Notas sobre atletas trans e intersexo, testes e polémicas nas competições desportivas de elite
Foi perante a tailandesa Janjaem Suwannepheng, nas meias-finais da categoria dos -66 kg, que Imane Khelif se qualificou esta terça-feira para a final de pugilismo feminino nos Jogos Olímpicos de Paris. A pugilista argelina cujo direito a competir tem sido questionado acaba de vencer Suwannephenge e disputará o ouro na próxima sexta-feira. Desde que o seu combate com a atleta italiana tenho feito várias leituras para perceber esta realidade que desconhecia quase completamente embora me lembrasse muito vagamente do nome Semenya e de uma polémica desportiva associada. É um assunto que vem de longe e de grande complexidade.
"O movimento deu força à emergência dos estados interssexuais que se referem, de forma geral, a corpos de crianças nascidas com a genitália externa e/ou interna nem claramente feminina, nem claramente masculina (CHILAND, 2008). De acordo com a literatura médica, essas pessoas podem ser divididas em quatro grupos principais:
. pseudo-hermafroditismo feminino (o bebé possui ovário, o sexo cromossómico é 46 XX, a genitália interna é feminina, mas a genitália externa é ambígua);
- pseudo-hermafroditismo masculino (a criança possui testículos, cariótipo 46 XY, mas a genitália externa é feminina ou ambígua);
- disgenesia gonadal mista (o bebê nasce com gónadas disgenéticas);
- hermafroditismo verdadeiro (crianças que possuem tecido ovariano e testículos na mesma gónada ou separadamente) (ARAN, 2006). As pesquisas demonstraram que o cromossomo Y podia ser observado em pessoas portadoras de órgãos sexuais femininos. Muitos casos foram observados tais como XXX, XXY, XYY acompanhados ou não de anomalias genitais (HILAIRE, 2000)."
Em 2019, Joanna aconselhou o Comité Olímpico Internacional sobre o que fazer dali em diante. "É preciso haver um critério de elegibilidade apropriado para cada desporto. O nível mais baixo de testosterona para homens ainda está quatro vezes acima do nível maior das mulheres", diz Joanna. "A elegibilidade deve incluir biomarcadores para separar os atletas. "Um biomarcador poderia ser o nível de testosterona. Em vez de se dividir em categorias binárias masculinas e femininas, podia haver uma divisão de níveis de testosterona." Em tese, isso permitiria incluir atletas intersexuais, - como a velocista de meia distância sul-africana Caster Semenya, - que têm níveis naturalmente elevados de testosterona. Note-se que a World Athletics, orgão responsável no atletismo, decidiu que "para garantir uma competição justa, mulheres com altos níveis naturais de testosterona devem tomar medicamentos para reduzi-los para competir em corridas de meia distância".
Existem dois DSDs com impacto significativo no deporto feminino, um é a Síndrome de Insensibilidade Androgénica, ou AIS, outro é a 5-ARD. Quer num quer noutro, os bebés nascem com o cromossoma Y normalmente associado à masculinidade, mas com mutações que frequentemente os levam a ser designados como do género feminino. Apesar das aparências externas, no entanto, pessoas com qualquer um desses DSDs não desenvolverão órgãos femininos internos devido à influência do cromossoma Y. Em vez disso, suas gonadas se desenvolverão como testículos, e podem ou não formar outros órgãos masculinos internos.
Pessoas com AIS têm uma mutação que impede que a testosterona (T) seja absorvida pelo corpo; portanto, haverá bastante T no sangue, mas praticamente nenhuma em outras células. Aqueles com AIS geralmente parecem-se com qualquer outra mulher por fora. Como não há absorção de T no corpo, qualquer vantagem atlética que eles possam ter sobre outras mulheres é muito pequena.
Aqueles que nascem com 5-ARD têm uma mutação que impede a criação de di-hidrotestosterona, ou DHT, no corpo. DHT é um andrógeno poderoso que desencadeia a formação da genitália masculina. Os bebes 5-ARD são frequentemente designados do género feminino. Ao contrário das pessoas AIS, no entanto, aqueles com 5-ARD são afectados pelo T em seu sistema e se tornam muito mais masculinos na puberdade. Isso pode dar-lhes uma vantagem atlética.
A primeira atleta intersexo foi Stella Walsh, ela ganhou ouro nos 100 metros em 1932 e quatro anos uma de prata. Não se sabia que Walsh era intersexo até depois de sua morte em 1980. A preocupação com atletas intersexuais e também a possibilidade de que homens pudessem passar-se por mulheres levou aos testes de género no atletismo. De 1968 até à década de 1990, todas as mulheres em competições internacionais eram testadas para garantir que tinham dois cromossomas X. As que não tinham eram banidas. María José Martínez-Patiño foi uma corredora de barreiras espanhola nos anos oitenta. (Aconselho a leitura da sua história aqui relatada. Quando descobriu que tinha um cromossoma Y, decidiu desafiar as regras estabelecidas. A equipe médica que acompanhou o caso insistiu pela inclusão dela como atleta com variação intersexual. Eles defenderam que a única coisa que diferenciaria as atletas com variação intersexual seria a testosterona. Ao mesmo tempo em que derrubaram, entre aspas, os testes de verificação de género, eles começaram a afirmar com muita clareza que era a testosterona que realmente provocaria a necessidade de separar essas atletas. ) "Ela sabia que era uma mulher e que merecia poder competir como uma. Ela encontrou aliados médicos e cientistas que convenceram as federações desportivas de que seu AIS não representava nenhuma ameaça a outros competidores, embora infelizmente tarde demais para ela competir nas Olimpíadas: até provar que tinha razão passaram 10 anos.)
Após o caso Patino, - um exemplo de que o que separa os homens das mulheres não se resume a um Y -a IAAF e o COI descontinuaram os testes de género baseados em cromossomas, apenas em suspeitas muito fortes se faziam.
Um outro caso importante é o de Caster Semenya, que em 2009, com 18 anos, vence a corrida de 800 metros no Campeonato Mundial por uma margem enorme de 2,45 segundos. Houve rumores de que seus níveis de T estavam altos e que a IAAF queria que ela passasse por uma gonadectomia para remover seus testículos. Houve rumores de que ela recusou a cirurgia, mas concordou com meios químicos para reduzir seu T para níveis femininos. Ela voltou a correr um ano depois, ganhando medalhas de prata no Mundial de 2011 e nas Olimpíadas de 2012.
( Uma nota à margem do texto: outro caso marcante é o de Dutee Chand (ler aqui a sua história) que viu ser-lhe diagnosticado hiperandroginismo. Ela aspirava a disputar Olimpíadas e tinha sido selecionada para os Jogos da Commonwealth, quando foi retirada da equipa. Aparentemente, um dirigente ou competidor do Campeonato Asiático Júnior de Atletismo, onde Chand ganhou duas medalhas de ouro, solicitou que ela fosse submetida a um exame. Chand Dutee Chand recorreu, em 2015, para o Tribunal Arbitral du Sport (TAS) invocando que os regulamentos da IAAF relativos ao hiperandroginismo eram inválidos por: (i) serem discriminatórios em razão de uma característica natural e em razão do sexo; (ii) o critério utilizado (baseado nos valores de testosterona) não tem fundamento científico; (ii) a existência de desproporcionalidade na referida distinção entre atletas femininas e atletas masculinos. O Tribunal decidiu que a IAAF caberia, no prazo de dois anos, provar cientificamente que a distinção entre o sexo masculino e o sexo feminino com base na existência de um hiperandroginismo e no correspondente aumento de testosterona gerava uma efectiva desigualdade entre competidores. Decorrido este prazo, o TAS decidiria a título definitivo; até esta data a atleta pode, porém, competir num âmbito nacional e internacional. Ela competiu nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro e foi sétima na sua série nos 100m.)
A IAAF -Associação Internacional de Federações de Atletismo, hoje, World Athlethics, e o COI decidiram então usar a testosterona funcional como factor decisivo para determinar a elegibilidade para o desporto feminino (a IAAF adotou essas regras em 2011 ; o COI as adotou em 2012 ). Qualquer mulher cujo T fosse muito alto teria que diminuí-lo (por cirurgia ou medicamentos) se quisesse continuar a competir na divisão feminina. Como o T no sangue de mulheres AIS não é funcional, elas podem competir sem problemas.
A faixa normal de T para homens é de 10-35 nmol/L (nanomole por litro), com uma média na casa dos vinte, e para mulheres é de 0,35-2,0 nmol/L, com uma média de cerca de 1,5. A IAAF escolheu definir o nível máximo para mulheres no mínimo nominal masculino de 10 nmol/L.
Exames de sangue são necessários para determinar os níveis absolutos de T, e a IAAF determinou que todas as atletas devem ser submetidos a exames de sangue como parte do Campeonato Mundial bienal. Além disso, qualquer atleta pode ser submetido a exames de sangue, a qualquer momento, como parte do sistema de passaporte biológico projetado para despistar doping.
A IAAF fez cinco investigações baseadas em género entre 2006 e 2011. Desde 2011, pelo menos 18 mulheres foram encontradas com T acima de 10 nmol/L. Seis desses casos foram relacionados a medicamentos. Oito das outras têm um DSD, das quais quatro têm 5-ARD : estes quatro foram aconselhados a passar por uma gonadectomia e foram informados de que poderiam continuar a competir após a cirurgia.
Antes da cirurgia, o nível médio de T dos quatro com 5-ARD era de cerca de 21 nmol/L, apenas um pouco abaixo da média masculina e bem acima do limite exigido pela IAAF para competidoras femininas. Após uma gonadectomia típica, o nível médio de T é quase exatamente um, o que é abaixo do de uma mulher média. Essa redução de velocidade transformaria um atleta de classe mundial em um atleta decente de calibre nacional. Se um atleta optasse por reduzir seu T quimicamente, ele poderia ficar um pouco abaixo de 10 nmol/L, o limite da IAAF. A perda de velocidade seria marcadamente menor. A tentação de se dopar para recuperar suas carreiras seria muito forte para quem tivesse feito a cirurgia.
Mas as opiniões dos especialistas dividem-se sobre o uso da testosterona para excluir ou admitir atletas
O Dr. Bekker, Prize Fellow no Departamento de Saúde da Universidade de Montreal diz que "Os níveis de testosterona no sangue variam naturalmente em homens e mulheres, com sobreposição particular entre atletas de elite do atletismo. Associações diretas – causais - entre níveis de testosterona e conquista de medalhas não podem ser determinadas. Provar a sensibilidade androgénica em atletas "também é problemático, já que testes laboratoriais reprodutíveis e válidos para detectar a sensibilidade androgénica não existem. A falta de dados científicos reprodutíveis sobre o efeito da testosterona na velocidade durante eventos de atletismo representa um desafio adicional.Não há ligação direta entre os níveis de testosterona e o desempenho atlético, escreveram Cara Tannenbaum, professora da Universidade de Montreal, e Sheree Bekker, pesquisadora da Universidade de Bath: “Essa percepção mítica da testosterona como o elixir do desempenho… não é apoiada pela ciência”.
Em abril de 2018, a Associação Internacional de Federações de Atletismo (IAAF) decidiu que atletas intersexuais femininas que competem em corridas de 400 m a 1,6 km devem manter seus níveis de testosterona abaixo de um certo nível por pelo menos seis meses. A campeã olímpica dos 800m, Semenya, entrou com uma contestação legal à restrição. Alguns rivais diziam que o hiperandroginismo da jovem de 28 anos lhe dá uma vantagem injusta. A condição, também conhecida como Diferença de Desenvolvimento Sexual (DSD), é caracterizada por níveis mais altos do que o normal de testosterona, uma hormona que aumenta a massa muscular, a força e a hemoglobina, o que afecta a resistência. A mulher média tem níveis de testosterona muito mais baixos do que o homem médio, mas há estudos que dizem haver uma sobreposição no desporto de elite.Um estudo de 2017 com atletas olímpicas suecas, realizado por Angelica Linden Hirschberg, professora de obstetrícia e ginecologia que também apoiou a IAAF, descobriu que níveis mais altos de testosterona natural estavam correlacionados a um melhor desempenho atlético.
"Que necessidade havia de a Federação de Atletismo da Índia ter notificado os meios de comunicação que uma atleta sua tinha os níveis de testosterona elevados? Não sabem que a maioria das pessoas nem sabe o que é testosterona? Só olham para aquela rapariga como um rapaz. Só sabem que os cromossomas XY pertencem aos rapazes, nada mais. Não percebem que pode haver uma mutação, que esses níveis andrógenos podem ser não funcionais. Não percebem que ela não tem culpa e que a natureza é diversa. Não. Só vêem que é um homem disfarçado de mulher. E isto tem implicações na sua vida pessoal, quando quiser ter uma relação, ser feliz. Vai ser muito complicado. Todos os seres humanos merecem ser felizes e o desporto, com as suas regras, não pode fazer nenhuma mulher infeliz. Temos a obrigação de fazer as coisas bem. Acredito é que não será necessário fazer testes a todas as desportistas. O futuro passa por fazer testes a medalhados e finalistas. Uma rapariga que fica em 38.º na maratona, a alguém interessa os níveis de testosterona? A ela própria, à sua família. Porquê correr o risco de esse teste ser conhecido no mundo. É muito fácil que essas coisas se saibam. É muito difícil guardar um segredo, ainda mais no desporto."
A World Rowing emitiu uma proibição quase total à participação de mulheres trans em categorias femininas, enquanto o Conselho Mundial de Boxe não permite que nenhum atleta trans participe.
Os órgãos mundiais de atletismo , ciclismo , natação , rúgbi e críquete proibiram mulheres trans de competir em categorias femininas se elas passaram pela puberdade antes de iniciar a transição. As diretrizes exigem que mulheres transgénero tenham feito a transição antes dos 12 anos para serem elegíveis para a categoria feminina, para evitar qualquer potencial vantagem biológica da puberdade masculina.
Outros órgãos esportivos, como a Federação Mundial de Badminton , disseram que considerarão atletas trans caso a caso, enquanto a FIFA, órgão regulador do futebol mundial, anunciou em 2022 que sua política seria revista.
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