeita. Hitler e Eva conversavam felizes, alheios ao desconcerto de buzinas que soava à sua rectaguarda num cortejo interminável.
- Hou portageiro? Houlá! Hou!...- chamei, acenando a mão para a cabine branca envidraçada. - Ah, portageiro! Não me ouvis? Respondei-me!
Os sinais luminosos da portagem continuam vermelhos quer para a direcção CÉU quer para a direcção INFERNO. À minha esquerda, as muitas faixas da via em sentido inverso estão desertas.
- Hou lá da portagem, hou lá! Que aguardais? - gritei mais alto, esbracejando agora para o vulto na cabine preta.
Não devia estar aqui. Ainda agora faleci num acidente a caminho de Lisboa. Não era suposto assistir primeiro a um filme da minha vida? Eu e aquele parido do demónio, o Hitler, presos num engarrafamento no purgatório?! Que pena estar morta e não poder publicar esta história no Facebook. Ia tornar-se viral! Nah. Ninguém acreditaria.
- Hou da portagem! - berrei de novo para o portageiro, as mãos ao redor da boca que me sabe a álcool e sangue.- Nom percamos mais maré! Aquele deve servir Satanás, pois sempre ele o ajudou, - bradei, apontando Hitler, que, sentado ao volante, afastava da testa a franja de cabelo.
Impaciente, a cabeça dorida, pedi o livro de reclamações. O portageiro desceu da cabine e veio entregar-mo, contrafeito. No meu carro encontro uma oportuna esferográfica caída no tapete. “Exmo. Sr. Deus”, - escrevi. - Houve um erro do sistema. Hitler, de quem já deve ter ouvido falar, não devia estar aqui. O purgatório está engarrafado. As pessoas estão mortinhas por chegar ao destino mas o trânsito parou. O portageiro nada faz. Como entidade superior, peço que interceda para repor a normalidade”.
Não me lembro de tudo o que aconteceu depois. Na via da RESSURREIÇÃO, aberta ao mundo nessa longa noite, vimos os sinais luminosos ficarem verdes. O ruído de milhares de motores em trânsito e buzinas em festa abafou o da nossa fila única.
Não ganhei o céu. Nem Hitler.
04/10/19 - A Beatriz disse que não. E agora? (4)
Dois levaram-na até à mesa quadrada e forçaram-na a sentar na cadeira. À sua frente, sentado noutra, o homem vendado sorria de boca fechada. O Outro, que não mais pararia de andar à volta deles como um cavalo num redondel, acercou-se dela pelas costas e, puxando-a pelo queixo com uma mão, penteou-lhe os cabelos para trás com os dedos da outra, quase carinhosamente.
- Sim ou não, Beatriz?
Silêncio.
- Arménio, continua.
O homem ergueu a mão direita acima da cabeça grande.
- Ouço dizerem que torturamos pessoas. Fico triste. Nós apenas as convencemos a dizer a verdade. Beatriz estremeceu.
- Vamos. As duas mãos sobre a mesa. Dedos bem abertos. Olha, assim, como estrelas do mar. Já falámos disto antes.
Em Beatriz nem os olhos pestanejam.
- Vamos lá, Beatriz. Não me obrigues a usar de novo a força.
Beatriz cumpre. Levanta os braços que lhe pesam toneladas e deslisa-os sobre a superfície de madeira. Então o homem vendado baixa o seu braço sobre a mesa e um estrondo ecoa pela sala mal iluminada. Ela sentiu o choque entrar-lhe pelas mãos. Todos os ossos tremeram dentro de si. O coração queria fugir dela, fugir dali. De novo o impacto. Impossível gritar, respirar já doía que bastasse. Os nós dos dedos alteavam-se-lhe, mas as suas cabeças estavam coladas com medo à superfície da mesa marcada e suja. O enorme martelo imobilizara-se entre o indicador e o polegar.
Um breve alívio.
À pergunta de sempre Beatriz deu a resposta de sempre.
- Ouviste, Arménio? A Beatriz disse que não. E agora?
Arménio sorria como se nem estivesse ali. Limitava-se a erguer o braço telecomandado e a deixá-lo cair pesadamente na mesa, uma e outra vez.
Os Dois vieram buscá-la.
Beatriz sentou-se na cama a chorar. Soprou ar quente nos dedos feridos. Jamais voltaria a conseguir tocar piano como dantes. Adormeceu fetal, de mãos recolhidas nas axilas.
Uma mosca insistente batia na vidraça. O sol nascera. Beatriz culpou-a por ter despertado mais cedo para o horror. O insecto pousou na mesinha de cabeceira. Ela desferiu um golpe que sobretudo a magoou. Daí a pouco os Dois voltaram para levá-la à arena.
- Beatriz. Sou paciente, como já deves saber. É uma pergunta simples. O Arménio só está aqui para te ajudar a lembrar.
O braço no ar. Um baque seco. A lâmina do cutelo aterra bem longe da mão nervosa de Beatriz.
27/09/19 - Um momento marcante (3)
2007. Estavam juntos há 453 dias, 2 horas e 34 minutos. Ela adormecera à sombra do guarda-sol, ele banhava-se de luz, os corpos a desenharem um ângulo recto. Os pés de Isabel descansavam sobre o azul dos calções de praia dele. José soerguera a cabeça ao assobio do nadador-salvador. O seu olhar encalhara nos pés morenos dela.
Uma nuvem tapa o sol e o ar arrefece. A sombra percorre vagarosamente o areal. O apito soa de novo. José ergue o tronco apoiando-se nos cotovelos. Um incauto que mergulha com a bandeira vermelha hasteada. Ajeita-se para se deixar ir ao encontro da toalha quando repara nela. Como é que nunca a tinha visto? O banhista sai das ondas de calções colados ao corpo e o nadador-salvador aproxima-se. José não os consegue ouvir e a sua atenção retorna ao pé de Isabel.
Até àquele momento imaginava-se capaz de navegar o corpo daquela mulher de olhos fechados. Num segundo, o pé direito de Isabel envolvera aquele final de tarde num mistério. Talvez um acidente em criança? Estranhava que ela nunca lhe tivesse contado. Uma queda? A sua pequena Isabel beneficiava-se do uso diário de sapatos arriscados que calçava com a leveza de uma bailarina e a segurança de uma modelo. Inicialmente, ao final do dia, descalça, ele admirara-se com o desnível do seu abraço. A altura ideal para escutar o teu coração, dizia ela.
Isabel, despertada pelo toque fresco do vento, a pele arrepiada e os pelos dos braços eriçados como o estorno das dunas, retira sem aviso os pés das pernas de José e senta-se na toalha desconsolada.
-Vamos embora?
José não queria sair da praia sem actualizar a sua carta de marear. A zona desconhecida que avistara, virgem, tinha de ser conquistada. Mas receava o melindre. Deveria ignorar aquela ilha? Se ao menos o nadador-salvador içasse uma bandeira sinalizadora para si! Arriscou, de supetão, a pergunta, apontando os 2cm de pele enrugada a meio do pé direito, do lado de fora, perto da palma.
- O quê?! - questionou Isabel, com espanto. - Isto? É da vacina do BCG.
- No pé?! - admirou-se ele.
- Sim! Um episódio muito marcante da minha curta vida de bebé! Alguém que não sabia o que fazia. Tive imensa febre. O pezinho ficou no dobro. Possivelmente um abcesso! É assim que tenho estes bracinhos lindos sem cicatrizes! Como é que nunca reparaste neles, José?!
20/09/19 - O amor e um estalo (2)
- Foda-seeeee! Marta! Mas o que foi isso?
Óscar agarrava-se ao nariz dobrado sobre si mesmo. Aquela dor e o ardor que sentia na face esquerda confundiam-se. A rapariga, afogueada, imobilizara-se, as mãos sobre a boca numa oração, os olhos muito abertos a suplicarem desculpas:
- Amooorr – pronunciou, arfando, - amor.
Foi até ao quarto de banho a cambalear. A luz ligou-se e em frente ao espelho o jovem examinou-se. Os olhos lacrimejavam. Observou que pequenas gotículas de suor reluziam sobre a testa. Havia uma pequena mancha escura sobre a pele que cobre o osso zigomático ali onde a barba por fazer começava a desenhar-se. Decerto um pequeno corte que deixava o sangue aflorar. As unhas da sua mulher, pensou. E quando é que ele teria coragem para lhe dizer que detestava aquelas extremidades decoradas? A doce Marta ia todas as semanas à Julinha cuidar daqueles apêndices. Tinha orgulho naquilo. Aparecia-lhe com desenhos coloridos e vidrinhos lá colados. Mostrava-lhe aquela galeria de arte moderna como se fosse um happening. Tinham um acordo tácito: ele sorria às unhas exóticas, ela a cada nova tatuagem dele, que, juraria, a envergonhavam. Um futuro médico dermatologista com a pele coberta de desenhos. Não era adequado.
O seu cabelo estava alvoroçado. Queria tê-lo cortado para a Lua de Mel mas o tempo esgotara-se.
Leques de luz desenhavam-se na parede do quarto a partir dos candeeiros em mesinhas de cabeceira de mogno negro que ladeavam a cama. O espaldar alto estava escudado por um ninho de almofadas. Marta, transpirada, não mexia um músculo. Apenas os olhos viajavam no vazio como se em busca de algo aparentemente invisível mas que ela não duvidava estar ali. Talvez uma boa explicação para o que acabara de fazer.
Não fora o ar condicionado não se aguentaria pernoitar naquele hotel histórico. Que horas seriam? Da rua chegava ainda o ruído dos bares. Uma péssima ideia de viagem. Agosto. Calor. Multidões. Ruas sujas. Muito Tinto de Verano para empurrar a decepção. E o salmorejo que ainda corropiava no estômago.
Na palma da mão Óscar viu mais sangue. Aproximou-a. O que era aquilo? Pelos?! Sentiu a tesão crescer e apressou-se a abrir a torneira para passar água no rosto e regressar à cama.
Marta enrolou-se nele como uma aranha que envolve a presa numa teia.
- Desculpa, amor, - sussurrou, beijando-o. Mas com o vírus do Nilo todo o cuidado é pouco.
13/09/19 - Problemas, apenas problemas (1)
O pai acordara novamente de rabo para o ar. O Luisinho ouvira esta expressão na boca de uma auxiliar do Jardim de Infância e, desde que a mãe lhe dissera para não dizer rabo, nunca mais ousou pronunciá-la. Estavam a tomar o pequeno-almoço, já vestidos para sair.
- Pai, sabes qual é a diferença entre um gafanhoto e um louva-a-deus?
- Bebe o leite antes que arrefeça, filho.
- Mas, pai, eu bebo sempre o leite frio, pai.
O pai segurava o pão integral com a mão esquerda e mastigava roboticamente cada dentada. A mão direita elevava a chávena almoçadeira à boca como a pá da máquina escavadora nas obras da rua da escola. O seu olhar andava longe.
- Bebe isso, filho. O trânsito está difícil junto da escola. Queres chegar de novo atrasado?
O Luisinho fitou o íman no frigorífico: “Não cresças. É uma armadilha.” Sempre que a mãe ia aos congressos internacionais, o pai ficava estranho. Desta vez perguntou-lhe o que ele tinha.
- Problemas, apenas problemas. Coisas dos adultos, filho. Bebe o leite, vá lá.
O Luisinho ficou intrigado. Coisas dos adultos? Durante o dia, na escola, o Luisinho também tinha muitos problemas. A professora projectava no quadro problemas de livros - ANA RECEBEU UM LIVRO NO NATAL. JÁ LEU 129 PÁGINAS. FALTAM 87 PÁGINAS PARA ACABAR DE O LER. QUAL O TOTAL DE PÁGINAS DO LIVRO?- e problemas gulosos - PARA A FESTA DE ANIVERSÁRIO A MÃE ENCOMENDOU 3 CENTENAS DE BRIGADEIROS E 5 DEZENAS DE QUEQUES. QUANTOS DOCES ENCOMENDOU A MÃE? Não era só o pai que trazia problemas para casa. Ele também: TENS UM ESTOJO COM 46 LÁPIS MISTURADOS E DESSES, 13 SÃO AZUIS. QUANTOS LÁPIS DE OUTRAS CORES GUARDAS NO TEU ESTOJO? Este problema era até um verdadeiro enigma porque o Luisinho nem tinha 46 lápis no estojo, apenas 12, um de cada cor.
Ao jantar, os dois sentados à mesa, de banhos tomados e roupões vestidos, o pai comunicou:
- A mãe regressa amanhã. Vou buscá-la de tarde ao aeroporto.
O Luisinho, olhos baixos na sopa, girava a colher no prato desenhando um círculo infinito.
- Come a sopa, filho. Vá lá.
- Está quente.
- Assopra, filho.
O Luisinho soprou e a sopa voou para a toalha. A cor de cenoura alastrou no linho cru.
- Luisinho! Andas impossível, filho! O que se passa?
- Problemas, apenas problemas, pai.
06/09/19 - O início
Até há uns minutos não sabia que existia um blogue de nome Desafio dos Pássaros. A descoberta deve-se ao calor. Este escritório está quente do chão ao tecto. Não se aguenta apesar do vento morno que entra pela janela. A ventoinha do computador não pára de chiar, a cadela de ofegar e até o rato parece transpirar sob a palma da minha mão! É uma tarde imprópria para máquinas, todo o tipo de animais e humanos! O meu cérebro pediu um intervalo misericordioso e eu dirigi-me ao Blogger em busca de refresco sob a forma de palavras. No topo da Lista de leitura apareceu a Dona Redonda anunciado um desafio de escrita no dito blogue dos Pássaros, um desconhecido para mim, o que não espanta. Pertence ao charquinho dos batráquios, o meu fica-se pelo pântano mais antigo, o Blogger, de onde esta sua escrava raras vezes emerge para conviver em paragens mais verdes.
Diz-se que nunca devemos tomar decisões de cabeça quente, talvez não me devesse ter inscrito no Desafio. Por outro lado, sinto que a decisão não foi tomada pela cabeça e antes pelo coração. Quem me conhece sabe o quanto adoro pássaros. E desafios. Nunca me propus tal: o tempo nunca chega. Mas nunca digas nunca. Um desafio dos pássaros soava-me bem mesmo que o meu cérebro amolentado mal conseguisse prever o futuro do meu irreflectido acto. Inscrevi-me sem pensar muito. De repente o meu cérebro antes tão entorpecido parece que voava. Dei por mim a pensar nas infinitas possibilidades que o desafio da escrita podia revelar: coisas frescas para ler todas as semanas, a descoberta de um novo bando, novas partilhas.
Espreguicei as asas e enchi o papo de ar. Fiz-me ao Desafio dos Pássaros e manifestei o meu receio à passarada: “ 17 semanas. Muito milho para o meu papo.” A bem da liberdade, que nenhum pássaro se sente bem aprisionado numa gaiola, podemos desistir. Mas esta ave não gosta de desistir. Nem que perca as penas uma a uma, nem que fique careca como um pobre frango de aviário, esta ave há-de conseguir chegar ao fim. Ou então, não. Tombará de bico rombo sobre o teclado. RIP avesinha doida.
É perigoso tomar decisões de cabeça quente. Mas isso só se vai saber daqui a muitos voos. Para já, prepare-se uma boa ração de sementes e água fresca que a viagem está quase a começar.
Os participantes no Desafio - lista
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