EUROVISÃO: NEMO E O CÓDIGO, por Graça Castanheira
EUROVISÃO: NEMO E O CÓDIGO
"O vencedor do Festival da Eurovisão deste ano, o suíço Nemo Mettler, filho de um empresário e de uma jornalista, começou a interessar-se por música aos três anos, aprendendo a tocar violino, piano e bateria eletrónica. Aos dez anos, juntou-se à ópera infantil de Biel e atuou na Flauta Mágica de Mozart, que serviu de inspiração para a canção The Code. Nemo foi a primeira pessoa abertamente não binária a ganhar a Eurovisão. A última vez que a Suíça ganhou o Festival foi em 1988, com Ne Partez pas Sans Moi, (Não Partas Sem Mim), uma súplica co-dependente, gloriosamente cantada por Céline Dion.
Nemo, que em latim quer dizer “ninguém”, afirma que os pais escolheram este nome porque “pensaram que se eu fosse ninguém, poderia tornar-me qualquer pessoa”. Nemo assumiu-se não binário em 2021 e a letra da música que cantou é autobiográfica: “Esta história é a minha verdade / Eu, eu fui ao inferno e voltei / Para me encontrar no caminho certo / Quebrei o código, woah-oh-oh (...) Algures entre os "0" [zeros] e os "1" [uns]” / Encontrei o meu reino / O meu coração bate como um tambor / woah-oh-oh, woah-oh-oh.”
Em 2024, Nemo tinha de ganhar a Eurovisão por todas as razões: porque a sua performance é afinada, épica, acrobática e um hino à liberdade de se ser “qualquer pessoa”. E também porque junta matrizes de rap e de drum’n’bass com repentes operáticos; porque recupera com elegância linhas melódicas de Freddie Mercury; porque canta com uma felicidade desconcertante e contagiante; porque é bigger than life como é raro ver na música pop europeia. E ainda porque veste uma saia divertida e um top de peluche que recortam uma figura original e animada, quase BD em 3D. Nemo esteve diretamente envolvido na escolha do décor em que atuou, assente num disco oscilante e giratório, que tanto é uma montanha que o cantor sobe, arfante, como uma rampa que o propela para ambos os lados do palco.
Os três minutos que dura a atuação de Nemo assentam em múltiplas camadas de programação de sistemas digitais e de inteligência artificial, dos efeitos de luz aos movimentos de câmara e à própria placa giratória: na verdade, quase tudo naquele espetáculo são zeros e uns. E foi precisamente aí, “Algures entre os "0" [zeros] e os "1" [uns]” que Nemo se encontrou, e fê-lo, afirma, quebrando o código.
Permito-me discordar — Nemo resulta do código, não o quebrou. Veja-se a seguinte proposição: se zero for a tese e um a antítese, Nemo será a síntese. Ele não está indexado ao real, como estão as figuras analógicas; Nemo é ele próprio numérico, uma espécie de homo electricus mutante, um novo tipo de estrela, que sintetiza num só plano, esplendor e humildade, simpatia e força. (É comovente a cena que circula na rede social X, em que Nemo ouve a sua música a ser cantada a capella pelo grupo norueguês Gåte).
Nemo faz parte de um larguíssimo grupo de novas pessoas, nascidas da literacia digital: treinaram e aprenderam em tablets, usaram os seus telemóveis até ao limite da potência criativa. São pessoas sensíveis, inteligentes, admiráveis — e exigentes. É natural que as estranhemos e que nos pareça mal forçarem-nos a entortar os olhos, as palavras, a perspetiva. Mas, perseverando no olhar, vemos seres que, apesar de possíveis inconsistências estéticas e/ou discursivas, tão características dos recém-chegados, são deveras interessantes.
Entretanto, não estou a tratar bem Nemo, porque não o nomeio com a linguagem e os pronomes que comunicou preferir. Até ver, permaneço crítica das soluções gramaticais encontradas e escolho assim usar a linguagem existente. Mas o amor é igual."
Graça Castanheira, Público, 19/05/2024
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