O mundo já foi mais fixe - Nuno Camarneiro


Fomos para a rua vestidos de branco. Pois foi, pois foi...Contestar através de ações simbólicas, chamar a atenção para uma causa, demonstrar solidariedade: era o mínimo que podíamos fazer, uma singela prova da nossa humanidade. Mas o mundo não era mais fixe, apenas não tínhamos hipótese de saber tão facilmente o que os outros pensavam além do universo de uma mesa de café e uma página de jornal. E também havia mais pudor em pendurar o ódio na corda pública. Hoje exibe-se ativamente como uma medalha. Grita-se. Esgrime-se como se fosse um argumento justo. Alguns escreveram que a flotilha não passa de circo, o que certamente fará dos seus integrantes meros palhaços, indivíduos como Mandla Mandela, neto de Nelson Mandela, que dela fez parte, e que justificou assim a sua presença na delegação sul-africana. "Como africanos, sabemos muito bem o que significa viver sob ocupação, sob opressão." Criaturas confortáveis e ufanas com a sua arrogância, intolerância, o seu bem nutrido desprezo pelos outros, estão por todo o lado, sempre estiveram. Viviam no nosso prédio, aviavam-nos a fruta no mercado, viajavam connosco no autocarro, patrulhavam as ruas. E é por isso que o mundo é um lugar de sangue quando podia ser de paz. Nós somos assim, um mix de civilizados e asselvajados, sempre fomos, e temo o dia em que possamos vir a descobrir em que exata percentagem.

"O Mundo já foi mais Fixe

1992 - Em resposta ao Massacre de Díli, feito pelas tropas indonésias, a sociedade portuguesa uniu-se em defesa da população timorense e teve lugar a iniciativa "Lusitânia Expresso", organizada pela revista Forum Estudante, onde um Ferry-Boat tentou ir até Dili para depor uma coroa de flores no cemitério de Santa Cruz. Todos nos solidarizámos com o projecto, betinhos do CDS cantavam a plenos pulmões o "Ai Timor", saímos à rua vestidos de branco, e sofremos muito por gente que não conhecíamos.
2025 - Em resposta ao massacre da população palestiniana , é organizada uma frota de pequenas embarcações para levar alimentos e outros bens essenciais à população de Gaza. Uma deputada e uma actriz de relevo portuguesas associam-se e incorporam a flotilha. As redes sociais gozam com uma e outra, é dito e repetido que aquilo não serve para nada. Assim que os participantes são detidos, de forma pouco clara, pelas autoridades israelitas há um regozijo generalizado das redes e dos orgãos de comunicação social.
"Que estupidez, só querem aparecer..."
33 anos separam uma e a outra iniciativa, mas parece um milénio. Estamos mil anos mais cínicos, mais dessensibilizados, mais inertes e mais estúpidos.
Que diriam as redes sociais das acções de Gandhi, Mandela ou Martin Luther King? Que memes divertidíssimos teriam desencadeado?"


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