O Titanic, o Titan e a tragédia multiplicada

O submersível Titan

 O barco que se afundou nas águas gregas

Como é que havendo tanta coisa maravilhosa no fundo do mar, tanto ainda para mapear e descobrir até, alguns seres humanos pagam uma fortuna para ver uma carcaça afundada na escuridão, a 3.800 m de profundidade, cuja história já foi escrita e filmada mais vezes do que havia necessidade, e que é uma infeliz memória de perda de vidas humanas, e de preconceito, é o que me intriga. A resposta é simples: somos todos diferentes e para alguns o naufrágio mais famoso do mundo é uma paixão. Um dos passageiros do submersível Titan é um dos maiores especialistas nos destroços do Titanic, Paul-Henri Nargeolet, de 77 anos. Ele já "visitou" várias vezes o Titanic e até supervisionou a recuperação de mais de 5.000 objectos do local.

Mais pessoas foram ao espaço do que desceram a tais profundezas, dizem na reportagem. O Titan já fez descidas com êxito mas alguns dos passageiros revelaram episódios menos que tranquilos, queixas diversas, como a perda frequente de comunicações com a superfície, enfim, sinais de que a expedição é uma aventura de risco. Ao que parece a empresa OceanGate, que promove passeios comerciais às profundezas marinhas, não cumpriu com as certificações devidas e contornou várias questões legais, mas o seu marketing não deixa de ser sedutor e à prova de dúvidas para quem embarca, sejam exploradores com provas dadas ou viciados em experiências únicas. O submersível de fibra de carbono e titânio que vemos nesta "visita guiada" parece uma invenção mal acabada, mais depressa eu viajaria no Nautilus, movido a electricidade, sob ordens do capitão Nemo. Mas eu sou uma mulher medrosa que nunca assinaria um termo de responsabilidade onde referem pelo menos três possibilidades de morte para ir ver destroços do Titanic.

É certo que além do fascínio, algum mistério permanece em torno do afundamento do Titanic, o interesse e a pesquisa sobre o sucedido ainda são relevantes. Há uns anos falou-se de um fogo que teria tido um papel fundamental no afundamento do "navio que nem Deus conseguiria afundar, se quisesse." Essa tese coloca a tónica na ganância humana, já que o facto teria sido abafado para não inviabilizar a viagem, e já não tão exclusivamente no famoso icebergue. Talvez um futuro inquérito ao desaparecimento do Titan venha a revelar a ganância como parte de responsabilidade neste desastre.

A tragédia do Titanic reflete as desigualdades sociais insuperáveis que até hoje não conseguimos erradicar. A classe social, e também género e idade, desempenharam um papel importante na probabilidade de sobrevivência dos passageiros no Titanic. Os passageiros da primeira classe tiveram a maior taxa de sobrevivência, seguidos pelos da segunda classe, e terceira classe, devido a diferente acesso a informações e botes salva-vidas. Até na recuperação de corpos se manteve a influência do seu estatuto sócio-económico: enquanto os ricos tiveram direito a caixões, depositados no convés, os pobres foram enfiados em sacos de lona e acumulados em gelo no porão do navio de buscas.

Mesmo que o Titan tenha emergido algures, e os seus ocupantes ainda não tenham morrido enregelados, o "dente de cachalote" só pode ser aberto pelo exterior. A corrida contra o tempo para recuperar o Titan enquanto o oxigénio se esgota é mais uma história de horror inimaginável que se vem juntar à do afundamento do Titanic e às das embarcações precárias de borracha e madeira repletas de migrantes que naufragam a poucos metros da costa. Todas estas mortes são cruéis, as causadas pelo afundamento do Titanic, as do Titan, - sim, não acredito que sobrevivam - e também as dos migrantes que perdem a vida no mar do Mediterrâneo.

Ainda nem há um par de semanas uma traineira de aço enferrujado sobrelotada de migrantes afundou nas águas gregas com talvez 400 a 800 pessoas a bordo. Foram resgatadas cerca de100 pessoas. A reportagem que então li era profundamente desconcertante. A tragédia, uma das mais mortíferas em anos recentes naquele mar, motivou até manifestações nas ruas de Atenas. Evidentemente, nenhuma destas pessoas merece morrer, mesmo se não estão no mesmo barco.  Os viajantes do Titan, não foram motivados por questões de sobrevivência, mas também nunca imaginaram estar a comprar um bilhete para um caixão, ainda que provavelmente cientes do risco envolvido em tal aventura. Apesar do denominador comum, a morte nas águas do mar, a história contínua de violência de afogamentos no Mediterrâneo e resgates com devoluções à origem, tem pouco de comparável com o episódio do Titan, tanto como querer equiparar estancar um rio com o fecho de uma torneira. Não podemos comparar o incomparável. Mais e mais pessoas continuarão a fugir dos seus países devido a conflitos, ou violações dos direitos humanos, e mesmo alterações climáticas, e a arriscar a vida, tornando imperioso que se encontre a nível europeu uma forma consertada e justa de lidar com esta deslocação maciça tal como sucedeu com os deslocados da Ucrânia.

Tem sido notada a diferente quota de atenção mediática e consequente mobilização da opinião pública, e até de ajudas na buscas, que recebem uns e outros. Quanto à história das mortes no Mediterrâneo, infelizmente, não há um fim à vista, nem sequer anunciado, nenhuma contagem decrescente. E como já não são coisa excepcional, como se tornaram recorrentes e aparentemente irresolúveis, a sua inevitabilidade retirou-lhes qualquer espectacularidade capaz de motivar a nossa atenção dedicada. E esta acomodação a tais mortes por mais que sociológica ou psicologicamente explicável, também é uma tragédia.






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