Porque é que chamo vítima a Imane Khalif


No combate com a italiana Carini, que desistiu após 46 segundos. Pugilista não desistiu por considerar que estava a combater com homem, apenas por dores no nariz. Pediu desculpas por não ter apertado a sua mão no final,  estava “zangada” porque a sua participação nos Jogos Olímpicos de Paris tinha chegado ao fim, mas nada tinha contra a colega.“Se o Comité Olímpico Internacional diz que ela pode lutar, eu respeito essa decisão. Toda esta controvérsia deixou-me triste e também tive pena da minha adversária."
Após a segunda vitória, Khelif, que enfrentou dias de comentários odiosos e falsas acusações e questionamentos sobre seu género após sua primeira luta contra uma oponente italiana, desabou em lágrimas.


Esta fotografia mostra Imane como Embaixadora da UNICEF na Argélia


Fotografada com a família, veste de rosa. Cresceu em Ain Mesbah, uma aldeia rural onde tradicionalmente apenas meninos brincavam ao ar livre, e meninas raramente saíam de casa. Fi viver com os tios para poder ficar perto do ringue de treinos. A mãe dela e Imane vendiam sucata de cobre para cobrir seus custos de treinamento. Mesmo numa cidade maior enfrentou críticas. Era incomum uma garota estar longe da família e fazer boxe. Três anos depois de se mudar para a casa de seus tios, ela  juntou-se à seleção argelina e competiu no Campeonato Mundial Feminino de 2018, onde ficou em 17º lugar após ser eliminada na primeira ronda.

No Campeonato Mundial de boxe de 2023, Khelif foi desqualificada pela International Boxing Association (IBA) por falhar num teste de elegibilidade de género. Parece que essa decisão coube apenas ao presidente da entidade, Igor Kremlev, que afirmou que a atleta tinha cromossomas XY e que tinha tentado enganar as colegas fingindo ser mulher, só mais tarde tendo sido ratificada pela direcção da IBA. A IBA não especificou claramente o resultado desse teste mas afirmou que ela também tinha falhado o teste de testosterona em 2022. A divulgação desta informação desencadeou uma campanha de bullying contra a atleta  alimentada pelo normal cidadão, por algumas personalidades eminentes da política e da cultura, sempre gente conotada com a direita, a extrema-direita e meios conservadores, e todos os que encontram neste caso a desculpa perfeita para atingir a minoria LGBTQ. Entre as afirmações feitas, as mais comuns eram que um trans não devia competir contra mulheres, que se tinha permitido que um homem sovasse mulheres nos Jogos, ou que o desporto feminino estava em perigo. E de repente já ninguém se lembrava da Última Ceia de Cristo e da enorme ofensa feita: um autêntico milagre!

Só que tudo isto é injusto pois, desde logo, se Imane estava nos Jogos foi porque foi autorizada a estar pelo menos por duas organizações: pelo COI e pela federação argelina de boxe. Além disso, a boxeadora argelina nunca se identificou como transexual nem nunca disse que é intersexo, nem há provas que seja. E se por acaso for intersexual são várias as possibilidades pelo que tudo o que possamos dizer é mera especulação. Ela compete em categorias femininas desde 2018, quando iniciou a carreira profissional; muitas peças enganosas afirmam que Khelif treina com homens como se isso indicasse que é homem e que se não tivesse uma vantagem física não o faria, mas é comum que pugilistas treinem com homens. As publicações afirmam também que Khelif seria um “homem biológico” por supostamente apresentar os cromossomas XY no exame feito pela IBA, mas isto não foi efectivamente comprovado pois todo o procedimento da IBA a esse respeito é falho, tendo, inclusivamente, trocado as regras a meio da admissão da atleta à competição. O COI tem afirmado que a IBA  procedeu de forma completamente arbitrária, tomando decisões muito varáveis e sem consistência nem de procedimento nem científicas. No entanto, para muitos é mais fácil duvidar das intenções da Federação Argelina de Boxe, e do COI nos presentes Jogos Olímpicos.  Além disso, a presença deste XY não é impeditiva de ser uma mulher. Há um caso relatado numa revista científica de uma mãe 46,XY que se desenvolveu como uma mulher normal passou pela puberdade espontânea, atingiu a menarca, menstruou regularmente, teve duas gestações sem assistência e deu à luz uma filha 46,XY. Vamos dizer que esta mulher que foi mãe duas vezes sem fazer qualquer tratamento hormonal é um homem porque é XY?

Houve quem tentasse até desacreditar o valor do seu certificado de nascimento, exibido a jornalistas pelo seu pai. Imane cresceu como menina, competiu como mulher, com outras mulheres, desde 2018 que nunca se queixaram dela ser um monstro de força. Inicialmente não era uma atleta excepcional mas foi melhorando as suas marcas. Sem dúvida que deve ter feito exames médicos na Argélia e nunca surgiram dúvidas quanto a ser mulher, que facilmente deveriam ter surgido já que vive na Argélia onde as questões de género nem são para discutir. LGBTQ são perseguidos, até por familiares, o o seu assassinato é tolerado.  Além disso, é proibida a alteração de género em documentos oficiais. Se a atleta fosse um homem e de alguma forma tivesse feito uma cirurgia de redesignação sexual, se fosse realmente trans, não poderia competir sob um nome feminino, uma vez que a legislação argelina não permite essa mudança em documentos oficiais. A Federação Argelina de Boxe jamais enviaria um trans aos Jogos Olímpicos.

No campeonato Mundial de Boxe de 2022 foi testada pela IBA, ganhou a medalha de prata e não houve problemas. No seguinte, em 2023, venceu uma atleta russa e a IBA questiona a legitimidade da vitória com base no teste de testosterona feito em 2022 - quando a tinham deixado competir - e no teste de género que lhe fazem depois de ter batido uma atleta russa. Coincidências? A IBA é financiada por russos, o seu presidente foi re-eleito em 2022 depois de terem desqualificado injustamente o seu oponente!  O homem tem uma guerra pessoal com Thomas Bach  - diz ele, em vídeos, que o presidente do COI é um porco e que o seu lugar é numa pocilga?!- e tem aproveitado tudo o que pode para criar atritos e manchar a imagem dos Jogos Olímpicos.

O Campeonato Mundial de Boxe foi organizado pela IBA, que não é mais uma federação reconhecida pelo Comité Olímpico Internacional, uma decisão inédita tomada em junho do ano passado. A entidade foi excluída dessa função pelo Comité Olímpico Internacional após terem sido detectadas falhas recorrentes na  integridade e transparência da governança, acusada de manipulação de resultados e corrupção. A exclusão, proposta pela diretoria do COI, foi aprovada por 69 votos. Apenas um membro do conselho votou contra a decisão, e dez abstiveram-se. 

A IBA estava suspensa pelo COI desde 26 de junho de 2019 e não pode organizar o torneio de boxe dos Jogos de Tóquio. Rebateu invocando "politização" do COI entre outros argumentos. Em Dezembro de 2023 a IBA renovou o contrato multimilionário com o fornecedor de energia estatal da Rússia, Gazprom. A IBA mantém o russo Umar Kremlev como mandatário. Isso deve ter pesado bastante na decisão do COI pois a IBA continuará a depender de uma empresa que é amplamente controlada pelo governo russo. Na presente conjunctura, a Rússia está punida em praticamente todas as modalidades olímpicas por conta da guerra. A IBA suspendeu a Ucrânia e permitiu a presença da Rússia e da Bielorrússia em 2022. Muitas podem ser as razões que levaram o Comité a banir esta federação, caso único na história do desporto, mas foi nesta teia que caiu Khelif também, não haja dúvidas.

A contestação em torno da participação destes atletas (trans ou intersexo)  na alta competição já existe há muito tempo. Imane Khelif  já participou dos Jogos Olímpicos de Tóquio em 2021 sem ganhar medalhas. Onde estavam os detratores? Quando não ganhou medalhas ninguém questionou nada a seu respeito? O seu aspecto era mais feminino então? Não era um monstro? Nesses Jogos houve atletas desclassificadas em virtude da testosterona, mas não ela foi. Por exemplo, Aminatou Seyni, nigeriana, foi informada de que não poderia correr a a sua prova favorita, os 400 metros, por causa da testosterona alta.

Uma das críticas que se faz a estes testes é que a determinação de quem precisa ser testado tende a levar em conta sensibilidades que nada têm de desportivo ou de preocupação com a segurança das atletas femininas em competição. A verificação específica pode ser motivada politicamente ou incidir naquelas que têm uma aparência masculinizada, assim entendida socialmente, o que pode tornar alvo fácil as mulheres oriundas do continente africano, que não têm uma aparência conforme com o nosso cânone, ainda que nada o justifique, são frequentemente vistas como não femininas o suficiente, muito musculosas, masculinas e até intimidadoras.

Uma mulher pode ter naturalmente níveis altos de testosterona sem ter passado por qualquer tratamento para mudar de sexo, uma mulher com uma condição intersexual pode ter uma aparência masculina.  Também o aspecto não serve para classificar uma mulher como homem ou trans ou intersexo. Quem se lembra de Valentina Sampaio? Quem duvidaria da sua feminilidade ao ver esta fotografia?

Campanha de desinformação, ignorância e preconceito confluíram e levaram a que um mundo de gente interpretasse da forma que mais lhe conviesse o aspecto físico de Imane num bullying expressivo, mais enraizado no preconceito do que na defesa da competição justa.

A competição de boxe nas Olimpíadas de Paris foi organizada pela Unidade de Boxe de Paris (PBU), estabelecida pelo Conselho Executivo do COI, e a garantiu que “Todos os atletas participantes do torneio de boxe dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 cumprem com os regulamentos de elegibilidade e inscrição da competição, bem como todos os regulamentos médicos aplicáveis ​​de acordo com as regras 1.4 e 3.1 da Unidade de Boxe de Paris 2024.  A Unidade esforçou-se para restringir as emendas para minimizar o impacto na preparação dos atletas e garantir a consistência entre os Jogos Olímpicos.”

O Comité Olímpico diz que é preciso evitar a “vantagem competitiva injusta e desproporcional” mas, por outro lado, a ciência ainda não está certa sobre essa tal vantagem que uma mulher trans ou intersexo teria sobre uma mulher biológica.  Não existe exatamente consenso científico sobre essas vantagens, embora tenham sido assinaladas vantagens e desvantagens em diversos estudos. Acho que todos conseguimos perceber que uma pessoa não se transforma num atleta de alto nível apenas em virtude de factores fisiológicos: nem todos os atletas muito altos se tornam estrelas do basquetebol.

As questões de género não são um tema pacífico, é aí que reside o foco da contestação. O Sexo biológico refere-se às características físicas ou naturais do corpo humano (ou anatomia), há dois sexos. A Identidade de género refere-se à consciência de ser, de ser homem, mulher ou qualquer coisa entre os dois. Há diversos géneros possíveis. A chamada "ideologia de género" divide enormemente as pessoas e o exercício da tolerância é uma miragem. Nunca me passaria pela cabeça humilhar alguém por causa de uma questão de género, mas, lá está, somos todos diferentes.  Até o Salvador Sobral veio há tempos dizer que era intersexo, na realidade, em virtude de uma doença, o que deve ter sido o caso,  uma pessoa normal pode desenvolver um aspecto feminino ou masculino, mesmo sem ser intersexo, e nem por isso será legítimo chamar-lhe mulher ou homem, ou trans, e muito menos humilhar.

Segundo a regra, a um determinado género corresponderia um sexo anatómico, e daí resultam diferenças inatas e essenciais, - os homens são musculosos e fortes, dominadores, as mulheres longilíneas,  fracas, submissas. O termo cisgénero, que se aplica à maioria das pessoas, é usado para se referir pessoas cuja identidade de género corresponde ao sexo atribuído ao nascimento. Eu sou uma mulher cis: nasci menina e cresci mulher. Assim se fundaram e explicaram as diferenças e desigualdades entre mulheres e homens, por razões de ordem biológica. Ora, perante essa norma estabelecida, profundamente enraizada, como aceitar que as diferenças entre homens e mulheres pudessem ser social e culturalmente construídas e não biologicamente determinadas? A identidade de género constrói-se através de escolhas psicológicas individuais, expectativas sociais e hábitos culturais, e independentemente dos dados naturais. Se o género era construído, então podia corresponder-lhe um sexo feminino ou masculino. Isto representa uma ruptura com a matriz judaico-cristã e também por aí fortemente contestada. É esta crença que torna difícil lidar com os corpos intersexo. É que eles apresentam características de ambos os sexos, e não porque as pessoas foram ao bisturi ou tomaram medicamentos. Essas características resultam de um diferente desenvolvimento sexual e levam a que esses corpos  não consigam ser definidos em termos binários: se tens uma pila és homem, se não tens, és mulher. Se na vida comum isso até pode ser contornado, no desporto coloca muito problema. O desporto é binário! Como é que corpos que desafiam os padrões convencionais -ser homem é isto, ser mulher é aquilo - vão ser aceites pela maioria ? Li algures que podem haver mais de quarenta combinações intersexuais diferentes! 

O desporto utiliza as diferenças biológicas para organizar as modalidades e ao longo da história usou testagem diversa para garantir que os corpos em competição fossem os adequados: corpos de mulheres ou de homens Essa lógica binária tem dificuldade em compreender as complexidades das Diferenças do Desenvolvimento Sexual (DDS)  e a testagem acabou por provocar humilhação, injustiça, por um lado, e, por outro, revelar-sefalível em termos do que procurava garantir.  O desporto não pode discriminar, tem de acolher todos no seu seio, é um dos seus princípios, sem atender a questões económcias, sociais, raciais, ou sexuais. Das leituras que fiz, entendi que não existem evidências claras da tal vantagem competitiva com base na testosterona (hiperandrogenismo), uma das condições intersexo mais comuns entre as atletas do sexo feminino. Se existir, é natural...

Cada pessoa nasce com um conjunto de instruções genéticas nos chamados cromossomas. As instruções podem ajudar a determinar coisas como cor do cabelo ou cor dos olhos ou levar a características sexuais. Certos cromossomas sexuais vão determinar partes do corpo femininas ou masculinas. Normalmente, alguém com dois cromossomas X terá partes do corpo femininas. Um cromossoma sexual X e um Y geralmente dará origem a partes do corpo masculinas. É a presença deste cromossomo Y que determina o sexo biológico de uma pessoa. 

Mas  há mais. Existem algumas condições médicas que tornam a identificação como homem ou mulher uma coisa mais complexa. É o caso da Síndrome de Insensibilidade Androgénica - pessoas com cromossomos XY podem ter uma condição em que seus corpos não conseguem reagir a hormonas masculinas. Elas parecem, agem e se sentem como mulheres. Afecta o desenvolvimento sexual antes do nascimento e durante a puberdade. Pessoas com essa condição têm um X e um Y em cada célula, o que é típico de homens. As células e tecidos do corpo são incapazes de responder a certos hormonas sexuais masculinas (chamados andrógenos) que são importantes para o desenvolvimento sexual masculino normal antes do nascimento e durante a puberdade. Como resultado podem ter características sexuais externas que são típicas para mulheres ou ter características de desenvolvimento sexual masculino e feminino.

Existem três formas de síndrome de insensibilidade androgénica: completa, parcial e leve.

A síndrome de insensibilidade androgenica completa: ocorre quando o corpo não responde aos androgênios de forma alguma. As pessoas têm características sexuais externas típicas de mulheres. Indivíduos afectados não têm útero. Eles têm órgãos sexuais internos masculinos (testículos) que não desceram, o que significa que estão localizados na pélvis ou abdómen em vez de fora do corpo. Como tal, indivíduos afetados não menstruam e são incapazes de conceber uma criança (inférteis). Têm pelos esparsos ou ausentes na área púbica e sob os braços.

Síndrome de insensibilidade parcial: podem ter genitálias que parecem típicas de mulheres, genitálias que têm características masculinas e femininas ou genitálias que parecem típicas de homens.

Síndrome de insensibilidade leve :
nascem com características sexuais tipicamente masculinas, mas geralmente são inférteis e tendem a apresentar aumento dos seios na puberdade. 

Hiperplasia Adrenal Congénita - pessoas com cromossomos XX podem ter uma condição que as expôs a altos níveis de hormonas masculinos antes do nascimento, dando a elas partes masculinas do corpo. Isso pode levar a que se pareçam e sintam mais como homens.

Entretanto, Imane acabaria por vencer a medalha de ouro, lidando com tudo isto com uma diplomacia fora de comum. Após a vitória, Imane declarou:"

Sou uma mulher como qualquer outra mulher. Nasci mulher, vivi enquanto mulher e competi enquanto mulher. Não há qualquer dúvida. Há inimigos do sucesso, é claro. Isso dá ao meu sucesso um sabor especial, devido a estes ataques.
A BBC confirmou que uma queixa legal foi apresentada na França, no sábado (10/8) , alegando que Khelif sofreu assédio online, incluindo uma campanha de abusos misóginos, racistas e sexistas. O advogado Nabil Boudi disse em uma postagem nas redes sociais que o tratamento que ela recebeu equivale a um "linchamento online".

"A recente vencedora da medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Paris'2024, a pugilista Imane Khelif, decidiu travar uma nova batalha: a da justiça, da dignidade e da honra. Khelif remeteu o caso para o Gabinete de Paris, que apresentou uma queixa por assédio cibernético agravado ao Ministério Público de Paris. A investigação criminal irá determinar quem iniciou esta campanha misógina, racista e sexista, mas também terá de olhar para aqueles que alimentaram este linchamento digital. O assédio sofrido pela campeã de boxe continuará a ser a maior mancha destes Jogos Olímpicos".  Publicado na rede X.


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