Shogun é uma das melhores series de TV do ano


Acabei de ver Shogun. Em 1980, o actor Richard Chamberlain era a estrela de uma série que fazia sentar toda a minha família em frente à TV. A série, única série americana filmada no Japão até ao momento, foi criada para agradar à audiência americana, ou mesmo mundial, sem especial foco em representar a cultura japonesa com rigor. É possível que Shogun tenha sido a responsável pelo meu fascínio pelo Japão, um pequeno mas singular país. Doravante, e até hoje, a sua cultura, o cinema japonês, não cessaram de me fascinar.  Recordo que numa das primeiras visitas ao Museu Dr. Santos Rocha, que aconteceu por essa altura, fiquei deslumbrada porque ali havia em exposição uma armadura samurai. Por isso, de novo me encontrei em frente à TV para assistir à nova adaptação de Shogun, revisitando com renovado prazer as fascinantes personagens desta história, em especial o astuto e misterioso Toranaga, ou Tokugawa, que habitou no grande castelo Edo, (posteriormente, Tóquio) o maior castelo de todo o Japão. O xogunato Tokugawa governou o Japão durante os 250 anos seguintes aos acontecimentos que a série nos mostra. Esperava ver uma grande batalha - a Batalha de Sekigahara - no último episódio mas a solução menos bélica também me agradou.

A primeira minissérie de 5 episódios, produzida pela NBC, depois reduzida a um filme, adaptou o livro homónimo de James Clavell, um contador de histórias épicas, e foi um enorme êxito que deixou uma impressão duradoura nos telespectadores, jovens, como eu, e adultos. Clavell nasceu em Sydney, Austrália, cresceu na Inglaterra, tornou-se cidadão americano e viveu muito tempo na Suiça, onde, se não me engano, terá falecido. Foi capitão da Artilharia Real Britânica durante a Segunda Guerra Mundial. Capturado pelos japoneses, passou três anos num campo de prisioneiros em Singapura, onde poucos sobreviviam. Sabendo isto, é impossível não pensar que ele e Blackthorne, o estrangeiro que alcança o Japão,  partilharam semelhanças, de captivos a tolerantes e respeitadores dos seus senhores, garantido a sua sobrevivência com inteligência e tenacidade. Clavell também escreveu argumentos em Hollywood, foi realizador e produtor. O seu maior sucesso foi To Sir With Love, um filme de 1967, com Sidney Poitier. Escreveu pelo menos cinco best-sellers e King Rat, em 1962, foi baseado na sua experiência naquele campo. Além de Shogun, outros livros também foram ambientados no Extremo Oriente: Tai-Pan, Noble House, e Gai-Jin.

Sumariamente, a história desenrola-se no ano de 1600, após a morte de Taiko, - ou Toyotomi Hideyoshi, que foi o segundo Grande Unificador do Japão, - quando cinco grandes senhores, chamados daimyo, disputavam o título de Shogun, o governante de facto do Japão, alguns deles lucrando com a sua ligação religiosa aos jesuítas e lucros comerciais. Um barco holandês, o Erasmus, aparece na costa, semi destruído, a tripulação reduzida a um punhado de sobreviventes consumidos pela fome e pelo escorbuto. John Blackthorne, piloto, interpretado pelo britânico Cosmo Jarvis, que inicialmente me decepcionou um pouco no papel, é um protestante ambicioso que se tinha feito ao mar para minar o poderio comercial e religioso dos portugueses no Japão, num momento em que a Espanha e Portugal tinham fatiado o mundo ao meio. Capturado pelos japoneses, e portanto, inimigo de padres jesuítas e portugueses comerciantes, ele usa os seus conhecimentos para desacreditar a presença monopolista portuguesa na região e cair em graça junto dos japoneses, que afirma estarem a ser usados, ao mesmo tempo que deseja criar uma aproximação comercial da Inglaterra ao Japão. Nesse tempo poucos ocidentais tinham pisado a terra japonesa, além de portugueses e espanhóis. O território era um mundo estranho e novo, em termos geográficos e culturais,  e Blackthorne - doravante conhecido como "Anjin", que significa vagamente piloto em japonês - vai ter de aprender a lidar não apenas com costumes e língua desconhecidos mas também com a sua própria atitude. O que me atrai mais em Shogun nem são as lutas implacáveis pelo poder, as alianças e traições, é o choque cultural. Blackthorne, que após a sua jornada é outra pessoa, somos nós adentrando pela cultura japonesa, tal qual ele, com espanto, repulsa e deslumbre. Veja-se como, no final, o anjin, se propõe a fazer seppuku, uma forma de suicídio ritual que envolve abrir o abdômen, ritual que permite manter a honra na derrota, controlar a morte, algo que a início lhe era totalmente estranho. Ou como ele se oferece para decapitar Mariko, ser um kaishakunin, ou um "segundo" designado que decapita o indivíduo após o esventramento, um sinal de que ele entendeu e respeita a cultura japonesa, a sua filosofia de vida e de morte.

O senhor feudal Yoshii Toranaga, (historicamente, Ieyasu Tokugawa), perspicaz e manipulador, é interpretado pelo magnífico actor Hiroyuki Sanada. Na primeira mini-série a personagem foi interpretada por outro grande actor: Toshiro Mifune. Ele é descendente da linhagem Minowara, inspirada no clã Minamoto, um dos quatro grandes clãs que dominaram a política japonesa durante o período Heian (entre os anos 794 e 1185), poderoso em virtude da sua ligação próxima com a família imperial, facto que inspira receio aos demais. Toranaga é candidato ao título de shogun, que o tornaria o governante de todo o Japão, e os colegas regentes creem que ele é uma ameaça ao seu poder, conspirando sistematicamente para o aniquilarem. 

Porque o piloto Blackthorne sabe português consegue comunicar com jesuítas e japoneses bilíngues que ali encontra. Ao longo da sua estadia vai ser auxiliado por Mariko-sama, como tradutora, a esposa de um senhor feudal, que carrega uma herança de desonra, interpretada de forma sensível e poderosa  pela actriz Anna Sawai. Clavell criou um relacionamento entre Blackthorne e Toda Mariko, mas ela, na vida real, nunca conheceu o piloto Adams. A série descarta a língua portuguesa, os portugueses falam inglês, o que numa primeira fase parece um pouco confuso para nós. Li um protesto inflamado de alguém que desistiu de ver a série neste momento, ou seja, logo no início. Um disparate. Todavia, se uma das preocupações da série foi a autenticidade, teria sido agradável haver actores portugueses a falarem português, com legendagem. Já quando vi o filme Silêncio, de Scorsese, pensei o mesmo. O filme situa-se numa época em que o catolicismo foi banido no Japão e os cristãos são perseguidos. Andrew Garfield, Adam Driver e Liam Neeson interpretam padres jesuítas que ali se deslocam em busca do seu mestre, que teria cometido apostasia. É também um filme sobre choque cultural e sobretudo sobre os limites da religião. Perdeu-se alguma coisa por não haver ali portugueses além do meu orgulho nacional ser esfarrapado? Na realidade, nem por isso. Adorei o filme. Mas a minha inflamação é outra. O meu lamento e tristeza é constatar que nunca nos aventuramos em projectos de entretenimento grandiosos. Com tanta História e tantas histórias para contar, ninguém tem tomates para produzir um épico. Sim, somos um pequeno país, mas muitos no mundo falam a língua portuguesa. A nossa história é riquíssima em acontecimentos que dariam bons filmes e series. Faz-se alguma coisa, é verdade. Mas nada com o fulgor de um Shogun. Não é fácil reunir o capital e o saber para produzir uma série como Shogun. Pela internet pode ler-se como foi conturbada a sua produção e constatar o nível de exigência do projecto. Vejam, por exemplo, o trabalho desenvolvido ao nível de guarda-roupa e caracterização. Basta isso. É de um rigor e de uma beleza inexcedíveis. Mas onde há vontade, há um caminho. Scorsese demorou anos até conseguir filmar o seu filme sobre a presença jesuíta no Japão e as contradições da fé. Na realidade foram décadas! Somente ao fim de 28 anos ele conseguiu fazer o seu filme. E era Scorsese. O que nos falta? Recursos? Talvez.  Ou talvez um pouco de loucura e vontade de sonhar, "Pelo sonho é que vamos, comovidos e mudos. Chegamos? Não chegamos? Haja ou não haja frutos, pelo sonho é que vamos. Basta a fé no que temos. "A gente queixa-se de que silenciaram a língua portuguesa em Shogun quando somos os primeiros a não elevar a nossa história, a nossa língua, no palco do mundo.

Em Shogun aparecem algumas personagens portuguesas: o nosso mais internacional actor, Joaquim de Almeida, surge no papel do padre Domingo. Uma prestação breve mas bem marcante. Mas o papel do padre português Martim Alvito, mais importante, foi para um actor britânico Tommy Bastow. Também três luso-descendentes canadianos, Paulino Nunes, Paul Moniz de Sá e Louis Ferreira estão presentes. Aproveito para dizer que a série foi toda filmada em Vancouver e nem por um segundo imaginamos que não estamos no Japão, no Japão feudal. Muito do rico detalhe visual foi conseguido com recurso a vasto uso do CGI mas a floresta, o porto, a vila piscatória, e o maravilhoso guarda-roupa, são reais. A cinematografia é igualmente deslumbrante e além das principais personagens que menciono, existem  mais, secundárias, igualmente interessantes. Não vi a Guerra dos Tronos, com que muitos comparam esta serie, mas duvido que essa comparação lhe faça justiça. Talvez superficialmente se possam comparar, em grandiosidade, mas só isso. 

O autor baseou-se em figuras históricas reais do século XVII para escrever Shogun. Convém não perder de vista que é uma obra de ficção histórica. Por exemplo, Blackthorne, o protagonista, é Will Adams (1564-1620), e a sua chegada ao Japão e eventos retratados no livro, correspondem à realidade, mas não o tempo contraído em que acontecem. Na história real, Tokugawa conheceu-o e ficou impressionado com seu conhecimento dos navios e da navegação ocidentais. Este acabou por se tornar um seu conselheiro de confiança. A amizade e ascensão a uma posição confortável junto do senhor feudal aconteceram ao longo de vários anos. Não é ele que apresenta armas e canhões aos japoneses, eles já as conheciam. A luta política e militar aconteceu, mas as múltiplas intrigas que a circundam são uma liberdade criativa do autor. Lady Toda Mariko, é Hosokawa Gracia (1563-1600), cujo marido Tadaoki (1563-1645) foi um dos homens mais cultos do seu tempo, mas Clavell transformou-o no tosco e rude Buntaro. Mariko, uma convertida ao cristianismo,  sabia português e latim, sim, mas nunca serviu de intérprete ao "bárbaro" e o antagonista de Toranaga, Ishido, foi bem menos poderoso do que é na série. 

Se a representação da luta militar pela supremacia nacional em Shogun corresponde a factos históricos, muito daquilo a que assistimos é fantasia. É problemático? Não. Mas alguns ficarão desapontados ao saber que Mariko nunca conheceu Will Adams. Essa proximidade seria impossível de acontecer no Japão daquela época, as mulheres dos grandes senhores levavam uma vida muito resguardada. Ora, se existem estas pequenas grandes liberdades criativas, será que podemos confiar em Clavell quando ele escreve sobre modos, atitudes, ou sobre a mentalidade e cultura japonesas? Até que ponto se matavam os japoneses com a facilidade que tanto incomoda o "bárbaro" a ponto de reclamar junto de Mariko que eles não dão valor à vida? Clavell evidenciou as diferenças culturais, a japonesa e a ocidental, e preferiu uma visão eurocêntrica, que o piloto inglês representava, a sua cultura é, naturalmente, percebida como  superior à outra, mas esta nova adaptação parece equilibrar melhor o valor de cada uma, no respeito ainda das suas diferenças. Na presente adaptação para TV muito foi vincado que se preocuparam com o rigor, e, ao mesmo tempo com uma apresentação que agradasse à nossa sensibilidade e entendimento moderno das culturas. Mas, acreditem, por mais que a busca por autenticidade seja feita, a margem para erros em projectos com inspiração histórica existirá sempre. 

Actualmente a contestação da precisão histórica também pode ter origem na preocupação com a "representatividade". Estava eu a ver um "making of "no Youtube quando leio um comentário de alguém que questionava a ausência de pessoas de raça negra em Shogun, coisa inadmissível neste ano de 2024, manifestando-se embaraçado por essa ausência. Mais à frente alguém mencionava Yasuke, que se acredita ter nascido em Moçambique, um estrangeiro feito samurai por Oda Nobunaga, o primeiro dos três grandes unificadores do império insular e que era o daimyo (senhor feudal japonês) desse tempo, como prova para a existência de africanos no território. Esse homem participou de várias batalhas importantes ao lado de Oda Nobunaga. Yasuke chegou ao Japão em 1579, há registo de várias peripécias,  e a partir de 1587 nunca mais houve notícia dele.

É provável que não apenas japoneses e portugueses calcorreassem o Japão em 1600: africanos, alguns aventureiros, tripulantes, e outros trazidos como escravos, vendidos, e alguns até depois libertados, servos...E,  porque não, Chineses e Coreanos? Seriam uma minoria. Mas temos de enfiá-los numa série ou filme cujo âmago são, sobretudo, as atribulações de  japoneses para que Africanos, Chineses e Coreanos não se sintam apagados da História e só assim consigam apreciar uma boa história? Vamos substituir um dos cinco grandes do Conselho de Regentes por um negro apenas porque estamos em 2024?! Ou, em vez de Tadanobu Asano a interpretar Yabushige, de forma magistral, há que o dizer, queriam antes o Jamie Foxx para não se sentirem injustiçados? Ou o Will Smith? Em nome de quê? Onde está o erro se não há relato de que essas personagens chave fossem negras?  Que acréscimo, que valor, acarretaria essa escolha a Shogun? Coisas como amor, perda, traição, morte, amizade, lealdade, não são emoções transversais a qualquer ser humano independentemente da cor da sua pele? O que pensará Hiroyuki Sanada desta contestação, ele que tanto procurou autenticidade para Shogun, enquanto produtor bem ciente da falta de diversidade cultural em Hollywood?? Gostava de saber.


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