Elevador da Glória - opinião de Eduardo Maltez Silva
Elevador da Glória e o Político inglório.
16 mortos, dezenas de feridos, o Elevador da Glória transformado em cenário de tragédia.
Muitos quiseram logo resumir tudo a uma “falha técnica” ou a um “acidente inesperado”.
Muitos quiseram desde o primeiro minuto silenciar qualquer responsabilização.
Muitos usaram os corpos dos mortos como escudo de qualquer crítica.
Mas os acidentes como este nunca caem do céu: resultam de decisões políticas, de orçamentos cortados, de contratos mal fiscalizados, de redundâncias inexistentes e de alertas ignorados.
Neste trabalho complexo de investigação segui essa linha até ao fim — e ela desemboca inevitavelmente no gabinete de Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa e accionista único da Carris.
A Carris não é “apenas uma empresa”.
É um braço da Câmara de Lisboa: tem forma de S.A., mas o accionista único é o Município. É a Câmara que escolhe a administração, aprova planos e orçamentos, define orientações e pode mandar fazer auditorias.
A Assembleia-Geral da Carris é, na prática, a própria Câmara — não há “muralha” entre política e gestão.
O dinheiro também mostra a tutela.
O serviço existe porque a CML financia a operação através de compensações por serviço público.
Lucros ou prejuízos pertencem ao Município: se houver saldo, fica no universo municipal; se houver défice, é a Câmara que o cobre.
Cada euro gasto em manutenção começa e acaba no orçamento municipal — logo, também nas prioridades políticas.
Em 2022, Carlos Moedas dá luz verde a Pedro Bogas para a presidência da Carris.
Não foi uma escolha inocente: Bogas foi adjunto de Sérgio Monteiro, o secretário de Estado de Passos Coelho que tentou privatizar os transportes de Lisboa, aumentou brutalmente as tarifas e ficou para a história como o rosto da austeridade nos transportes públicos.
Mais tarde, Bogas foi vogal da própria Carris e do Metro, nos anos em que se tentou entregar ambos à Avanza.
Em 2022 regressou pela mão de Moedas, trazendo consigo a mesma escola de pensamento: cortes, outsourcing e a lógica de tratar o serviço público como despesa a abater.
Portanto, quando um sistema falha, não falha uma “empresa independente”; falha uma cadeia de comando que tem rosto político, orçamento político, decisões e decisores políticos.
Em 2018, com Medina como presidente da Câmara, o Elevador da Glória descarrilou. Um descarrilamento neste tipo de elevadores não é normalmente fatal, pois permanecem presos ao cabo de aço.
Ninguém morreu, mas foi o aviso claro de que as redundâncias e seguranças tinham de ser reforçadas.
O que fez a Carris?
Adjudicou a manutenção a uma pequena empresa, a Main Maintenance Engineering, que tinha no portefólio piscinas municipais e pouco mais.
Curioso é que essa empresa, em 2012, deixou de ser sociedade unipessoal para passar a sociedade por quotas, sendo que, só em 2022 o objecto social passou a incluir:
“…fabricação e manutenção de ascensores, monta-cargas, teleféricos, escadas e passadeiras rolantes e de transportadores similares, incluindo a fabricação de acessórios, partes e peças destes equipamentos. Actividades de instalação, reparação e manutenção de elevadores e escadas rolantes”.
Nessa altura, o preço-base rondava €1 milhão por ano (contrato anual, renovável).
Mas em 2022, já com Carlos Moedas como presidente da CML, assinou-se um novo contrato: “quase” €1 milhão para até três anos — um corte brutal para cerca de um terço por ano face a 2019.
O concurso acabou adjudicado por 995.515,20 €.
Um valor muito menor que o anterior.
A MNTC foi preferida a outras entidades como Liftech, S.A., GMF-Railway Maintenance Services e Gasfomento-Sistemas e Instalações de Gás, S.A., que seriam empresas bem mais antigas que a MNTC e possivelmente mais experientes.
Pela diferença entre o preço-base e o preço de adjudicação, fica a sensação de que algo de muito errado se passou.
A justificação formal foi “estreitar o objecto” e partilhar custos por outros contratos; para o cidadão — e para a segurança — o efeito é óbvio: menos músculo financeiro e técnico directamente dedicado aos elevadores.
Valor curto para infra-estruturas críticas que transportam milhões de pessoas.
Vamos aos relatórios e contas da empresa MAIN.
Em 2024, facturou no mercado nacional 1,288 milhão €, mas com apenas 28 colaboradores, 34.321 horas trabalhadas, meio milhão € em remunerações, 166 mil € de outros gastos com pessoal, 392 mil € em compras de bens e serviços, 136 mil € de resultados líquidos.
Estes valores indiciam um salário mensal médio baixo, na ordem dos €1.200, mas uma fraca produtividade, com apenas uma média de 25 horas de trabalho efectivo por semana — o que deixa a suspeita que certos serviços de manutenção foram subcontratados a outras empresas. Mais um sinal de alarme.
Chegados a 2025, era preciso renovar.
Abriu-se concurso em abril, preço-base €1,19 milhões. Todas as propostas ficaram acima.
Resultado: concurso deserto.
A Carris admitiu que, mesmo aumentando o tecto para €1,5 milhões, continuava a ser insuficiente.
É o retrato clássico da desorçamentação: definir preços impossíveis e esperar milagres… ou forçar as empresas a cortes na segurança para ganhar contratos.
Só o Elevador da Glória transporta mais de 3 milhões de passageiros por ano; com bilhetes a €4,20, isso equivale a receitas na ordem dos 12 milhões anuais.
E quanto custa a manutenção anual de todos os funiculares (Glória, Bica, Lavra e Santa Justa juntos)? Cerca de €333 mil.
A disparidade é gritante: entra dinheiro às mãos-cheias, mas investe-se uma ninharia em segurança e manutenção.
Fica a pergunta incómoda: quanto desse dinheiro voou para Web Summits, propaganda com outdoors e festas da CML em vez de garantir que os elevadores não se transformavam em armadilhas mortais?
No dia 31 de agosto, o contrato de 2022 caducou.
A 1 de setembro, a Carris assinou à pressa um ajuste directo de cinco meses com a mesma empresa — um “contrato-tampão” para manter a operação após um concurso falhado.
Mudou ainda mais: prazo curtíssimo, regime de excepção, fiscalização fragilizada pelo tempo e pela urgência.
Dois dias depois, suspeita-se de falha num cabo (causas sob investigação) e o elevador descarrilou, matando 16 pessoas.
No dia da tragédia, a Carris exibia um relatório de inspecção feito horas antes.
Tudo “OK”.
Se estava tudo bem, como é que duas carruagens se transformaram em armadilhas mortais?
Ou as inspecções não valiam nada, ou a manutenção era apenas um carimbo burocrático para cumprir calendário.
Por alguma razão os eléctricos deixaram de ter fiscalização sempre presente durante as operações (24 horas) para uma de apenas 30 minutos.
Em todos os casos, o problema não é técnico: é político.
Convém separar as águas: responsabilidade política não é culpa penal (pelo menos até agora).
Ninguém pede que Carlos Moedas seja acusado de homicídio (pelo menos até agora).
Pede-se o mínimo: que assuma que, enquanto presidente da Câmara e dono da Carris, é o responsável político por uma infra-estrutura que falhou de forma catastrófica.
É isso que diferencia uma democracia madura da propaganda barata: não é arranjar um bode expiatório — é reconhecer que as estruturas públicas têm responsáveis visíveis e com nome próprio.
E atenção, havia alertas.
Sindicatos e trabalhadores denunciaram falhas sucessivas na manutenção.
Houve queixas, houve relatórios.
Nada levou a uma auditoria externa independente exigida pela Câmara. Nada levou ao reforço de meios.
Pelo contrário: preferiu-se outsourcing mal vigiado, contratos em queda de valor, ajustes à pressa e um jogo de empurra que, no fim, caiu em cima de 16 vidas.
A linha que conduz a Carlos Moedas é directa.
Foi a Câmara de Moedas que nomeou e validou o Conselho de Administração da Carris.
Foi a sua equipa que aprovou orçamentos insuficientes e permitiu a redução efectiva do esforço anual face a 2019.
Foi a sua Câmara que deixou caducar contratos e assinou ajustes directos em desespero.
Foi sob a sua tutela que as denúncias dos trabalhadores foram ignoradas.
O resto são cortinas de fumo a que esta gente já nos habituou.
O Elevador da Glória não caiu apenas por causa de um cabo partido... ou de um azar.
Caiu porque Lisboa é governada como se tudo estivesse sempre “em dia”, mesmo quando os relatórios são uma farsa.
Caiu porque a Câmara preferiu orçamentos em queda, contratos fragmentados e ajustes directos de emergência à segurança, à transparência e à assunção de responsabilidades.
Isto não foi um raio caído do céu.
Foi uma tragédia anunciada, resultado de más escolhas políticas.
E o responsável político chama-se:
Carlos Moedas.
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