Bella Baxter não é uma pobre criatura


Pobres criaturas
podia chamar-se Bella Baxter. Ela é o filme. Bella é uma esplêndida criação e tem dois pais: um é o escritor escocês, Alasdair Gray, outro, o pai adoptivo, Yorgos Lathimos, um realizador que já nos habituou a filmes e personagens inconvencionais. O escritor tem formação artística, foi ilustrador e pintor, tendo realizado ilustrações para muitos dos seus livros. O filme deixou-me muito curiosa a seu respeito.

Poor Things, uma comédia subversiva e absurda, onde são questionadas algumas das regras que regem boa parte da convivência humana, é um festim visual tão futurista quanto contemporâneo, combinando elementos tão diversos que me recordei de Breughel, Gaudi, do steampunk, da arte nova, ou de universos fílmicos singulares como os de Greenway, algum Burton, e até de Jeunet et Caro, que nos anos 90 também nos ofereceram uma estranha comédia bem surreal. Este delírio é acompanhado por uma banda sonora extravagante que soa por vezes a experimentalismo musical, quase fora de tom, que começa com um trecho tão ingénuo e estranho como Bella, e que ganha complexidade à medida que também ela soma experiência de vida. A fadista Carminho aparece a cantar na varanda de uma Lisboa imaginária e uma tal Dança portuguesa, claramente inspirada no nosso folclore, um dos momentos mais engraçados do filme, tornou-se merecidamente viral. As escolhas do realizador, na direcção, o uso das lentes de olho de peixe que são talvez uma forma de nos aproximar do olhar atrevido e peculiar de Bella sobre um mundo que ninguém a iniciou a decifrar, foram do que menos apreciei. Os diálogos espirituosos, alguns quase obscenos, que muito me fizeram rir, e que me dão vontade de ler o livro, compensaram. Para o final, senti algum cansaço, creio que o filme podia ser mais curto, e dei por mim a pensar que tinha gostado mais de ver a  A Favorita, embora este seja mais coeso.

Poor Things ganhou o Leão de Ouro em Veneza, mas houve quem o considerasse um exercício pretensioso. E exibicionista. Mesmo esses louvaram o desempenho de Emma Stone embora as opiniões se dividissem perante algum horror, e sobretudo cenas envolvendo nudez e sexo, ou a caraterização positiva do trabalho sexual. É que além de curiosa, Bella é dona de uma líbido voraz: - “Porque é que as pessoas não fazem isso o tempo todo?”, pergunta a Duncan, após uma sessão de "saltos furiosos". O sexo, - além de fonte de comicidade,  tal como a linguagem utilizada por Bella, - é usado no filme como sinal de autonomia e empoderamento feminino, o oposto do desejável numa mulher da época vitoriana, quando a sociedade era puritana e marcadamente patriarcal, voltada para a família, e o sexo era um mundo de contradições. Se não erro, a idade do consentimento sexual era então 10-12 anos. A prostituição era uma ocupação comum. O instinto sexual era tido como um exclusivo dos homens, as mulheres deviam remeter-se a ser objecto de desejo masculino e a desenvolver instintos maternais. À luz desta caracterização sumária, Bella  revela-se uma mulher transgressora. Ao assumir o seu desejo sexual, o seu instinto, acaba temida por Duncan,  enquanto rivaliza com ele, escapa ao seu controlo logo, é perigosa.

Emma tem uma interpretação poderosa e inesquecível, a sua linguagem corporal e expressividade são admiráveis. Observar a evolução da inconvencional Bella, que começa a sua jornada de mente e corpo dessincronizados, animalesca, fazendo birras infantis, partindo coisas e socando a esmo, tirando prazer da comida e da masturbação, e termina mulher matura, sofisticada, a estudar para o exame de medicina, isto apenas, a forma como domina a linguagem e controla o corpo, já valeria a compra do bilhete. Emma é tão boa neste papel que até ofusca os outros, igualmente bons. Destaco apenas William Dafoe, como God, abreviatura de Godwin. O guardião e criador de Bella, é um homem gentil e um louco, marcado na face e no corpo por experiências muito pouco científicas conduzidas pelo seu abusador pai, quando ainda criança, podia ter ter tido um pouco mais de desenvolvimento. Ele é essencialmente um cientista que, perdendo o seu objecto de pesquisa, logo o irá substituir por outro. E Mark Ruffalo, ou Duncan, o advogado chamado por God para regular, controlar, o futuro de Bella através de um contrato escrito, um sedutor compulsivo que acaba obcecado e vingativo, frustrado, porque Bella não se deixa reduzir a uma sua conquista, antes o descarta, prezando acima de tudo a sua independência, pondo em cheque a masculinidade de que ele tanto se orgulhava. Bella é afinal um demónio porque não a mulher subserviente e ele uma vítima! Duncan é fanfarrão, pateta e hilariante. Quanto mais Bella cresce como pessoa mas infantil Duncan se torna. Que bom ver Ruffalo longe do universo Marvel, esse buraco negro que suga qualquer actor para um limbo de previsibilidade. O estudante de medicina Mac MacCandles, (Ramy Youssef) , uma personagem menos trabalhada, é o primeiro a ser enfeitiçado pela esplêndida e única Bella. Mesmo sem saber bem como lidar com a sua ambiguidade, ele é o único que parece compreender que a liberdade é, para ela, é essencial.

A opulência visual da produção, do guarda roupa aos cenários, podia até distrair-nos do que importa, mas a simplicidade da história, não permite. É o filme mais acessível do realizador. No final do séc XIX, um estranho cirurgião e pesquisador leva a cabo uma experiência, depois de já ter populado a sua casa com estranhos animais de estimação. Uma mulher grávida e anónima é pescada das águas do rio e levada para a sua “clínica”. O cérebro do feto é transplantado para a caixa craniana da mulher, que é reanimada eletricamente, assim se criando uma nova e estranha forma de vida, Bella Baxter, de seu nome. Desta forma começa a aventura de horror gótico, ficção científica e comédia, uma invulgar e ousada paródia da era vitoriana, que aborda vários temas actuais. Pela cabeça passaram-me títulos como o óbvio Frankenstein, obra-prima gótica, Dr. Jekyll e Mr. Hyde ou até Lolita. Também me ocorreu as "penny blood", um subgénero do romance gótico vitoriano, histórias e ilustrações sensacionalistas de horror e crime, com foco urbano e burguês, que eram publicadas para entreter as massas trabalhadoras vitorianas. Uma delas é a história de Sweeny Todd, que Burton adaptou ao cinema, onde o horror se cruza com o humor. A burguesia considerava estas histórias perigosas, subversivas, porque iludiam a moral e os costumes vitorianos, apesar de nutrirem um gosto perverso por tudo quanto era mórbido.

Bella tem de superar as suas limitações físicas e intelectuais – ela não tem memórias, não fala, não tem experiência alguma de vida – mas isso acontece rapidamente. O mundo seguro que o seu criador lhe reservou depressa se torna demasiado pequeno e desinteressante. Ela exige ver o mundo fora de portas. Anseia, mesmo sem o saber ainda, ser dona de si mesma e do seu destino. Uma fome de viver anima o seu corpo e rapidamente ela aprende sobre o prazer, com curiosidade infantil. Desconhecendo, como qualquer criança que tivesse crescido na selva, todo um conjunto de regras e preceitos que oprimem a sexualidade feminina, Bella não tem qualquer reserva em relação ao sexo. Não tem decoro, não sente vergonha, e sem saber desafia as convenções sociais e as expectativas dos homens que encontra ao longo da sua viagem de auto-descoberta, aprendizagem e crescimento.

Quando deixa Londres os seus olhos enormes abrem-se para o mundo, ela parece tão deslumbrada como perdida, a sua vida ganha cores. Ela parte à aventura com Duncan que a alicia com um mundo de prazeres e luxos, primeiro rumam a Lisboa, depois seguem num cruzeiro para Alexandria, segue-se Marselha. Por fim, Bella é abandonada em Paris e vai para um bordel trabalhar, antes de retornar a casa, carregando na bagagem uma colecção de experiências vividas de forma intensa. Tendo experimentando tudo avidamente, a comida, ostras e pastéis de nata, a dança,  o sexo, ou o mundo das ideias, ela foi forçada a tirar a conclusão de que o mundo é bem mais complicado do que parecia ser. Afinal, há nele desigualdade, há desumanização, uma consequência do materialismo da sociedade e do capitalismo em marcha de que ela não tinha consciência. Constata que os seres humanos não se veem uns aos outros como iguais, que se  usam uns aos outros como se coisas fossem, ignorando o sofrimento que causam para obter vantagens. E os privilegiados tudo fazem para manter invisível esta realidade grotesca. O mundo que a aguardava revela-se, para seu choque, monstruoso. A sua alma pura de criança é dilacerada e logo Bella quer ajudar as pessoas e tornar o mundo um lugar melhor.

Ao longo da sua viagem exploratória, Bella aprendeu que crescer não é apenas prazer, é também sofrimento, é descobrir um mundo de problemas e contradições que são poupados à infância. É perceber quem se é, se uma quimera, um cérebro costurado num corpo de mulher, um monstro, se um produto do abuso e da violência, se uma mulher, se tudo isso, e o que se quer. É fazer as pazes com o passado, encontrar um sentido para a vida, e continuar a jornada de aprimoramento pessoal. Bella Baxter foi criada artificialmente, teve uma segunda oportunidade e aproveitou-a, recriando-se o melhor que soube e pode. Traçou vitoriosamente o seu caminho e antes de se casar com Max, e de se formar em medicina, ainda vinga Victoria Blessington, aquela mulher grávida e desesperada que se tinha atirado da ponte por não suportar um casamento com um homem cruel.  Gosto do poster.


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