Na ressaca das eleições e da "volta à direita"
Usualmente não escrevo sobre política, talvez achando que não preciso, mas a verdade é que talvez o devesse fazer. Muitas vezes uso a escrita para me ajudar a pensar melhor e nem sequer a torno pública. Há dezenas de rascunhos no blogue. Também não sigo com rigor absoluto o que acontece na cena política e por isso deixo o assunto para quem sabe. Quando escrevo sou quase sempre confrontada com as minhas certezas e limites. Faz muita falta, a muita gente, sobretudo à classe política, deixarem de lado as suas certezas contundentes uma vez por outra. O invisual, que vai tateando a realidade à medida que avança, faz um reconhecimento do caminho para chegar ao seu destino, e assim adequa o seu passo a novos obstáculos que encontre, alcançando o seu propósito com êxito. Ele respeita cada obstáculo, nunca vi nenhum a dar pontapés num obstáculo que lhe tolhesse a progressão. Os partidos políticos nem de olhos abertos fazem isso. Definida uma agenda, fazem-se à estrada mas, muitas vezes, numa cegueira completa, ignoram os problemas, quando não passam por cima deles ou os derrubam, demitem-se de qualquer mudança que o seu trajecto lhes pudesse exigir. Esta falta de plasticidade, que também podia dizer diálogo, condena-os, e às suas políticas, ao insucesso, e possibilita que fantasmas retornem para assombrar a democracia.
Talvez ingenuamente, durante anos, julguei que Chegas não triunfariam nas nossas urnas. A herança de Salazar asseguraria um voto sempre digno de Abril. Mas passaram 50 anos e muita da nossa memória já é apenas ficção nas nossas pesadas cabeças. O tempo não perdoa, nem os desafios do quotidiano. Será que o sentimento antifascista se consumiu? Não, mas o descontentamento instalou-se. E cedo demais. Há quem, equivocado, suspire pelo passado, mas mais do que censurar é preciso interpretar. A revolução de Abril não se consolidou amplamente, Portugal é ainda um parente pobre da Europa. E instalou-se também uma grande apatia política quase sempre traduzida em abstenções enormes a cada eleição. O desencanto com tanta promessa por cumprir, tanto sonho, é evidente. Ora, se até na Alemanha, a direita radical cresce, parece não haver vacina histórica contra populismos radicais. Uma vez encontrado o terreno fértil, eles eclodem como uma doença viral, por isso, nada de espantos.
Era para mim motivo de orgulho ver que nos distanciávamos das tendências europeias, Itália, Áustria, Hungria e Polónia, eleição após eleição, mas preocupante ver como estavam representados no Parlamento Europeu. Então, ontem o Chega passa do 1, qualquer coisa dos votos de 2019 , - depois de ter subido mais um pouco nas Presidenciais de 2021, - para um número mais redondo, sobe de um deputado para 48. O descontentamento com a classe política já existe há muito tempo mas até aqui os votantes ou não iam votar ou votavam em branco, ou votavam nulo. Não escolhiam partidos radicais para protestarem contra a corrupção e um sistema político com tamanho desplante, apesar de tudo, democrático. E então, ontem, foi muita a decepção quando a TV anuncia as projeções: o Chega transformado na terceira força política mais expressiva. Hoje, na ressaca eleitoral, com calma, vejo que a tal assombração do passado pode até ser o choque que fazia falta para abanar a árvore da política e largar alguma podridão.
Era evidente que, tal como na canção da Glória, a mensagem do Chega tinha atingido de forma estridente, irracional e entusiasta os ouvidos de uma parcela da população. O Chega tornara-se sinónimo de esperança para quem se cansou da alternância PS-PSD. Uns usaram-no como protesto. Outros entregaram-lhe a sua confiança. Como é um partido que ainda nada fez, não tem nada que se lhe apontar, nem bem nem mal. Não se envolveu em escândalos, não é corrupto. Dizem também os devotos que é uma bênção do Senhor neste lodaçal político à beira mar. Como alguém escreveu no Facebook, Ventura é o enviado divino que vai restaurar a nação lusa à sua grandeza. (A frase continha muitos erros ortográficos.)
Lembrei-me das pessoas que tinha visto do outro lado da avenida. Eram jovens. Um longo desinvestimento na educação pode explicar parte do sucesso do Chega de norte a sul. O pensamento crítico está em crise. A ignorância tem o seu culto. O individualismo, crescente. Mas no mapa eleitoral o Algarve é todo azul. O Chega triunfou em Faro de forma esmagadora sobre o PS que governava. Como se explica? O que sabemos sobre Faro? O que sabemos da luta diária de quem vive no Algarve? Quais os problemas da população? Há desemprego? Como é o acesso à saúde? E a escolarização? Há muita imigração incómoda? Há descontentamento com a governação local? Como é viver em Faro? Só lá vamos de férias, tal como os políticos. Foi um voto de protesto pela forma como os sucessivos governos têm tratado o Algarve? Terá o Chega estudado o território nacional e identificado no Algarve um potencial eleitorado mais favorável às suas ideias, agindo ali de forma especialmente metódica?
Quando Trump andava em campanha e nos deleitávamos online com o humor cáustico e desbragado em torno da sua figura, confiando que não seria eleito, o que sabíamos da realidade daqueles que o elegeram ? Claro que também zombei e chamei idiotas aos que votaram para tornar a América grande outra vez. Mas quando vi uma reportagem sobre quem eram essas pessoas, ou algumas delas, note-se, nem todas eram dignas de compreensão, comecei a moderar o meu discurso: idiota era eu, porque era ignorante. Idiotas foram, antes de mais, todos os que lhes prometeram muito, e pouco ou nada cumpriram, ano após ano, ao mesmo tempo que priorizavam o seu umbigo de interesses, dividindo ainda mais a população entre favorecidos e desfavorecidos. Esses americanos, vulneráveis a vários níveis, sem grandes qualificações profissionais, com baixa escolaridade, não tinham, na sua região, quaisquer perspectivas de vida. A sua desilusão era tão grande, a sua perspectiva de futuro tão negra, que eles beijariam o chão de quem quer que fosse lhes apontasse um caminho novo. Todos tinham falhado, a nível local, ou acima. Eles não se sentiam representados. E isto aconteceu: alguém lhes disse o que queriam ouvir, falando a sua linguagem, sem floreados. Ali estava alguém em quem podiam confiar e ao mesmo tempo vingar a elite que nada tinha feito por eles, por mais absurdo que tudo isto nos parecesse, a nós, cientes daquela fanfarronice, visto de longe.
Em Portugal, um cenário equivalente pode assumir outro recorte social, económico, demográfico, etc, mas o sentimento de desencanto de quem não se vê representado pelo partido X ou Y, anos a fio, poderá ser semelhante. E se dantes votavam à esquerda, no PS ou no partido comunista, actualmente, desistiram. Eles já não oferecem soluções. O último, com a sua intransigência e subserviência ao passado, incapaz de acompanhar a mudança de mentalidades e as questões mais actuais, deixou de ser atraente. Ao PS, deu-se-lhe a faca e o queijo para a mão e o que é que fizeram? Desbarataram a oportunidade! Estrago irremediável? Não, mas agora é preciso fazer muito melhor se os quiserem reconquistar. Os votantes repartiram-se por outros partidos, e também pelo Chega, que soube usar uma linguagem mais moderna, bramir certas questões críticas para nós mas que soam como música ao ouvido daqueles, servindo-se muito das redes sociais para alcançar o seu alvo, e invocando promessas que não passam de cenários de papel que em nada resolverão o ressentimento.
Vemos então, que passados 50 anos sobre o 25 de Abril, a história que nos tornou fortemente antifascistas já não chega para manter os votantes longe deste tipo de partido radical e populista. Os tempos são outros. Mas se ontem estava alarmada, hoje vejo uma oportunidade de viragem. Seria um desperdício e um perigo que a Esquerda, mas não só, não aproveitasse esta lição para pensar seriamente no futuro. Talvez a nossa classe política precisasse de ver para crer. Pois aí está a evidência dos problemas menosprezados por décadas. A ascensão de partidos populistas não se combate nas urnas, combate-se no dia a dia. Infelizmente, os portugueses continuam à espera de ver os seus problemas resolvidos e o cenário dos próximos meses aponta para instabilidade governativa. Merecíamos melhor, porra.
Abril, sempre!
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