Oppenheimer, o filme; Hiroxima, o livro.
A solução da bomba, um segredo que apanhou o mundo de surpresa, foi facilmente vendida à opinião pública como um mal necessário e Oppenheimer, a face mais visível do projecto, um herói instantâneo. O ódio aos japoneses cegava, talvez mais isso do que o conhecimento das suas inabaláveis vontades de lutar e de se sacrificar, qualidades que os tornavam particularmente temíveis. A escassa informação divulgada pelos meios possíveis e oficiais sobre as consequências deste acto devastador levou a que a vitória sobre o Japão fosse festejada despudoradamente, com frenesim nacionalista. Os veteranos regressavam a casa, em festa. O mundo respirava em paz.
O primeiro filme de Hollywood sobre a história da bomba, The Beginning or the End (um docudrama) não só escamoteou a verdade histórica e científica, como também serviu a tese da inevitabilidade. Foi rodado sob supervisão do General Groves e o Presidente Truman até lhe deu o título. Oppenheimer visitou o set. Em 1947, o filme fracassou nas bilheteiras, mas em 2020, um livro escrito por Greg Mitchel, The Beginning or the End How Hollywood—and America—Learned to Stop Worrying and Love, mostra o choque ocorrido entre Hollywwood, e cientistas, políticos e militares sobre a versão do bombardeio de Hiroshima, permitindo descobrir um filme sabotado para defender a bomba.
Ainda adolescente li um pequeno livro, pequeno em tamanho, fazia parte da então popular Coleção Miniatura Livros do Brasil. Mas este pequeno livro, Hiroxima, revelou-se enorme na forma como, através de uma linguagem quase cinematográfica, directa e seca, tanto quanto me recordo, me transportou para aquele inferno atómico, fazendo-me deambular entre feridos e destroços, lume e fumos tóxicos, levando-me rapidamente a concluir que os sobreviventes de Hiroxima eram mortos-vivos que preferiam ter morrido instantaneamente. Nunca esqueci uma passagem onde se lê que as flores dos kimonos das mulheres estavam, após a explosão, impressas na sua pele, por acção daquele intenso clarão. As breves páginas contêm muitas imagens-choque que ficam impressas na nossa memória, como se tivéssemos visto um filme.
Inicialmente esse livro foi uma reportagem jornalística de John Hersey, - um jornalista que tinha ganho um Pulitzer, - que devia ser publicada na revista The New Yorker faseadamente, muito possivelmente para colmatar a ausência de informação que permitisse ao cidadão compreender o incompreensível, ter acesso a uma experiência nova e muito difícil de assimilar: a da violência nuclear. Em vez de fasear, a revista devotou todo o seu espaço ao texto sobre a quase completa destruição da cidade japonesa de Hiroxima e sua população de 250 mil pessoas, -metade sucumbiu ou estava ferida, ou começou a morrer em quatro semanas, e ao longo de dois meses, em consequência da radiação, talvez mais 100 mil em cinco nos viram a sua vida ceifada por doença - talvez para também permitir uma reflexão mais completa sobre o uso daquele poder destrutivo. Na sua capa , uma inocente ilustração em tons de verde mostra pessoas que conversando, passeando, nadando, dançando, jogando ténis, descontraidamente gozam o que parece ser o seu tempo livre num parque com caminhos, lagos e árvores. Dentro, a abrupta interrupção da normalidade. Uma amostra do inferno. Em resposta à sensacional repercussão desta publicação na opinião pública, a Harper's Magazine publicou em Fevereiro de 1947, um artigo escrito por Henry Stimson, conselheiro-chefe sobre política atómica do presidente Roosevelt e, mais tarde, do presidente Truman, intitulado The decision to use the atomic bomb .
Inicialmente esse livro foi uma reportagem jornalística de John Hersey, - um jornalista que tinha ganho um Pulitzer, - que devia ser publicada na revista The New Yorker faseadamente, muito possivelmente para colmatar a ausência de informação que permitisse ao cidadão compreender o incompreensível, ter acesso a uma experiência nova e muito difícil de assimilar: a da violência nuclear. Em vez de fasear, a revista devotou todo o seu espaço ao texto sobre a quase completa destruição da cidade japonesa de Hiroxima e sua população de 250 mil pessoas, -metade sucumbiu ou estava ferida, ou começou a morrer em quatro semanas, e ao longo de dois meses, em consequência da radiação, talvez mais 100 mil em cinco nos viram a sua vida ceifada por doença - talvez para também permitir uma reflexão mais completa sobre o uso daquele poder destrutivo. Na sua capa , uma inocente ilustração em tons de verde mostra pessoas que conversando, passeando, nadando, dançando, jogando ténis, descontraidamente gozam o que parece ser o seu tempo livre num parque com caminhos, lagos e árvores. Dentro, a abrupta interrupção da normalidade. Uma amostra do inferno. Em resposta à sensacional repercussão desta publicação na opinião pública, a Harper's Magazine publicou em Fevereiro de 1947, um artigo escrito por Henry Stimson, conselheiro-chefe sobre política atómica do presidente Roosevelt e, mais tarde, do presidente Truman, intitulado The decision to use the atomic bomb .
A revista saiu a 31 de Agosto de 1946, um ano após o bombardeio. O autor escreveu a sua peça a partir da observação e de relatos obtidos junto de sobreviventes entrevistados extensamente, ao longo de três semanas de investigação. Hersey dá-nos a conhecer a perspectiva das vítimas, homens, mulheres, crianças, partindo das suas memórias para a escrita. A edição de 300 mil exemplares esgotou-se e foi reimpressa. Excertos desta narrativa foram publicados em jornais e revistas, a reportagem foi lida na íntegra aos microfones de muitas rádios. John Hersey, 40 anos depois da publicação desta reportagem onde literatura e jornalismo se fundiram, e do livro publicado em Outubro de 1946, logo traduzido, retornou ao Japão e concluiu a história de vida dos seis hibakusha (termo japonês referente aos sobreviventes e que significa pessoas afetadas pela explosão) retratados: uma viúva, uma secretária, um padre jesuíta, um pastor metodista e dois médicos. Por esta razão, em republicações posteriores da obra existe mais um capítulo.
O livro inicial reparte-se por 4 capítulos. No primeiro, intitulado Um clarão silencioso, Hersey descreve as personagens e seus afazeres: "No dia 6 de agosto de 1945, precisamente às oito e quinze da manhã, hora do Japão, quando a bomba atómica explodiu sobre Hiroshima, a Srta. Toshiko Sasaki, funcionária da Fundição de Estanho do Leste da Ásia, acabava de sentar-se à sua mesa, no departamento de pessoal da fábrica, e voltava a cabeça para falar com sua colega da escrivaninha ao lado."; no segundo, O fogo, apresenta os efeitos imediatos da explosão da bomba quer na mente, quer no corpo, quer nas suas atitudes; no terceiro, Investigam-se os detalhes, aborda a procura de explicações pelos japoneses sobre o tipo de tecnologia foi utilizada, a entreajuda, e acções do governo japonês para auxilar os sobreviventes e lidar com os mortos; no quarto, Flores sobre ruínas, aborda como é reconstruir a vida enquanto se sofrem as consequências da radioatividade. Um quinto e último, Depois da catástrofe, é um relato que tem lugar 40 anos depois e Hersey mostra como a vida destas pessoas mudou depois da explosão, abordando as sequelas do sucedido. Este capítulo apenas surgiu nas edições a partir de 1985.
Já se passaram muitos anos sobre a sua leitura, mas ainda retenho o choque dessa descoberta e a lembrança de uma enorme angústia ao percorrer cada página. Mesmo sem ter feito esta leitura, é totalmente possível que uma pessoa se angustie ao ver Oppenheimer. Mas eu sei que a angústia que me acompanhou do princípio ao fim do filme de Nolan tem ainda origem neste livro. Somos poupados às imagens da devastação nuclear, mas não creio, todavia, que fossem necessárias: amplamente divulgadas, pairam na memória da maioria de nós. É um relato que, portanto, se esquiva a olhar nos olhos das verdadeiras vítimas. Temos de as adivinhar nos olhos de Oppenheimer, mas isso não é impossível. O filme foca-se antes na exploração da personalidade e legado do " pai da bomba atómica", o homem escolhido pelo General Groves para director científico do projecto ultra-secreto de nome Manhattan. É empolgante enquanto mostra a aventura fraterna e intelectual daquele selecto grupo de cientistas, mas também supremamente tenso e sombrio. A concorrer para isso, ainda o facto da recriação deste pedaço da História se fazer num momento em que a ansiedade nuclear se tornou mais palpável, agora alimentada pela difusão de imagens e discussões na rápida internet, como quando Ucrânia e Rússia originaram sérias preocupações em virtude de conflitos próximos da central de Zaporizhzhia ou Putin ameaçou usar o seu arsenal nuclear. O filme relembra-nos a possibilidade muito real da nossa aniquilação por via de um conflito nuclear, - nove países possuem essas armas, -e, indiretamente, insta-nos a refletir o presente.
Após 3 anos, a equipa chefiada pelo brilhante físico leva a cabo o teste Trinity, no deserto do Novo México, a sul de Los Alamos, assim inaugurando com êxito era do átomo, ainda no desconhecimento exacto do alcance e das consequências da precipitação radioactiva. Nenhum civil foi avisado antecipadamente sobre o teste e não foram evacuados antes ou depois do teste. Esses habitantes nativos foram as primeiras vítimas. Três semanas depois, o Japão testemunha o poder destrutivo da primeira bomba atómica.
O argumento de Nolan é baseado na premiada biografia American Prometheus. The Triumph And Tragedy Of J. Robert Oppenheimer, escrita por Martin J. Sherwin e Kai Bird, um livro que não li. Prometeu, no mito, deu ardilosamente o fogo exclusivo dos deuses aos seres humanos, colocando-os em vantagem na relação com os animais, já que podiam trabalhar os metais e cultivar a terra. Zeus, irado, pune-o com um tormento perpétuo. É amarrado no topo de uma montanha para ter o seu fígado devorado por uma águia, e todos os dias este se regenera. Só Hércules, ao cabo de uma eternidade, acabará com o seu tormento, matando a águia com uma pedra e libertando-o das correntes. O fogo tem um sentido simbólico de conhecimento, tanto para o bem, como para o mal, a possibilidade de transformar a Natureza. O titã que é simultaneamente rebelde, capaz de desobedecer aos poderosos deuses do Olimpo, e trágico, enfrentou com orgulho o seu destino e nunca se arrependeu de se ter sacrificado em benefício dos homens, pois grandes conquistas apenas são possíveis com enorme sacrifício e sofrimento.
Quando o projecto Manhattan toma forma, vivia-se uma encruzilhada. Se os nazistas conseguissem a bomba, o mundo estava perdido. Se Oppenheimer conseguisse a bomba, ainda assim o mundo não estaria a salvo. Nunca mais. Ainda que se pensasse que a bomba tornasse a possibilidade da guerra no futuro inimaginável e fosse vista como um instrumento de paz, a corrida às armas nucleares começaria ali. Na sua mão, ao encontro de Eisntein, cálculos que poderiam iniciar uma reação em cadeia que poderia destruir o mundo inteiro. A incerteza. A corrida contra o tempo, a dimensão do projecto - que empregou meio milhão de pessoas - o conhecimento daquele novo fogo, tornaram-no um fantasma de si mesmo, assombrado por um futuro que apenas ele podia visualizar.
Após o bem sucedido projecto, Oppenheimer, agora consultor de armas nucleares para o governo dos EUA , começou a falar publicamente sobre os perigos e riscos da guerra atómica, apelida a bomba de maligna, considera que uma superbomba, como era a bomba de hidrogénio, seria uma arma de genocídio. Propôs a Stimson que novas pesquisas sobre armas nucleares fossem proibidas. Esta sua nova faceta torna-o incómodo e em 1954, Oppenheimer também é punido. É sacrificado numa infame audiência de segurança que examina os mais diversos aspectos da sua vida pessoal e profissional para o reduzir a um simpatizante de esquerda, logo um inimigo de Estado, vendo-se mesquinhamente impedido de trabalhar em projectos sensíveis para a segurança nacional. Tornar-se um agente da União Soviética nunca lhe deve ter passado pela cabeça, nem talvez ser membro do partido comunista, pese embora a simpatia pelo movimento, e ter tido, ao longo da vida, muitas e boas ligações com comunistas, até na família. Um pouco desastradamente parece ter implicado amigos como agentes soviéticos, e um pouco ingenuamente justifica o acto como mentira. Parece certo que antes do início da II GG já Oppenheimer tinha abandonado as suas tendências políticas esquerdistas, talvez ciente de que lhe acarretariam prejuízo. E assim, em plena histeria comunista, na Era McCarthy, o seu contrato como conselheiro da AEC é rescindido. Sempre um patriota mesmo quando discordava da construção da bomba de hidrogénio, com potencial destrutivo mil vezes maior do que a nuclear, e esclarecia sobre os riscos do nuclear, e um amante do seu país, Oppenheimer vê a sua reputação destruída.
Oppenheimer, o homem no centro de um enorme segredo, um desafio científico, industrial e tecnológico, acaba por ser consumido mental e fisicamente por ele. A bomba que mudou o mundo, mudou-o também. O perito em física teórica, o cientista confiante, que se revelaria um gestor e líder surpreendente, torna-se receoso do futuro e em palestras pelo mundo advogará o controlo internacional de armas nucleares, destacando a necessidade da colaboração internacional para travar a sua proliferação e garantir a sobrevivência da humanidade. Mas ele não pôs, de facto, as mãos na massa. Nem lhe cabia decidir como a bomba foi usada. Sem ele não teria havido bomba, mas sem os outros também não. A bomba é fruto de muitos pais e algumas mães, um trabalho de equipa. Ele fez a ponte triunfante entre os operacionais, engenheiros, académicos, cientistas, e os políticos, estes, gente cujo modus operandi ele não dominava, acabando apenas por sair vencido no jogo político.
O Oppenheimer do filme é uma espécie de anti-herói, capaz de nos cativar e perturbar. Strauss, o empresário, investidor e filantropo, que se viu obrigado a deixar a faculdade para vender sapatos, e se tornou um dos mais importantes conselheiros de energia atómica da América durante a Guerra Fria, interpretado por um Robert Downey Jr. em grande forma, que acreditava que Oppenheimer fosse um espião, fervoroso defensor de uma corrida ao armamento, é o mau da fita. A política, é o grande vilão. Oppenheimer, dono de uma mente brilhante, mas também frágil, é um homem da ciência, não um super-homem. Por isso contraditório, ambíguo, sujeito a fraquezas, desejos, paixões, traços comuns a todos os mortais e cientistas. Culto, inteligente, ambicioso. Cillian Murphy tornou-o, possivelmente, mais fascinante do que na realidade foi através de uma interpretação magistral.
Numa tentativa de reabilitação pública, o presidente Lyndon B. Johnson presenteou Oppenheimer com o Prémio Enrico Fermi, a mais alta honraria da AEC, em 1963. No entanto, o físico nunca recuperou totalmente do golpe sofrido. Além disso, talvez o seu tormento moral não tenha tido fim. Ao contrário de Prometeu, poderá ter morrido amaldiçoando a hora em que aceitou a missão que o haveria de tornar célebre e manchado as suas mãos de sangue.
Talvez Oppenheimer apenas estivesse tão enamorado da ciência quanto qualquer cientista deve estar, predestinado a ver além da maioria, a compreender, controlar a Natureza e a partilhar esse conhecimento com o mundo. O físico Isidor Rabi diz-lhe, a dado momento: "Lançamos uma bomba e ela cai sobre justos e injustos. Não desejo que o culminar de três séculos de física seja uma arma de destruição maciça." Todo o cientista é um homem e ele não escapou à sua consciência que lhe ditava que a ciência devia servir os homens, tendo sido, por muitos, considerado talvez demasiado humano para a tarefa herculana que lhe coube.
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