O assédio intelectual das pessoas perfeitas
Dar conselhos a um homem culto é supérfluo; aconselhar um ignorante é inútil. (Sêneca, 65-2, DC) Uma pessoa, de boa fé, escreve uma mensagem simpática, suave como uma pétala de rosa, mesmo, em pezinhos de lã, quase, até parece que estava a adivinhar que o sujeito não era flor que se cheirasse, em privado, longe dos olhares e julgamentos públicos, a alguém que conjugou mal um verbo e é destratada. Uma gralha, disse eu. Comum, disse eu, desvalorizando a mácula linguística. Fugi de usar a palavra "erro" pois errar é humano mas ninguém gosta de ser acusado disso. Era cedo ainda, eu, sem café tomado, e sou logo acusada de assim revelar a minha cultura: a de que sou uma pessoa perfeita e de que tenho orgasmos intelectuais a rebaixar os que sabem menos! Bem, ele não escreveu a coisa nestes termos, obviamente, eu é que estou a entusiasmar-me. Antes de se dar início ao relambório de mensagens, o ignorante - acabei por ter de concluir que não valia a pena ser mansa na caracterização do espécime - ainda pergunta se tinha a certeza de que ele errou, não fosse eu uma ignorante a tentar induzi-lo em erro. Reforcei a minha certeza apenas para na mensagem seguinte ser atacada com todas as letras, que não me tinha pedido nada, e mais ainda: como a página onde ele labora no erro não é de correções gramaticais, eu não devo corrigi-lo. Para para meu espanto, terminou escrevendo que já mais pessoas - imagino que também perfeitas e igualmente ávidas de exibir a sua cultura, como eu! - lhe enviaram mensagens semelhantes, mas que não vai corrigir nadinha. Aconselhou-me então a meter-me na minha vida.
Horas depois, aqui estou eu, ainda perturbada por constatar que existam pessoas que se recusem a aprender preferindo exibir a sua ignorância com orgulho. Faça como entender, repliquei eu. Mas, se quiser confirmar, faça uma pesquisa na net, ainda escrevi, pois, como dizem o saber não ocupa lugar. A solução fátua para todos os problemas, a net, o Google. A solução e o entretém de muitos, os sites e páginas com centenas de citações sobre a ignorância, frases resgatadas ao pensamento dos antigos e dos modernos, coloridas, decoradas, de Aristóteles a Saramago, que propalou uma vez que a ignorância estava em crescimento aterrador, partilhadas sem fim, até talvez por este ignorante, mas não lidas, não refletidas, não interiorizadas, uma mera decoração de interstícios no feed, um slide encalhado entre um anúncio e uma discussão ácida sobre o último escândalo mediático, à falta de outra coisa melhor para manter o algoritmo pulsante.
Não entendo este comportamento porque sempre agradeci a quem me enviou mensagens a corrigir erros ortográficos, e outros. Não tenho a pretensão de saber tudo, combater a minha ignorância é para mim um modo natural de existir. Tentei colocar-me no lugar do outro e continuei sem alcançar a vantagem da obstinação. Fiquei perplexa, sim, mas tenho de concordar que meter-me na minha vida é um bom conselho. O tempo não está para desperdícios e muito menos para enxovalhos de desconhecidos que desconhecem o trato minimamente educado. Quando a cafeína iluminou os meus neurónios, a lição extraída deste desencontro social tornou-se clara: doravante reconhecerei o inalienável direito dos indivíduos a serem ignorantes digitais longe do assédio intelectual das pessoas perfeitas.
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