Eurovision Contest 2024: o espectacular Nemo!

 


Talvez tenham ficado bem impressionados com o videoclip da música "The Code", que mostra Nemo dentro de um comboio, primeiro vestido com um uniforme, depois usando diversas roupas, todas bastante singulares, numa sequência de imagens bem editadas que dão expressão à letra cantada, uma sobre a sua viagem de transformação, de reconhecimento da sua real identidade, as suas atribulações, do inferno ao paraíso. Eu fiquei. Vi o video e fiquei logo rendida à capacidade vocal e performativa de Nemo. É tanto o que conseguiu equilibrar numa só canção: usar vários estilos de música, fazer fluir a mensagem numa letra arranjadinha, a extravagância visual contida, uma energia autêntica, a que se juntou a expressão corporal da sua performance. As diversas partes fundiram-se num todo coeso, um feito à partida excessivo e impossível de alcançar, quando se acaba de ver o resultado.

Nemo, é o tipo de artista que o Festival da Eurovisão é pródigo em revelar, competente mas ainda algo estranho e difícil de assimilar para uma vasta maioria. Será este feito musical um fruto do acaso? Haverá mais Nemo depois disto?  Artistas e canções que perdurem na memória são difíceis de encontrar, seja qual for o palco onde surjam, sobretudo hoje, num mundo em que é tudo produzido à cabazada, artistas e canções também, pouco importando se são paridas em festivais, no TikToK ou no Spotify. Há esta gerneralizada ilusão de que todos podemos ser artistas quando o que na realidade acontece é que apenas todos podemos tentar a sua sorte no mundo da música. (Mais: agora, com o advento dos geradores de música AI, todos podemos mesmo tentar explorar a nossa veia musical, mesmo inexistente, mas isso é outro assunto.)  Acontece ainda que o sucesso no meio musical nem sempre é medido pela excelência, outros factores influem, e muito, na consagração de alguém, quer junto do público, quer junto da crítica, ou de ambos, como "artista". O conhecimento musical da maioria é, também, quase nulo. O julgamento comum baseia-se sobretudo no "gosto",  e muitas vezes a isso apenas se resume a opinião, a uma arrogante afirmação de gosto pessoal.  Quanto aos artistas, uns triunfarão, em pequenos, médios e grandes triunfos, outros serão engolidos pela concorrência primeiro e depois pelo tempo. Artistas que se mantenham  relevantes por décadas são cada vez mais raros. Quando ligo a rádio e ouço um top, ou quando o faço no Youtube, a sensação que tenho é que a variedade musical é escassa. Se não se investirmos pessoalmente no conhecimento do icebergue musical que fica abaixo da superfície, a experiência musical individual corrente será pobre, por muita facilidade que hoje exista no acesso à música.  O meu gosto musical sempre foi heterogéneo,  assente apenas em muitas horas de audição dos mais variados géneros de música. O meu conhecimento musical é quase nulo. Tive lições de guitarra, era preguiçosa, tocava de ouvido, deixei a música para quem tem veia.  Ouvi descuidadamente algumas canções do Eurofestival e as da Itália e Suiça cairam na minha preferência que nem chantilly em morangos. Nemo, com a sua inusitada fusão de rap, ópera, pop e drum and bass, e apresentação enérgica e elegante, leva os meus 12 points. 




Eurovision 2024 | Switzerland | Nemo - The Code | Live from Arena

A vibrante actuação na segunda-seminal do Eurovision também me deixou bem impressionada. A propósito do "stagging", algo que nos últimos anos tem sido considerado como uma parte decisiva das prestações dos concorrentes, aqui partilho mais um video mais um video sobre o que acontece "behind the TV screen" durante a actuação de Nemo. Achei esta ideia do pequeno palco circular  fantástica. Serve tão bem a canção, esta ideia engenhosa e bem simples, que, com o trabalho de câmera, alcança um grande efeito visual. Quer gostem ou não das prestações dos artistas, o Eurovision é um prodigioso trabalho de produção televisiva, faceta que também merece ser apreciada. 




A versão acústica permite apreciar a qualidade da diversa prestação vocal de Nemo sem interferência de imagens e artifícios. O riff é a mais famosa "habanera" que consta da ópera Carmen. Carmen é uma mulher cigana que dança e canta para enfeitiçar os vários homens, é assim que a sua personagem sedutora se nos apresenta em palco, com esta "habanera". Quando estreou, em Paris, esta ópera causou um escândalo tendo sido considerada obscena por vasta maioria enquanto outros elogiavam a autenticidade das paixões ali encenadas, os seus excessos. A personagem, sem decoro ou escrupulos morais, acaba por morrer apunhalada pelo amante! A ópera de Georges Bizet, criada em 1985, viria depois a conquistar o público e o imaginário colectivo tornando-se uma das mais populares, inclusivamente já foi adpatada ao cinema duas vezes. Nemo abre The code com  sua "habanera" muito peculiar e assim  lança o mote para o resto: uma canção fluida, assente numa rica componente instrumental que se fundem com a arte dramática e as artes visuais, ou seja, Nemo convoca-nos para uma pequena experiência operática.

The code, é uma canção pessoal sobre a sua história, sobre o assumir-se como não-binário e encontrar o paraíso nessa honestidade. Ele canta: "Estou farto de jogar o jogo, vou libertar-me das correntes" e "Fui ao inferno e voltei", " Para me encontrar no caminho certo, quebrei o código". É-me indiferente a identidade de Nemo, ou, aliás, a de qualquer dos que sobrem ao palco.Todos os anos, a mesma bandeira contestatária: que o Eurofestival se tornouum indecoroso evento gay. Mas vai-se a contar os participantes "indecorosos" e não chegam a meia dúzia num total de 37entradas! 

Nemo, para mim é apenas mais um artista, uma pessoa que tem capacidade para usar a arte da música para se exprimir. Talvez a "identidade" seja para alguns um motivo para votarem/gostarem da canção, e para outros a óbvia justificação para a enxovalharem e ignorarem. Adivinham-se muitos comentários de repulsa no espaço internetário se Nemo sair da Suécia com o troféu: a saia cor-de-rosa e o casaco de plumas são os sinais de transgressão que acompanham a sua confissão explícita e metafórica e os "normais", que já mal conseguem lidar com isso, vão sentir o seu mundo perfeito mais uma vez ameaçado e em ruina. Dirão que antigamente é que era bom! Que saudades do tempo em que a família inteira podia assistir ao espectáculo, sem sobressalto, no conforto do lar! Nos anos 60 a homosexualidade era ainda criminalizada em muitos países da Europa, claro, poucos se atreveriam a ser explícitos. Isso não impediu que o Luxemburgo tivesse ganho com uma discreta canção sobre os direitos dos gays, interpretada por um, mas que não conta, pois não usava saia nem plumas.

The code é claramente uma canção de celebração pessoal, de testemunho, e, por isso, incontornável para uns, inconfortável para outros. Mas todos, se quisermos, nos poderemos identificar com esta jornada pois cada um de nós, à sua maneira, em algum momento da sua vida, poderá ter-se confrontado com inseguranças e incertezas que conseguiu superar e sentiu a alegria de poder fazer algo, dizer ou ser abertamente quem é ou o que pensa. A actuação de Nemo é tão contagiante e ao mesmo tempo tão verdadeira que intuo o incompreeensível. Como criatura binária, que nunca soube o que é duvidar da sua essência, imagino que a sua conquista deva ter sido difícil de alcançar. Para mim o que me importa sobretudo é que consegue entusiasmar-me, surpreender-me, prender-me ao ecrã, transmitir-me o seu júbilo, em suma, emocionar-me. Esqueçamos a letra, imaginemos que nada sabemos da história de Nemo. Ainda assim, quem é que não consegue sentir a palpitação eufórica desta canção? Se isso não é a marca de um artista genuino, não sei o que será.

Certos saudosistas de um Festival de antigamente dizem que já não é um festival de canções. Dizem-no por considerarem que as canções de antigamente tinham mais qualidade, melhor música, melhor letra, dizem-no, também, porque o espectáculo era sobretudo a voz do cantor, muito menos o seu corpo, e ainda menos a extravagância ao seu redor. Estabelecem assim uma distinção entre o que consideram  essencial e o acessório, parecendo ser o acessório que comanda o gosto dos votantes. A outros incomoda que o palco seja um espaço para fazer propaganda de ideias que incomodam, políticas, ou não, como esta, que Nemo passa sem rodeios. Mas do meu antigamente guardo recordação de alguma extravagância embora a estranheza no palco da Eurovisão fosse uma atitude minoritária que não valia pontos e em que talvez não se devesse apostar para ter sucesso.  Mas o passado é o passado, o presente não é igual, nem na música, nem no cinema, nem na arte em geral.  Depois da era MTV, depois de uma canção intitulada Video Killed the Radio Star ter subido nas charts, o retorno ao passado tornou-se impossível. Actualmente, uma nova geração de espectadores jamais ficaria satisfeita perante um festival que fosse realizado nos moldes passados.  

Eurovision Song Contest 1988 - Winner - Switzerland - Céline Dion - Ne Partez Pas Sans Moi

É esperado que o artista se diferencie de alguma forma, a sua voz já não é suficiente. Espera-se que venha acompanhado por um espectáculo de luz, movimento e cor: o "stagging" tornou-se essencial, podendo ser discreto ou exremamente absurdo. Participações como a da cantora Céline Dion, que, aos 20 anos,  ganhou o concurso em 1988 com a canção Ne partez pas sans moi, assentes numa voz poderosa e numa interpretação contida, são raras. A sua carreira tinha começado nos anos 80, ela já era bastante conhecida no mundo francófono  e através do Festival chegou a vasto público internacional. Já passaram 36 anos desde que a Suíça ganhou a Eurovisão pela última vez. Desde então, Céline ganhou cinco prémios Grammy, dois Oscar, sete American Music Awards, 20 prémios JUNO e um estonteante número de 40 Félix Awards. A artista canadense é uma das artistas mais premiadas do mundo. Vive actualmente no Nevada, nos Estados Unidos, tendo sido notícia por padecer do Síndrome de Stiff-Person, ou Síndrome da Pessoa Rígida (SPR), o que motivou o seu afastamento dos palcos. Ela e os ABBA são praticamente os únicos a terem vencido e prosseguido com carreiras internacionalmente consolidadas. Recentemente os Maneskin, vencedores em 2021, também conseguiram uma boa projecção internacional mas ainda é cedo para avaliar do seu percurso.  Katrina & the Waves também venceu o Eurovision mas raramente nos lembramos disso quando escutamos I'm alking on the sunshine. Talvez possamos concluir que o Eurovisão, só por si, não é decisivo para internacionalizar ninguém, embora actualmente a música seja consumida e partilhada de formascompletamente diferentes do que sucedia no tempo dos Abba, os números do êxito podem ser medidos em downloads e não em público de tours, etc.

Nemo (Mettler). Nemo nasceu na Suíça, na cidade de Biel, em 1999. Têm 25 anos de idade, toca vários instrumentos, entre eles o violino, a guitarra e o piano. Aos 13 anos, Nemo teve a sua primeira experiência musical quando entrou para o elenco do musical "Ich War Noch Niemals In New York". Em 2018 recebeu quatro prémios de música suíça, incluindo o de Canção do Ano pelo seu single "Du". Das 400 canções recebidas pela emissora suíça SRF, "The Code" foi a escolhida para representar o país.


Nemo, Sinfonie Orchester Biel Solothurn - The Code (Orchestral Version)

Nemo gravou também uma versão de Code com uma orquestra e usa um vestido muito semelhante ao usado por Céline Dion quando se consagrou como vencedora do Eurovision. Será uma homenagem à cantora? Ou será Nemo a ser atrevido e a cantar vitória? De acordo com as casas de apostas Nemo tem boas possibilidades de vencer.  O espectáculo é hoje, às 20.00 h, e actuarão 26 países: os 20 países qualificados, os "Cinco Grandes" e o país anfitrião, a Suécia. Cada actuação respeita as seguintes regras: as canções devem ser originais, não podem ter mais de três minutos de duração, as vozes principais devem ser executadas ao vivo, não são permitidos instrumentos ao vivo de qualquer tipo. Durante a execução de uma canção não podem estar em palco mais de seis artistas ao mesmo tempo. Os artistas cantam ao vivo mas os instrumentos e as vozes de apoio são pré-gravados. Sempre que uma actuação envolva uma "banda" a tocar bateria, guitarras e/ou saxofones, trata-se de mímica, ninguém toca "ao vivo".

Nem sempre assisto ao Eurovision, mas esta noite farei questão de torcer por Nemo - e também, claro, pela Iolanda. Boa sorte aos dois!


Whoa-oh-oh
Welcome to the show, let everybody know
I'm done playing the game, I'll break out of the chains
You better buckle up, I'll pour another cup
This is my bohème, so drink it up, my friend

This story is my truth

I, I went to Hell and back
To find myself on track
I broke the code, whoa-oh-oh
Like ammonites
I just gave it some time
Now I found paradise
I broke the code, whoa-oh-oh

Yeah
Let me tell you a tale about life
'Bout the good and the bad, better hold on tight
Who decides what's wrong, what's right?
Everything is balance, everything's light
I got so much on my mind, and I been awake all night
I'm so pumped, I'm so psyched
It's bigger than me, I'm getting so hyped, like

let me taste the lows and highs
(Oh) let me feel that burning fright
(Oh) this story is my truth

I, I went to Hell and back
To find myself on track
I broke the code, whoa-oh-oh

Like ammonites
I just gave it some time
Now I found paradise
I broke the code, whoa-oh-oh
Somewhere between the O's and ones
That's where I found my kingdom come
My heart beats like a-
Somewhere between the O's and ones
That's where I found my kingdom come
My heart beats like a drum
I, I went to Hell and back
To find myself on track
I broke the code, whoa-oh-oh

Like ammonites
I just gave it some time
Now I found paradise
I broke the code, whoa-oh-oh, whoa-oh-oh

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