Cinema : The Killer, de David Fincher
" Siga seu plano. Antecipe, não improvise. Não acredite em ninguém. Empatia é proibida. Nunca dê vantagem. Trave apenas a batalha pela qual foi pago."
The killer, tem uma fotografia linda de morrer, uma enorme atenção ao detalhe, e é obsessivo na realização tanto quanto a personagem principal na execução dos seus assassinatos. O filme está povoado de curiosidades como a omnipresença das marcas comerciais mais populares, sinal de que o assassino faz parte de um mundo onde tudo tem um preço, referências à TV, como o uso de nomes de personagens de series de TV nas identidades que assume, ou ainda, ao cinema clássico, como o evidente Hitchcock, ou ao mundo do crime, como, por exemplo, WWJWBD, ou seja, O Que Faria John Wilkes Booth?, sendo preciso saber que Booth foi um actor de teatro norte-americano, menos conhecido nessa capacidade do que na de assassino do presidente Abraham Lincoln.
The killer é uma história mínima, um filme quase de um homem só, apanhado no pior dia da sua vida, minimalista, poderia talvez dizer-se. Após um contrato falhado, o caçador torna-se o caçado. O assassino descobre que atacaram e quase mataram a sua amada na tentativa de obter dela informações para chegar até si. Restam-lhe duas escolhas: tornar-se um fugitivo,viver a olhar por cima do ombro, deixar a casa luxuosa no meio da selva e uma mulher que lhe importa e para quem foi bom, ou descobrir quem esteve implicado no contrato e matar metodicamente cada um para garantir a segurança dos dois e a continuação do seu estilo de vida. Mínimos são também os diálogos do protagonista embora abundem monólogos internos, o que pode ser aborrecido para muitos; para outros, o andamento, calmo mas obstinado do filme, também não passará na bitola. Eu, ainda não refeita da minha última experiência Netflix, curti quase tudo.
Tal como o assassino tem de lutar contra o fastio de esperar pelo momento certo para executar o alvo, - sendo a espera o maior problema do seu trabalho - também o espectador mais impaciente tem de aguentar até certos momentos em que se sentirá recompensado por algumas dinâmicas revigorantes. O filme é dividido em capítulos que se passam em cidades distintas e em cada um deles há um destes momentos, colorido pela circunstância e algum improviso.
Ou o espectador entra no jogo e encontra no filme um certo absurdo e tom divertido, tão bem servido pela cara admiravelmente inescrutável de Fassbender, sua postura mecânica e jeito expedito, ou acaba supliciado pelo detalhado manual de como matar sem deixar rasto embora, sem dúvida, prisioneiro feliz do esperado virtuosismo de Fincher. E quando perversamente se regozijava já por ver que nem os mais ricos dos ricos estão a salvo de serem executados, que não há tecnologia à prova de um bom e motivado assassino, no último capítulo, quando esperava assistir a mais uma morte artisticamente elaborada, o assassino recua. Com perplexidade, vê que rasga os papelitos, sinal de capítulo encerrado sem retorno. O cliente do assassino, esse homem de dinheiro, que vende honestidade em cada palavra e gesto, afirma que ninguém é perfeito e que eles os dois não têm um problema, mesmo se pagou para que o rasto até si fosse apagado, uma decisão apenas formal e de cujo conteúdo material se demarca. Foi inesperado ver o assassino voltar-lhe as costas, embora deixando ameaças. Mas, porquê? Porque foi este ricaço poupado? Talvez por pensarem ambos em termos de números, eliminando julgamentos subjectivos ou pessoais? Talvez porque o assassino que disse não servir a nenhum deus, nenhum país, nenhuma bandeira, serve afinal a um deus chamado dinheiro. Matar o homem rico seria matar a mão que o alimenta.
E ainda outra questão. Porque teria o professor sugerido que ele deixasse de estudar Direito e passasse a contornar a lei? Alguém tem achegas? Da personagem nunca soubemos o nome, nunca conseguimos ver além da sua superfície embora tenhamos conseguido entrar claramente na sua mente. Possui um mantra que repete para que aprendamos com ele. Não dispensa os alongamentos para manter a máquina de matar oleada, segue uma dieta de poucos carboidratos e proteína qb , confia na tecnologia para se manter vigilante e diminuir o risco de falhar, medindo as suas batidas por minuto num relógio de pulso. A sua leitura do mundo e da vida são feitas numericamente, através de estatísticas mundiais, quantos nascem, quantos morrem. Os números mostram que o que faz é, afinal, um acto insignificante na ordem das coisas. Faz parte de uma minoria, é um assassino contratado, confiável, letal, preciso. O filme detalha, ao minuto, os seus passos. Muito disso é expectável: assumir diversas identidades ou disfarces, exibir a sua coleção privada de passaportes, adquirir armas e despojar-se delas, além de telemóveis, eliminar todas as pistas, nomeadamente, corpos. Mover-se de país em país, conduzir e ser conduzido de cidade em cidade, para cumprir o seu propósito.
Esta não chega a ser uma história de redenção, não, mesmo se o assassino de elite, frio, que vimos falhar em Paris parece, no final, ter abraçado o lado da maioria dos homens. À superfície, deitado em frente ao mar, na companhia da mulher, sua face gelada está, por agora, tão relaxada que permite um trejeito. Mas ali, no seu refúgio, a máquina de matar está apenas em modo pausa, restabelecido que foi o equilíbrio. Intimamente, é possível que continue a detestar a humanidade, o mundo dos outros, esse lugar sem esperança, que ele despreza. Quem será o próximo na sua mira? É possível que a Netflix já tenha convencido Fincher a fazer uma série.
The killer, o mais recente de David Fincher, baseado numa banda desenhada francesa escrita por Alexis Nolent, aka Matze, ilustrada por Luc Jacamon, é um filme que corre pelos nossos olhos como veludo enquanto se desenrola com a precisão de um relógio suíço. O nosso ouvido mantém-se sempre bem entretido, - é de ouvir este filme com toda a atenção do princípio ao fim - e não apenas devido à excelente banda sonora original e às muitas canções dos Smith, banda favorita do nosso homem, usadas para se concentrar. É também um filme que testa a capacidade do espectador comum para digerir violência, uma bem encenada, nomeadamente numa assombrosa luta corpo-a-corpo, entre o protagonista e um brutamontes, mas ainda violência, ou na de um homem vazio cuja profissão é matar. Quase sempre gosto dos filmes de David Fincher. Aceito que me digam que talvez The killer não seja um filme para gostar e antes um para admirar. Felizmente também podemos escolher apenas fazer isso.
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