A inteligência artificial (AI) vai acabar com muitas profissões: verdade ou mentira?


"Sério, as pessoas precisam entender o que está acontecer. A IA existe há alguns anos e o que alcançou na sua infância é SURPREENDENTE. Já entrou em todas as principais indústrias. O génio está fora da garrafa. Tudo vai mudar. É maior que a revolução industrial. Teremos que nos adaptar, se você for realista, saberá que isso é muuuuito maior do que arte."

(Comentário que retirado de um feed no Facebook,)

Não, não serão apenas os artistas gráficos que vão sofrer o impacto desta tecnologia. O ChatGPT é um modelo de linguagem, cria texto com texto que lhe fornecemos: é um modelo texto para texto. Este modelo que tem fascinado toda a gente,  entende bem a linguagem, está visto, mas não entende de verdade, pode escrever falsidades, inventar, distorcer factos. O outro modelo, que pode afectar o mundo, mas o de quem lida com imagem, é o dos geradores como o Midjourney. Eles "entendem" a linguagem que introduzimos no sistema e ligam-na às imagens onde "aprenderam" e assim "criam" uma nova imagem. São modelos de texto para imagem. Portanto, a preocupação é vasta, é fácil de ver até para quem não domina este assunto: qualquer pessoa que use a linguagem como método ou ferramenta no contexto de trabalho será afectada pela chegada do AI. Isso inclui professores, advogados, publicitários, marketeiros, jornalistas, criadores de conteúdo, criadores de código, etc. Também todos os que lidam com imagens e até sons: ilustradores, designers, fotógrafos, realizadores de cinema, de vídeo, músicos, etc. Estas profissões vão desaparecer? Na minha perspectiva, não, mas estes profissionais vão, num futuro não muito longínquo, ser forçados pela natural evolução a aprender a fazer as coisas de forma muito diferente do que faziam até aqui. O erro será ignorar a tecnologia. Quem a ignorar vai ser ultrapassado. Passado o estado de alarme, justificado, a novidade poderá vir até a revelar-se benéfica. Pensem neste exemplo simples: quantos fotógrafos, hoje, se manterão totalmente fiéis ao processo analógico de fotografar? Quem nasce e cresce dentro da tecnologia digital já não volta atrás, a não ser, talvez, por razões muito particulares, de nicho, artísticas, de pesquisa, etc.

Talvez não se recordem, - nessa altura a internet ainda não tinha esta omnipresença na nossa vida, a informação e o clamor não circulavam de forma fácil e rápida como hoje - do impacto que teve a entrada do digital na indústria gráfica, ontem como hoje, sempre preocupada em satisfazer necessidades dos clientes ao menor preço, com elevados níveis de qualidade, mediante prazos de entrega sempre mais curtos, sempre impulsionada pelo jogo da concorrência, que implicava constante atenção à inovação e adaptação, sob pena de extinção. O digital - e os meios electrónicos - foram perspectivados não apenas como ameaça mas também como oportunidade de diferenciação no mercado. Houve alarme? Sim, e  muito. Assistiu-se ao encerramento de muitas empresas de pré-impressão do sector industrial de artes gráficas e à extinção e reconversão de muitos postos de trabalho. Hoje isso é o passado, que muitos daqueles que usam o digital e o electrónico, no seu quotidiano laboral, e que se sentem ultrajados pela "invasão do AI" nem sequer recordam. Mas esta é a lição que o passado nos mostra: a evolução é imparável e tem um custo. A evidência mostra que o avanço tecnológico nem sempre, ou talvez mesmo quase nunca, é um processo sem dores.

Nos anos 70 começou a falar-se de indústria gráfica porque aquilo que era designado por "artes gráficas" se tornou um processo industrializado. Surgiu, por exemplo, o offset, utilizado para impressões de grande e média quantidade: o offset oferecia uma boa qualidade e grande rapidez. A expressão “offset” vêm de “offset litography” (literalmente, litografia fora-do-lugar), fazendo menção à impressão indirecta (na litografia, a impressão era directa, com o papel tendo contacto direto com a matriz). As cores são impressas separadamente mas de forma rápida, usando cilindros. Não vou explicar melhor, também não sei explicar com detalhe, mas ainda entrei em várias tipografias quando o digital era uma miragem: espaços amplos, grandes máquinas, dispendiosas, muitas pessoas executando trabalhos muito específicos, era assim. Sempre gostei daquele ambiente, do cheiro a tinta, até do ruido.

Nos anos 90, os criativos das agências de publicidade entregavam os trabalhos nas gráficas. Estas, antes de imprimir os trabalhos tinham de contratar com empresas de pré-impressão para digitalizarem e fazerem os fotolitos e só depois podiam imprimir.  A maioria daquelas também fazia os acabamentos. A evolução tecnológica ditou a chegada de novos processos de trabalho, novos equipamentos, entre eles os computadores, que, primeiro, invadiram os escritórios, só depois a indústria gráfica. A utilização de alguns softwares tornou-se a opção imbatível, fosse para a criação de ficheiros de jornais, livros e revistas, fosse para criação e tratamento de imagens. Eram poderosos, práticos, ninguém depois de os experimentar queria voltar ao "antigamente". A "edição electrónica" gerou uma revolução na área da criação gráfica levando os profissionais a terem de aprender a usar o QuarkEXpress, o PageMaker, - eu ainda aprendi a usá-los -  e depois o InDesign, hoje generalizado, que permitia também usar os outros programas da família Adobe com facilidade, nomeadamente, para tratar fotografias. E com o aparecimento da World Wide Web, a internet, computadores em qualquer parte do mundo passaram a estar ligados em rede e a transmitir informações entre si e isso mudou  face do mundo em mais aspectos do que conseguimos lembrar. A evolução neste sector foi impressionante: estamos muito longe da presença obrigatória do cliente no escritório ou atelier, para aprovação do trabalho,  da deslocação à gráfica para dar andamento ao processo, com o CD na mala, etc. Hoje, os ficheiros, até mesmo os muito grandes, podem viajar pelo mundo inteiro, serem compostos em Portugal, entregues nos EUA, para impressão, serem armazenados na nuvem, de forma rápida e segura. 

Quando começámos a ter impressoras e scanners em casa, muitas pessoas substituíram-se ao designer e até ao impressor e passaram a imprimir nas suas impressoras alguns materiais básicos que antigamente só conseguiam obter na tipografia, embora de menor qualidade, é certo. Isto aconteceu em pequenas empresas, ou serviços, mas também a nível pessoal. Os pequenos folhetos para anunciar eventos eram compostos num aplicativo do Office cujo nome me escapa, outro caso paradigmático foram os cartões de visita que muitos deixaram de encomendar às tipografias. Se antigamente os materiais gráficos saiam sempre da mão de artistas gráficos, e de tipografias ou gráficas, agora posters, cartazes e folhetos eram muitas vezes compostos por curiosos. A qualidade do design baixou, isso era indiscutível. Mas o folheto servia a necessidade, podia ser impresso de noite, ao fim de semana, em cima do joelho! Os  poucos exemplares necessários saiam muitas vezes menos que perfeitos mas ninguém se importava com isso porque ter aquela tecnologia nas mãos era algo fantástico. Com esta familiaridade  veio também a depreciação do valor do trabalho do artista gráfico, ou do designer, por quem não conseguia perceber  que há um conhecimento específico por detrás da criação de um layout, uso de cores, formas, fontes, que tornam a comunicação clara, eficiente, etc. Noutra área, mas seguindo a mesma lógica, quem poderá esquecer o aspecto berrante dos primeiros blogues e sites que então povoaram a internet!

Hoje assistimos ao êxito do Canva,  uma plataforma online de criação de design. O Canva disponibiliza uma série de ferramentas gratuitas- mas também tem um modo pago - que permite fazer a criação e promoção de uma marca de um pequeno negócio ou empresa, e também de uma marca pessoal, de forma prática. No Canva podemos criar cartões de visita, panfletos, cartazes, templates personalizaveis para quase todos os fins, desde festas de aniversário a posts de Instagram, imagens, vídeos e animações para postagens, salvar o que foi criado, ou compartilhar directamente por e-mail, nas redes sociais ou manualmente através de um link.

Não pretendi ser exaustiva, mas creio ter mostrado como tudo se pode alterar num curto espaço de tempo. Foi mais ou menos assim que a impressão digital se desenvolveu e substituiu completamente a impressão tradicional, como o offset, em pequenas tiragens. Assisti a este processo, talvez tudo tenha mudado em 10 anos, enquanto entrava e saía de algumas gráficas para entregar e acompanhar trabalhos. Abriram micro-empresas de impressão digital por todo o lado. As antigas offset que tinham dominado a indústria passaram a oferecer também o digital. Os antigos equipamentos tornaram-se obsoletos. Enquanto esta mudança acontecia de forma inexorável, muitos profissionais enfrentaram sérias dificuldades para se manterem relevantes e competitivos, muitos não conseguiram modernizar-se, actualizar os seus conhecimentos e práticas, e ficaram para trás.  Certos postos e funções dentro da pré-impressão extinguiram-se, por exemplo,  os montadores ou preparadores de montagem manual de fotolitos e peliculas e retocadores de fotolitos. Muitas empresas de pré-impressão fecharam as portas. Apesar de tudo, hoje, além da impressão digital, a impressão offset ainda é um dos processos de impressão mais difundidos, devido à alta qualidade e ao baixo custo para médias e grandes tiragens. A revolução que a chegada da AI vai introduzir em muitas áreas e fluxos de trabalho acontecerá de forma rápida pelo que as pessoas têm de se preparar para ela: evitar, menosprezar ou recear é a pior atitude a tomar perante a inovação a que assistimos.

Acredito que haverá espaço para os melhores criadores de imagens AI obterem o seu lugar ao sol. É que a maioria da chamada "arte AI" sofre de um mal que é o da extrema semelhança entre si: quantas mais imagens olhamos, mais todas nos parecem mais do mesmo, por maior que seja a novidade ou a excentricidade do tema. Ou o criador consegue usar a sua cultura visual e técnica para conseguir extrair algo que se diferencie, ou altera essa imagem assim gerada, - e esta é também a única forma de poder reclamar direitos sobre essa imagem - e as possibilidades são muitas. De outra forma, ela tenderá desaparecer num mar, não, num oceano de dimensões vastíssimas de criações de AI fantásticas mas sem nada de particularmente singular. Quem é que nunca se sentiu extremamente indeciso diante das inúmeras opções na sua frente, a ponto de adiar sua escolha ou até desistir? 

A minha maior supressa, de Agosto para agora, foi descobrir a facilidade com que já é possível treinar modelos usando a nossa base de conhecimentos, o nosso traço. Claramente isso pode vir a ser um trunfo para o verdadeiro designer, ilustrador, fotógrafo, ou artista treinado na sua profissão, na sua arte. Esses, e outros, que não rejeitem liminarmente o AI e que consigam usar as suas habilidades em conjunto com a nova tecnologia, serão os que ditarão o futuro, acredito até brilhante, da sua profissão. Talvez também possa ser assim para outros profissionais, mas o passado mostra que nem todas as histórias têm um final feliz. Esta frase já se tornou um clássico: As IAs não vão substituir o homem, mas um homem que sabe usar IA vai substituir o homem.

(Tudo isto é novo, demasiado novo, pelo que as minhas convicções e opiniões poderão também mudar! Por isso, leiam com moderação, como quem fuma, ahaha!)

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