Erros de português e vilões na sala de aula


Um destes dias abri o Google e saltaram logo duas notícias, encadeadas, uma sobre um professor que se queixava dos erros ortográficos dos alunos, outra do público de uma série de TV a queixar-se do erro de uma professora/personagem! O professor em questão, que foi corretor de exames nacionais do 12º ano durante décadas, dizia que os estudantes estão a dar muito mais erros de Português, que usam nas provas as abreviaturas das palavras,  - possivelmente as que usam nos telemóveis? - esquecem a acentuação, usam o discurso dos Youtubers que seguem, muitos do Brasil, sem consciência de que não é assim que se fala. Isto talvez porque os filhos não veem os pais a ler, estes não os incentivam a ler livros, e há um desinvestimento na Educação. Depois de um interregno, este professor voltou a corrigir exames e ficou surpreendido: o exame do 12º ano deste ano era muito fácil comparado com os de há uma década, ou seja, afirmava, está instalado o facilitismo. Os jovens também estão cada vez mas fragilizados, têm pouca resiliência, e muito infantilizados. Para ele o Covid não explica tudo, e eu concordo, foi um bom bode expiatório. Dizia ainda que crianças e jovens trocaram a leitura por jogos, por tudo o que é instantâneo. Têm um léxico muito básico e elementar, dificuldade em estruturar ideias e verbalizá-las. Menos leitura tem consequências: não entendem as fichas e testes, não releem as perguntas ou os textos, têm dificuldade em retirar ideias de textos escritos. O problema não está nos telemóveis ou nos tablets, ou na tecnologia em geral mas no mau uso que se faz da tecnologia. Os alunos em vez de escreverem o que está no quadro tiram fotos com o telemóvel, em vez de pesquisarem em livros e dicionários, ditam para o telemóvel e ele responde. Não veem as palavras, não vendo não há memória visual da palavra. Este professor menciona ainda que a reutilização dos manuais tem inúmeras vantagens, mas que os jovens alunos precisam de ler, sublinhar, circundar determinadas palavras, não o podendo fazer nestes manuais que se destinam a uso posterior.

Um outro professor que tem alunos do 1º ciclo também se queixa deles não praticarem a escrita ao usarem telemóveis. Os correctores ortográficos interferem no treino da escrita. Os alunos, sem eles, dão erros. Se não erram, não corrigem, não aprendem. O professor mencionava diversos erros comuns ligados à fonologia como o adorote em vez de adoro-te. A falta de comunicação na família, a falta de interação entre os diferentes elementos da família, tem, na sua opinião, implicações por exemplo ao nível da articulação das palavras.

Quanto à outra notícia, nela se lia que a série juvenil Morangos com Açúcar está de regresso à TVI, vinte anos depois da sua estreia, com novas caras. Nunca vi um episódio, não sei se é boa ou má, mas foi o programa mais visto do dia. Composta maioritariamente por jovens actores, conta também com actores e actrizes bem experientes, como Fernanda Serrano, que interpreta Dalila Pontes, a professora de português do Colégio da Barra. Só que a professora deu um erro e agora, em pleno reinado das redes sociais, nada passa despercebido. No início da aula a senhora professora diz "vão haver novidades", e não "vai haver novidades", como esperado. 

É lamentável que numa série de TV, um produto de entretenimento, que é também um veículo de comunicação, um trabalho de equipa,  não tenha havido uma única pessoa que se tenha apercebido do erro durante as gravações se não durante a escrita e revisão do guião, ou durante os ensaios. É este o estado de coisas, aliás visível por todo o lado, em jornais, revistas,  nos rodapés de notícias na TV, nos textos das redes sociais, dos mais básicos menus de restaurantes a peças jurídicas. É só um erro, dirão talvez. Sim, um erro que é sintoma de um estado geral de coisas, um estado geral de incompetência. Não sei se leram este desabafo, escrito há semanas. Escrever mal e falar mal é hoje desculpável, uma coisa menor. Serve para fazer brincadeiras nas redes sociais. Só isso. Antigamente uma pessoa que soubesse escrever e falar bem era invejada, elogiada. Hoje são competências que pouco ou nada valem, assim como é relativizado o percurso necessário para as obter. 

Aprender uma língua não é fácil. Onde é que está escrito que é fácil? Escrever bem e falar bem obedece a regras, são competências que exigem muita memorização e treino durante uma parte importante da nossa vida, sobretudo na infância e na adolescência, e depois consoante o nosso desejo de aprimoramento. As jovens estão motivadas para ir ao ginásio e passarem horas nas máquinas a treinar para ter um rabo perfeito  - ou, no caso deles, o six-pack  ! - mas não estão preparadas para sentar esse rabo numa cadeira e malharem nos livros por tempo semelhante. Isso é uma tortura. Será assim porque a sociedade actual valoriza mais os cús do que um discurso bem articulado ou um email limpo de erros? É urgente estudar a fundo o problema - ou problemas - que este professor descreve. É urgente exigir medidas concretas para inverter este caminho, ou o futuro será muito mais estúpido do que o nosso presente já é. E também não acredito que os telemóveis e os computadores sejam os culpados.

Há uns anos circulava esta  ideia de que exposições orais e leitura de manuais eram uma coisa maçadora e ultrapassada, que a tecnologia estava aí e operava milagres. A internet e o multimédia foram vendidos como a revolução da aprendizagem, os computadores invadiram as escolas. Se é assim, onde estão os resultados? Se é assim, o que justifica mais erros de português? Criticava-se, e critica-se, desde há muito, que crianças e adolescentes fiquem sentados numa sala de aulas, diz-se "de forma passiva", ou seja, como se eles fossem meros recipientes, enquanto o professor fala,  ou seja, enquanto despeja conhecimento nesses vasos humanos em formação. Hoje diz-se que se continua a aprender como em séculos passados quando temos Teslas que estacionam sozinhos, bots que inventam histórias, tablets cheios de recursos digitais, quadros interativos, etc. Leio muitas tiradas destas. Pois eu imagino que poderemos um dia viver na Lua ou em Marte, rodeados de tecnologia fabulosa, e, ainda assim, o domínio de competências básicas da leitura e da escrita por mais invenções e  recursos, vai sempre depender de dedicação à escrita e à leitura,  de memorização de regras gramaticais, enfim, de muito exercício, mas um que se tem de fazer sentado, coisa que para muitos alunos actuais é um desafio, e de um professor dedicado. 

A internet é maravilhosa mas uma coisa é aceder a informação e outra tornar a informação acessível, papel que cabe ao professor. Antes da internet a informação também já estava nos manuais da escola que os nossos pais nos compravam, ou nos livros das bibliotecas da escola. Também estava "acessível". Os nossos escritores de renome estavam rodeados de tecnologia? Não. Mas a escrita aconteceu mesmo assim. Eram o quê? Viajantes no tempo? Mágicos? Sou uma entusiasta da tecnologia, tenho uma das primeiras Pós-Graduações disponibilizadas em Portugal em formato online, fiz MOOCS diversos, uso softwares gráficos há anos. Mas não creio que um vídeo só por si possa servir para ensinar e aprender melhor do que um bom texto acompanhado de uma boa fotografia, os próprios alunos poderão até preferir uma ou outra forma. 

Fazem-se experiências interessantes com salas de aula que se pretendem do futuro, ou, no mínimo, de vanguarda, onde o espaço é reinventado, o aluno não é mais passivo, olhado de cima para baixo. Diz-se que é" motor da sua aprendizagem". Mas, basicamente, o que se faz nelas - estimular a criatividade, a pesquisa, a interação, a comunicação - também pode ser feito noutras, menos futuristas, pode ser feito ao ar livre, pode ser feito numa fábrica, num museu,  até em casa, pelos progenitores, um modelo que em Portugal não tem muita saída. É preciso é que alunos e os professores estejam todos no mesmo barco. E que o barco seja sólido, não ande constantemente  a ser objecto de intervenções no design, reinvenções, remodelações, experimentações, modas. (Hoje agarro uma gramática e não me oriento com tanto palavrão. Aquela por onde estudei parecia ser mais acessível. Estarei a ser bota de eslástico ou apenas ignorante? ) Mas, antes, para que o barco possa navegar e seguir viagem, todos em sintonia, o capitão ao leme, hoje um professor de carne e osso, amanhã, quem sabe, um robot humanoide, existem competências básicas que têm de ser desenvolvidas e bem desenvolvidas: aprender a ler e a escrever. Isto tem de ser hoje feito de forma tradicional embora com a tecnologia bem presente. E tem de ser feito de forma exigente, sem facilitismos. Escrever não é juntar palavras, é ligar as palavras. Sem esse domínio o futuro de todas as outras aprendizagens ficará sempre comprometido, com ou sem tecnologia.

De bestial a besta, os computadores tornaram-se omnipresentes no escritório, em casa, e na sala de aula. Transformaram-se então no vilão desta história do aprender ou não - sobretudo a língua portuguesa - e suas sequelas pois os alunos passaram a copiar textos da internet que depois de colados na folha do Word, impressos e entregues em mão ao professor,lhes garantiam boas notas. Só que antes dos computadores a cópia também já era possível. Os computadores não são os vilões, são talvez  o bode espiatório do muito que vai  mal no ensino e que não sou inteiramente  habilitada para enumerar, mas que os professores já explanaram vezes sem conta por essa net fora sem que ninguém do clube que toma decisões ou propõe experiências pedagógicas preste atenção. Numa primeira fase, estes trabalhos "feitos no computador" até passaram a ser valorizados e sem grandes razões para isso. As folhinhas datilografadas exibiam uma capinha, uma encadernação, e os alunos que não seguiam este modelo, sentiam-se e eram algo desvalorizados. Mas os professores logo entenderam que algum do trabalho perfeito e bem formatado não tinha saído do labor integral do seu autor: exibia construções que o aluno não poderia produzir por si mesmo, empregava palavras rebuscadas, apresentava erros, estava escrito com marcas de outra nacionalidade que não a portuguesa, etc. Evidentemente que, muitas vezes, alguns pais também auxiliavam os filhos e o resultado também saía melhorado, com ou sem intervenção de qualquer tecnologia. De repente, os computadores eram os vilões.

Fui criança e jovem aluna sem usar o computador, da escola primária ao ensino universitário, aliás, a minha dissertação na Ordem dos Advogados foi ainda escrita numa máquina de escrever e assim entregue. Poderia ter tido brio e ter pago a alguém para "passar aquilo a computador", como então se dizia. Não tinha um computador, eram caros, e eu decidi que só quando começasse a trabalhar - e a ganhar o meu dinheiro - é que compraria um. Quando comecei a trabalhar ainda não tinha um computador em casa e apenas sabia utilizar um porque fiz uma formação. Aí me ensinaram os rudimentos do Word, do Excell, do Ms-Dos, etc. Nesses meses iniciais, ainda não conseguia escrever um texto usando o teclado: primeiro fazia um rascunho, depois passava-o. Os meus colegas dedilhavam sem hesitação e eu invejava o desembaraço. Com o tempo, e não foi preciso muito, deixei de conseguir usar o papel para escrever, já só conseguia escrever usando o teclado. Depois surgiram muitas ferramentas para ajudarem no processo de brainstorming, ou a realizar mapas mentais, por exemplo, e a folha em branco passou a ser quase sempre apenas digital, o que se traduziu numa economia de tinta e de papel formidáveis!

Nesse tempo que já vai caminhando para o esquecimento, na minha escola, nas escolas que frequentei, os alunos (também) aprendiam a copiar de livros para o caderno, a copiar do quadro para o caderno o que o professor escrevia no quadro, a escrever para o caderno o que o professor dizia nas aulas, o que mostrava no retroprojector. A maioria de nós dominava melhor a língua portuguesa do que muitos alunos hoje. Esta é uma verdade. Também se faziam consultas na biblioteca e tomavam-se notas, tomavam-se notas de fotocópias, resumiam-se,  resumiam-se obras inteiras, faziam-se trabalhos de grupo, trabalhos práticos, incursões no meio e visitas de estudo, muitas. Todavia, este referido copianço não é equivalente ao copiar e colar da era digital, como já vi muitos defenderem. O actual Ctrl+V, Ctrl+C, elimina uma arte essencial na aprendizagem que é a da escrita pelo próprio punho. Parece ser coisa irrelevante, usar um teclado - ou o ecrã do telemóvel - ou uma caneta e papel, mas esse exercício é benéfico a vários níveis: o impacto começa na forma como a esferográfica e o lápis são agarrados, continua devido ao facto de vermos as letras a serem desenhadas. Este jogo estimula a motricidade e o cérebro e melhoram a aprendizagem e possivelmente são tão mais importantes quanto mais tenros os alunos. Até o próprio som da escrita parece gerar efeitos positivos. Escrever ajuda a consolidar a informação na memória, ajuda na retenção do conhecimento. Creio que todos temos essa experiência, se usámos a escrita de forma consistente, ao escrever recordamos e fixamos tudo melhor. Nem precisamos da ciência para nos provar isso, é senso comum.

Por outro lado, a escrita serve também para exercitar o poder de síntese e permite uma melhor compreensão dos conceitos envolvidos numa matéria pois escrever sobre um assunto é a melhor forma de perceber se o dominamos ou não. O papel - mesmo o digital - não engana. Ao aplicar o que aprendemos a domínios novos, expandimos o nosso horizonte de conhecimento: para isso temos de usar de pesquisa e de reflexão. Tudo isto só acontece quando se escreve com consciência e intencionalidade, e não quando se copia informação e se cola para pura e simplesmente entregar respostas a um professor. Numa primeira fase, é isso que o aluno tem de fazer: ler um texto, compreendê-lo e copiar as respostas a perguntas que demonstram que sabe interpretar, apesar de sempre ter de estruturar cada resposta, usar a língua de forma elástica para tudo ligar e fazer sentido. Mas num segundo nível, mais avançado, se o professor pede um trabalho que implica investigação, se o aluno se limita a copiar e colar respostas que encontra na internet, o percurso de aprendizagem é encurtado e empobrecido, nada se consolidando, no final, ou pouco. Evidentemente que alunos mais novos deviam continuar a escrever à mão os seus trabalhos, mas os alunos mais velhos, a quem são pedidos trabalhos mais extensos e que já dominam a escrita manual, deviam ser livres de usar o computador para escrever. O domínio da tecnologia não pode ser banido das escolas pois cada vez mais ela está inscrita no nosso quotidiano. É apenas o seu mau uso tem de ser combatido e as boas práticas insistentemente divulgadas. 

A cada nova vaga tecnológica novos desafios se colocam na plano do ensino. Depois dos computadores, sucederam-lhes outros vilões: os telemóveis. A discussão mais evidente parece ainda ser se vamos ou não banir os telemóveis das salas de aulas. os telemóveis causam interferências comportamentais que vão muito além do copianço. Há escolas que os baniram, há escolas que não se atrevem. Há governos que os baniram, há governos que não se atrevem. Claro que os telemóveis podem ser utilizados na sala mas tornam-se um problema quando os alunos não respeitam os limites da sua utilização. Se não acatam as orientações dadas sobre a sua utilização, o que resta senão banir os aparelhos? O dilema dos telemóveis nas escolas saiu das salas para os recreios: nos intervalos, em vez de conversarem uns com os outros, de correrem e saltarem, os meninos e meninas dedilham os telemóveis. Todo este quadro tem as suas implicações, não vou esquadrinhá-las aqui. 

Quero ainda referir que já outra batalha ganha crescente importância: como impedir que os alunos usem o  CHAT GPT que pode ser facilmente baixado para um laptop ou smartphone? Desde que o CHAT GPT surgiu, mais um berbicacho caiu no colo dos professores de todos os graus de ensino, ou quase, de todo o mundo. Os alunos estão a pedir ao CHAT, ou ao Bard, do Google, que gere as respostas para trabalhos, copiam, colam e já está. Desde o final de Novembro de 2022 que o ChatGPT não parou de ser acessado por pessoas dos mais variados quadrantes, o que inclui alunos e, claro, professores. Lembro que existem softwares para detectar texto proveniente do ChatGPT, mas à medida que o Chat evoluir talvez até esse software deixe de conseguir destrinçar se o texto é produto de um chat bot ou do aluno que o apresenta como seu. E quem diz aluno diz escritor, jornalista, ensaísta, músico, copywriter, etc. Mas se o aluno usar o texto produzido pelo bot como um rascunho e se depois o trabalhar, se lhe acrescentar as citações devidas e fontes? Se lhe acrescentar bastante trabalho seu? Será isso ainda censurável? E será ainda detectável pelo tal software?

A reação primeira e mais fácil perante esta novidade que apanhou toda a gente desprevenida foi banir o bot. No Reino Unido há centenas de alunos em maus lençóis por terem usado o CHAT para concluir trabalhos académicos: pura e simplesmente os seus trabalhos foram anulados. Mas nos Estados Unidos já li que pelo menos uma Universidade dedicou horas para formar os alunos no uso da ferramenta de forma ética. Na perspectiva da instituição, a inteligência artificial veio para ficar, banir o seu uso é impossível. Os alunos terão sempre de defender o seu trabalho de forma oral e assim provam aquilo que aprenderam. Nem sequer são obrigados a dizer se usaram o Chat mas se o revelarem ganham pontos. Importante, lembro-me que esse professor dizia que não se deviam pedir trabalhos escritos à mão na universidade - concordo! - pois isso seria um sinal de retrocesso. O que era mesmo importante era que os alunos aprendessem as matérias e ao mesmo tempo se servissem das tecnologias avançadas para saírem dali preparados para o mundo eminentemente tecnológico em que vivemos. Os professores têm de ajudar os alunos a usar bem as tecnologias e não incentivarem a sua exclusão do ensino. Ele também era claro quanto ao plágio, ou seja, usar um texto de outra pessoa como sendo seu. O Chat GTP não é um autor, logo não se pode considerar que usar um texto gerado por si seja plágio. Dizia ainda que os alunos podem usar textos gerados pela AI mas devem ser capazes de identificar as fontes que por lá aparecem, os autores dessas ideias, e dar-lhes o devido crédito. Ou seja, usar o Chat GTP ou um livro na escola  acabaria por ser praticamente igual. Em ambos seria sempre necessário citar nomes de autores, fontes, dar referências, nunca passar um texto como seu. Já agora, também devia colocar aqui as referências, como fiz em tantas postagens passadas, e por isso me penitencio. As notícias referidas no início devem ainda ser acessíveis no Google por longo tempo numa simples busca. Quanto ao resto, nomeadamente esta última e interessante referência a uma universidade e o papel do Chat GPT, que parece ir contra-corrente, não faço ideia, foram ideias que retive fruto de leituras dispersas. 

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