Não há nada de errado no beijo de Rubiales, diz Woody Allen


Não era minha intenção escrever sobre Rubiales, o prato que foi servido a 20 de Agosto já arrefeceu. Mas eis que, em Veneza, no conhecido Festival de Cinema, Woody Allen saiu em defesa do presidente da Real Federação Espanhola de Futebol, dizendo nada haver de errado no beijo. O prato da discussão voltou à mesa, morno, mas voltou. O beijo não aconteceu às escondidas! Um beijo não é uma violação! A mulher era amiga do homem, disse o realizador. Espantoso, no mínimo, este modo de pensar um episódio que em si só parece insignificante mas que se desdobrou em consequências de grande impacto dada a sua enorme visibilidade.

Imaginem vocês que o meu cordial patrão que adora o meu trabalho,  me espeta um beijo durante a reunião do mês, na sala de reuniões, em frente aos colegas, depois de se pronunciar sobre a minha promoção. Então eu devo comer e calar, mostrar-me agradecida pelo bónus, porque temos uma óptima relação laboral? Não sentir-me abusada, invadida num espaço que é meu, o meu corpo, trespassada na gestão da minha vontade, dos meus desejos e direito a escolher com quem partilho esse espaço? E uma mulher só é abusada sexualmente se violada? O Rubiales agarrou ostensivamente a cabeça da jogadora durante a cerimónia de entrega dos troféus da equipa e espetou-lhe um beijo nos lábios. Não é um beijo na boca que se impõe a outrem um contacto sexual indesejado? Não podia apenas ter abraçado e dado um beijo na bochecha de Jenni? No seu caso, ser à vista de todos, apenas piorou o caso já que tratando-se de um evento de enorme exposição pública, mais ainda ele devia dar um exemplo de conduta no mundo do desporto, do qual é um dos seus representantes máximos, e não promover uma abordagem que não se coaduna com o espírito da celebração. Para mim, se eles fossem namorados, um casal, nem assim se justificaria o ósculo, mas seria até bonito, normal e compreensível que tivessem dado largas ao seu entusiasmo festejando assim. No fundo, é apenas mais uma manifestação da dissolução entre coisa privada e pública, uma tendência que já leva anos.

O pós beijo foi fértil em momentos que inflamaram os ânimos, até de quem não viu um único jogo do mundial. O primeiro sinal de chatice foi um vídeo filmado no balneário onde Jenni surge a dizer que não tinha gostado do beijo, mas o que poderia fazer. Mais tarde, noutro vídeo filmado num autocarro, ela ri a  desvalorizar a situação, brincando com as colegas. De imediato foi acusada de ser uma vergonha para as mulheres realmente assediadas por não se mostrar devidamente enojada. Brincar com as outras jogadoras sobre o assunto para não levar a sério aquele momento, para fazer de conta que não era nada, num dia em que festejar era obrigatório, não é sequer hipótese. Muitas mulheres, além de homens,  avançaram esta ideia. Então só posso concluir que ser beijada pelo patrão, pelo chefe, ou pelo presidente da empresa, à vista de toda a gente deve ser o sonho de muita mulher! Assim se justifica, que seja tão fácil culpar Jenni de ser uma fingida, ou de ter cedido à manipulação, como li amiúde. Para elas também não é natural que, passada a euforia do momento, longe do bulício, depois de pensar e de processar o sucedido, Jenni se tenha sentido abusada. Não, o que elas entendem ser normal e expectável era que ela normalizasse o beijo!

Como comecei a escrever isto por causa do comentário de Allen, personalidade do mundo do cinema, quero relembrar aquele momento em que o actor Adrien Brody agarrou Halle Berry com os braços, como um polvo, e lhe deu um beijo depois de ter ganho o Óscar de Melhor Actor em 2003. Quem se recorda disso? Da surpresa e embaraço disfarçado dela? Ora aí temos mais uma situação de celebração em que a euforia está em alta e em que alguém decide festejar com um beijo na boca alheia mais disponível, feminina, claro, mesmo que esta não tenha manifestado qualquer interesse nisso. Até hoje Berry diz que não sabe se gostou do beijo ou não, diz que foi apanhada pelo momento e que na sua cabeça só ia um "what the f–k is going on right now"? Como evitar? O que fazer?, são questões que também Jenny poderá ter pensado, ou não. O que poderá pensar uma cabeça a estourar de emoção pela singular vitória alcançada enquanto é agarrada por um par de mãos familiares e oportunistas? Portanto, este beijo entre as duas estrelas de cinema não foi um beijo consentido, foi um beijo roubado, tal como o beijo entre Jenny e Rubiales. Em 2003, pessoas houve que acharam o beijo o máximo e que venderam aquele instante como o melhor dos Oscars. O discurso de Brody sobre o assunto podia ter sido o de Rubiales: ah, eu estava de boa-fé, ah, foi uma coisa espontânea, ah, temos uma boa relação. Aliás, para o "Pianista" foi tudo memorável, " o tempo até parece que parou".  Se forem ver essas imagens constatarão que Halle Barry também não reagiu na hora. Ficou-se. fez o jogo. É assim que acontece muitas vezes, o ficar sem reacção é comum,  mas li muitas a cobrarem de Jenny a sua falta de reação no momento chave, sinal evidente de que devia estar a gostar. Não houve uma resposta de repúdio visível, ai é só ver a linguagem corporal deles, dela, blá,blá, blá. E a seguir até brincou com isso dentro de um autocarro. Uma falsa, portanto. Mais: se não ficou em choque, traumatizada, se não desatou num pranto, é porque tinha consentido. Falta de lágrimas e pulsos cortados equivale, portanto, a consentimento. Eis o que Jenni escreveu no comunicado publicado na rede social X (antigo Twitter).: "A situação deixou-me em choque pelo contexto de celebração e com o passar do tempo, e depois de aprofundar um pouco mais essas primeiras sensações, sinto a necessidade de denunciar este ato, já que considero que ninguém, em nenhum âmbito laboral, desportivo ou social, deve ser vítima deste tipo de comportamentos não consentidos. Senti-me vulnerável e vítima de uma agressão, um ato compulsivo, machista, fora do lugar e sem nenhum tipo de consentimento da minha parte".

De regresso a Veneza e a Allen, na opinião deste "o pior é perder o emprego por causa de um beijo", isso é incompreensível. Diz ainda, não muito convencido de que o beijo  tenha sido uma coisa nefasta, "se foi inapropriado ou agressivo, há que dizer-lhe para não voltar a fazê-lo e para pedir desculpa." Para Allen, "como Rubiales não assassinou ninguém, não é justo que perca tudo." Rubiales foi claro, não acha que o que fez tenha sido assim tão grave que justifique a demissão, e não depois de ter feito a melhor gestão da história do futebol espanhol, palavras dele. É-lhe indiferente que esta equipa não seja tão recordada pelo feito desportivo neste Mundial quanto pelo incidente que ele protagonizou. É-lhe indiferente o que Jenni possa pensar ou sentir sobre isso. Não percebe que estragou a festa da equipa, da equipa adversária, de boa parte dos adeptos, do desporto espanhol. Não entende que não é um zé qualquer que agarrou uma maria ao calhas na noite de S. João e lhe espetou um beijo que a noite engoliu para sempre. O Presidente da Federação Espanhola de Futebol e Vice Presidente da UEFA tinha o dever de exibir um comportamento exemplar, a vários níveis, profissional, desportivo, pessoal, mas isso não parece estar na sua agenda.  Logo, um pedido esfarrapado de desculpas em vídeo bastaria para colocar tudo no seu devido lugar. Afinal, o beijo tinha sido consentido, uma coisa normalíssima entre eles os dois que só idiotas se lembrariam de contestar! O nosso realizador, pelo contrário,  concorda que o beijo não foi consentido mas, por outro lado, foi público, não no escritório, à porta fechada. E então rematou: "Ela tem todo o direito de dizer que não queria e ele deveria pedir desculpa e garantir que não o volta a fazer”. Tão simples, não era? Só que se Rubiales inicialmente respondeu às críticas dizendo que aqueles que condenaram suas ações eram idiotas, e se posteriormente pediu desculpas de forma tímida, balbuciando que cometeu erros e que havia uma aprendizagem a fazer, sempre repetiu sua crença de que o beijo foi consensual, inventou uma série de argumentos para justificarem a sua posição, e anunciou ao mundo que ia defender a sua verdade até ao fim. Adeus simplicidade. 

Não devo ser a única a pensar que uma outra reacção de Rubiales no pós-beijo teria morto este assunto há muito tempo. Mas ele é um zero em relações públicas e, possivelmente, senhor de um ego tão agigantado que nem deve admitir orientações. Não pensem que rejubilo na iminência de ver um homem perder a carreira por causa de um beijo, mas também não vejo que  Rubiales vá ser crucificado apenas por causa de pressões feministas, ou  só para se tornar um símbolo e um exemplo, sem que haja lastro. Ele foi incapaz de uma saída airosa e foi no tempo seguinte ao incidente que o seu perfil se consolidou como o idiota que ele julgou que os outros eram. Surgiu como um líder agarrado ao poder, pouco humilde e arrogante. Agora está a pagar o preço. Afloraram depois muitas histórias sobre os podres pessoais do presidente, acusações de que é um machista nato, - a comunicação adora estes pratinhos picantes, -  e do desporto espanhol,  coisa epidémica quase mundial. Não sei, não estou a par, mas vi o que vi. O seu afastamento não tornará tudo cor-de-rosa, mas neste momento é impossível não fazerem outra coisa dado o estardalhaço armado no seio da Federação por este artista.

Entretanto, em Veneza, cerca de 15 manifestantes, a maioria mulheres com fita adesiva no peito, ficaram do lado de fora do Palazzo del Cinema e gritaram em apoio às vítimas de estupro e agressão sexual. Os manifestantes pertenciam a vários coletivos italianos, distribuíram um panfleto intitulado Desliguem os holofotes sobre os violadores", que incluía uma declaração de várias centenas de palavras condenando a inclusão de Allen, Luc Besson e Roman Polanski no Festival de Cinema de Veneza deste ano. A declaração dizia: Se a violência nunca for considerada suficientemente grave ou suficientemente credível, e se aqueles que a perpetram continuarem a nunca ser responsabilizados, as coisas nunca poderão mudar. A muitos este tipo de manifestações podem parecer inadequadas, indignas por estragarem a festa do cinema, deviam, por isso, ser relegadas para outra ocasião, lugar, ou pura e simplesmente evitadas. Mas, o que está em causa? Sabem?

Quando a filha adoptiva de Allen, Dylan Farrow, alegou que ele a molestou sexualmente estávamos em 1992. Eu, que apreciava muito o cinema de Allen, fiquei estupefacta e descrente. Tinha mais fé na justiça do que hoje e a justiça ilibou-o. Na altura também julgava que o abuso sexual era uma coisa rara. A miúda tinha então sete anos, as crianças podem ceder a pressões. Ver um inocente conednado é sempre pior que ver um criminoso ser ilibado. Mas...seria Allen um monstro? Dizia-se que era tudo uma manipulação de Mia Farrow, traumatizada e vingativa perante um divórcio litigioso. Em adulta, a depois  mulher manteve a acusação de abuso, que Allen sempre negou, sendo inocentado judicialmente. Mas Hollywood nunca mais o tratou da mesma forma, sobretudo após o movimento #MeToo no Outono de 2017. Woody Allen estará em Portugal para 2 concertos únicos em Lisboa e no Porto no mês de Setembro. O cineasta e músico americano vai actuar com a New Orleans Jazz Band, com quem trabalha há mais de 40 anos. Será que vamos ver protestos? Já o também talentoso Polanski admitiu a violação de uma menina de 13 anos nos EUA, em 1977. Foi indiciado por cinco crimes, incluindo o uso de drogas. Afirmou que todo o sexo tinha sido consensual, mas a miúda apena tinha consentido numa sessão de fotos para a Vogue que se transformou numa sessão de sexo forçado regada a champanhe na casa de Jack Nicholson. Sobre a sua condenação, ele disse, gerando polémica, que não tinha morto ninguém, - buscar os assassinatos para desculpar a gravidade dos crimes sexuais, assim os desvalorizando, é recorrente - mas que isto era mais atraente para a imprensa. Não pode retornar aos EUA ou será preso. A cada prémio que ganha é um clamor em França e o seu último filme, mostrado em Veneza, está com problemas de aceitação pelas plataformas de streaming. O francês Besson foi inocentado de uma acusação de violação: nove mulheres acusaram o realizador de assédio e agressão sexual, apenas Van Roy, apresentou acusações formais. Em Junho, depois de sistematicamente inocentado por todos os magistrados que examinaram o caso desde 2018, o caso foi dado como encerrado. A actriz diz que vai prosseguir a sua luta pela verdade. 

Não vi nenhum jogo e muito menos a final em Sydney. Só quando a discussão se incendiou é que dei pelo incidente do beijo. Um beijo? Nem sequer pensei na questão do consentimento, pois, para mim, um tal comportamento seria, à partida, sempre inaceitável num tal momento. Para meu espanto, havia mais do que apenas o ter agarrado uma jogadora e forçar-lhe um beijo na boca. Ele carregou outra pelo relvado fora, ao ombro, as mãos nas suas coxas, à Tarzan, e fez gestos inadequados quando estava na tribuna, agarrando os genitais efusivamente. Rubiales deu ao mundo uma triste imagem de si mesmo, de si e do desporto espanhol. Manchou um momento de celebração único, ofuscou a glória das desportistas envolvidas, tornou sobre si os holofotes dos olhares mundiais e por mau motivo. E depois continuou essa linha, vitimizando-se, acabando por ridicularizar o seu estatuto e as responsabilidades que lhe competiam, manchar a imagem da Federação, e emparceirado pela mãezinha que iniciou uma greve de fome e se encerrou numa igreja, até que o padre receando o pior chamou uma ambulância e a mandou dali para o hospital. E então falam-me de impulsos, de comportamento desculpável porque Rubiales estava feliz, eufórico, que nem pensou no que estava a fazer! Então jogadores e jogadoras, sujeitos a pressões imensas, controlam as suas emoções em campo, executam jogadas incríveis e este idiota, o presidente da Real Federação Espanhola de Futebol, não consegue controlar-se civicamente durante os breves minutos de uma entrega de prémios? O caminho de sucesso que trilhou acaba aqui e enquanto Jenni, de férias em Ibiza, subia fotos de uma tatuagem (temporária)  onde se lê: "Não há verão sem beijo",* e não há nada de errado nisso.


(Hermoso e colegas de equipa subiram fotos das tatuagens  temporárias, #NoHayVeranoSinBesoque estão relacionadas com um resort chamado Beso Beach, em Formentera, sendo as tatoos algo provavelmente oferecido aos hóspedes na chegada. Entretanto, Rubiales apresentou a demissão mas continua a dizer que nada fez de errado, que tem o apoio de amigos e família, que anteriormente até beijou homens desportistas mais longamente e que é uma boa pessoa.)

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