Cinema: Anatomia de uma queda




"Às vezes um casal é uma espécie de caos."

Este ano estou estranhamente desligada da corrida aos Oscars, completamente desinteressada do desfecho mas ainda assim prestando atenção à lista de nomeados e procurando ver cada filme que tem estreado. Mais do que ter achado algum filme inesquecível, tenho-me entusiasmado com interpretações excepcionalmente boas, certas personagens admiravelmente compostas. Já aqui me referi à minha predilecção pelo professor Hunham interpretado por Paul Giamatti, em The holdovers, que alguns menosprezam dizem ser apenas uma extensão dele mesmo. Algumas dessas interpretações, como sempre, estão fora da lista, como é o caso de Natalie Portman, em May December, último filme de Todd Haynes. O problema das listas, finitas por natureza, não é tanto o  que incluem, é o que excluem, por serem finitas. Os excluídos ficam na sombra dos incluídos e embora para quem goste de cinema isso não tenha qualquer importância, afloram por vezes sintomas da insatisfação dos protagonistas pois para eles isso é sinónimo não apenas de popularidade mas de prestígio. 

Na lista mais cobiçada da temporada de prémios há um nome que a meu ver se destaca na categoria da actriz principal: é Sandra Huller, a protagonista de Anatomia de uma queda, de quem se devem lembrar como a filha distante que o pai tenta reconquistar na brilhante comédia Toni Herdmann, eu, pelo menos, apenas a vi nesse filme. Todos os intervenientes são excelentes nesta anatomia de uma queda conjugal: até o cão, Snoop, merecia uma nomeação! Era, talvez, o filme que mais ansiava ver da lista de nomeados pois muitos louvores foram escritos sobre ele após a vitória em Cannes. De certa forma, foi sem surpresas que cheguei ao fim. A expectativa cumprira-se integralmente. Ainda assim, não estava preparada para a excelência da interpretação de Sandra Huller, a quem talvez escape o Oscar porque tudo isto é subjectivo. Ainda não vi Poor Things, pelo que a sua concorrente mais forte parece-me ser Lilly Gladstone, em Assassinos da Lua das Flores.
O argumento de Anatomia é também capaz de arrecadar o prémio, mas aqui eu vacilo entre este e o de May December, outro filme interessantíssimo, algo semelhante a este por também nos deixar igualmente enervados, minados pela incerteza, à medida que cada personagem se desvenda ou é desvendada. Em ambos acompanhamos uma investigação, neste último, acompanhamos Elizabeth (Nathalie Portman), no papel de uma actriz que para construir a personagem que irá interpretar num filme futuro procura alcançar a "verdade" sobre uma mulher muito mais velha (Gracie/ Julianne Moore) que seduziu um menor, com quem virá depois a casar . Em ambos existem vítimas e em ambos é admirável a forma como somos conduzidos numa investigação até ao âmago das suas histórias perturbadoras. Quer no filme de Triet, quer no de Haynes, cada um dos cônjuges tem uma história diferente  - a sua "verdade" - a contar sobre uma mesma vida partilhada de que o outro não tem ou não quer ter consciência. Em ambos, os momentos de confronto ou de tomada de consciência dessa realidade, são pontos fulcrais da narrativa. São experiências cinematográficas muito diferentes, mas ambas nos deixam o cérebro em frangalhos porque os filmes depois de nos terem investido no papel de detectives, brincam de forma perversa, ou apenas magistral, com a nossa percepção. Ficamos confusos, hesitantes, perguntamo-nos se devíamos duvidar do que julgamos saber! Queremos respostas e elas não chegam no formato ideal. O estado de dúvida é sempre ingrato: tal como a criança de 11 anos, Daniel, filho de Sandra, em Anatomia de uma queda, todos queremos entender. Mas enquanto em May December o jogo da incerteza nos faz sair do cinema num estado de desconforto, neste filme, a dúvida é um prémio intelectual que acresce ao muito que Anatomia de uma queda oferece e que o torna particularmente inesquecível e compensador. 

Sim, desenrola-se um processo legal, há um veredicto, mas quando Snoop se deita tranquilamente ao lado de Sandra para dormir, mesmo antes dos créditos finais chegarem, é perfeitamente possível que isso apenas provoque em nós mais questionamentos. Lembro-me de ter lido que nem mesmo Sandra Huller tem a certeza da inocência da escritora que interpreta. Durante a produção do filme, ela perguntou a Triet se Sandra cometeu ou não o crime. Triet não a esclareceu. É de mestre! Vão ver e digam coisas.

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