Nem o Dalai Lama escapa à polémica


Penso no Dalai Lama e ocorre-me sempre um homem sorridente, de óculos, envergando vestes coloridas. Vi o filme Kundun, do Scorsese, vi também Sete anos no Tibete, era o Brad Pitt um rapazote nos seus trintas. Fiz algumas leituras sobre o Tibete, sobretudo relacionadas a ocupação chinesa. Sobre budismo sei o básico. Sobre o Dalai Lama, sei que é um líder espiritual e político, pouco mais. Aos 15 anos tornou-se o 14º Dalai Lama. Dá-se a ocupação do Tibete pela China, as coisas complicam-se. Ao cabo de dois anos, em 1959, fugiu, a pé, para a Índia, onde recebeu asilo. Tornou-se um resistente. Dharamsala, uma cidade nas montanhas do norte daquele país, é onde tem a sua residência oficial. Nunca deixou de promover a causa tibetana, de defender a sua autonomia. Ao mesmo tempo promoveu a paz mundial e valores humanitários. Nunca tive grande curiosidade sobre ele, tal como não tenho sobre o Papa. Não sou espiritual, muito menos sou religiosa. Quando me foco na religião é quase sempre porque os homens arranjaram nela mais um subterfúgio para se matarem uns aos outros e isso foi notícia, talvez por isso não me inspira em nada a olhar os seus representantes de forma benevolente. O Dalai Lama conquistou muitos seguidores e simpatizantes no mundo inteiro. É venerado, é respeitado. Para mim, que não sou budista, é fácil dizer que ninguém está isento de falhar, nem mesmo o Dalai Lama. Admitir um líder menos que perfeito talvez possa ser algo que os budistas tibetanos nunca possam conceber. Ou talvez sim, não conheço os princípios do budismo.

O que me surpreendeu neste episódio que deu a volta ao mundo, pelos piores motivos, foi a ligeireza obscena com que uma vasta maioria não hesitou rotular o Dalai Lama de pedófilo. Os contactos físicos polémicos - o beijo aflorado - e a solicitação que não se cumpriu, de chupar a língua, não são aceitáveis na nossa cultura, mas, num contexto de brincadeira, entre avô e neto, por exemplo, não seriam também imediatamente catalogados como pedofilia, nem o familiar cancelado ou votado ao ostracismo. Observados os diversos vídeos disponíveis, - e cujos links forneço - também não vi o constrangimento de que tantos falaram. Vejo uma criança que se abraça ao Dalai Lama em diversos momentos do dia, que lhe dá prendas, que tira fotos com ele, que sorri, e se manifesta feliz e rodeado por uma energia positiva numa entrevista. É idiota, é ingénua?  Não percebe que caiu nas mãos de uma criatura perversa? Foi manipulada? E o que dizer da mãe que nada fez, que não censurou, que permitiu tudo isto, a dois metros de distância deles? Que é tão depravada como o Dalai Lama? Que é cúmplice? Que está cega pela religião? Que vive alienada da realidade? Que há o perigo da criança e sua a mãe encararem este tipo de convívio com outros homens, como natural e bem vindo? Não me parece.

A pedofilia e o abuso sexual infantil são uma realidade dolorosa, sobretudo, porque na maioria dos casos é perpetrada por pessoas muito próximas da criança, inclusive as da sua família. Prevenir estas acções nefastas e combatê-las tem de ser um esforço contínuo, da parte de quem educa e de quem forma, agora que até na internet os seus perpetradores encontraram um modo facilitado de disseminação de imagens e vídeos de pornografia infantil. Na nossa lei, pedofilia é o acto ou a fantasia de ter contactos sexuais com crianças em idade pré-pubertária (13 anos ou menos), sendo que o pedófilo tem de ter mais de 16 anos e ser cinco anos mais velho que a vítima. A pedofilia é uma doença, uma condição psicológica, provavelmente sem cura, talvez controlável com muita terapia. Ainda assim, importa distinguir o pedófilo - que pode nunca tocar numa criança - do abusador sexual - qualquer indivíduo que tem contactos de índole sexual com crianças pré-púberes, incluindo, desta forma, pedófilos e não pedófilos.

Em Portugal, o maior escândalo de pedofilia, o primeiro a ser encarado de frente, foi despoletado pela reportagem da jornalista Felícia Cabrita, de Novembro de 2002, no semanário Expresso. Conhecemos então uma rede de pessoas de todos os quadrantes sociais, - monitores educativos, apresentadores de televisão, advogados e até políticos, - que foram acusados de cometerem crimes sexuais graves contra a integridade física e psicológica de crianças institucionalizadas na Casa Pia. 

O que é que eu pretendo ao escrever, hoje? Questionar se o que se vê nos vídeos chega para classificar um homem de 87 anos como um pedófilo ou abusador de crianças. Questionar se é suficiente para passar uma esponja em tudo o que foi e fez, naquilo que representa. Questionar se os Tibetanos precisavam de mais esta afronta. Não devíamos, neste momento em que somos todos os dias bombardeados com imagens criadas com AI, ser um pouco mais cautelosos quando vemos imagens na internet? Questionar. Questionar é cada vez mais imperioso. Até parece que ainda não ficámos vacinados contra as "fake-news", que desconhecemos a manipulação informativa! Por outro lado, não podíamos tentar ser um pouco menos emotivos - e grosseiros -  e mais ponderados nos nossos julgamentos online? Obter o quadro completo numa análise superficial é um risco. Se estivessem, como eu, habituados a analisar pintura, veriam como isto é óbvio. 

Quero com isto dizer que que não se passou nada e que foi tudo um balão de vento? Não. Nada disso. Bem sabemos que até pais e mães beijando filhos e filhas na boca, como é tão vulgar nos EUA, é coisa que por lá mesmo uns consideram bonito e outros uma vergonha. Também essas pessoas são logo rotuladas de doentes,  veja-se o caso de Vitoria e David Beckam, quando subiram fotos no Instagram onde beijavam a sua filha na boca. Os pais censurados apressaram-se a reagir: apenas pessoas com mentalidade distorcida podiam ver naquelas imagens um roubo da inocência das crianças, um abuso de natureza sexual, disseram. Ora, não será possível que os Beckam tenham crescido nesse hábito, um hábito cultural, e estivessem a passá-lo aos filhos de uma maneira apenas natural e carinhosa? Por que razão sexualizam esse comportamento quando eles próprios não o fazem? Pensem, a esta mesma luz, o que terão pensado a mãe e o menino de tudo isto, que opinião formarão. O Dalai Lama pediu desculpas ao menino e sua família, e aos seus amigos no mundo, pelo mal que as suas palavras pudessem ter causado, não pelos seus actos. Imagino que tenha tido um choque equivalente ao de muitos, que, afoitamente, se apressaram a cobrir de ignomínia algo onde ele, acredito, de facto, não viu maldade alguma. E na consciência dessa maldade é que reside toda a diferença. (Sim, é a minha opinião. Divirjam à vontade.)

Estes prints são da cerimónia de abertura do evento. Estes momentos antecederam os que foram divulgados no vídeo cortado. O menino entrega presentes ao Dalai Lama e há troca de abraços e festas.
Fiquei intrigada quando me disseram, entre uma dentada numa torrada e um café, que o Dalai Lama era um pedófilo e que o tinham filmado a chupar a língua a um rapazinho. Filmado? Filmado, como? Toda a gente sabe que a pedofilia é uma coisa vivida em segredo, abafada, silenciosa. Se não soubesse melhor diria que o filme O silêncio dos inocentes era sobre pedofilia, não  Sleepers. Fui ao Youtube procurar as imagens e deparei-me com dois vídeos, este e este. E este, ainda. Nos dois primeiros, um tibetano explica uma visão dos factos que não correspondia ao que me tinham contado, nem ao que circulava nas redes. Independentemente das suas explicações, não vi nestes vídeos a queda do Dalai Lama que me tinham anunciado ao pequeno-almoço.

A mulher à esquerda é a mãe do menino e perante a pergunta dele ao Dalai Lama, se o pode abraçar, ela ri-se e diz-lhe: "Ficaste maluquinho, filho?". Estes prints são do vídeo que circulou, mas que foi cortado e editado de forma a isolar os "comportamentos reprováveis", e correspondem a um segundo momento de interações entre ambos. Observem a quantidade de estudantes presentes. O último print corresponde  a um terceiro momento de interações, a despedida, quando o menino, também acompanhado pela mãe, parte o coco.


O evento teve lugar a 28 de Fevereiro, em McLeod Ganj, subúrbio de Dharamshala, no distrito Kangra. De acordo com o tibetano Jimji, cerca de 100 estudantes estavam presentes num evento da Impower Academy for Skills, uma escola. O evento estava a ser filmado pela TV, e não sei se a ser transmitido também para algum canal, em directo, e muitas pessoas filmavam com o telemóvel. Logo ao perceber isto interroguei-me como é que tinha ali sido abusada uma criança ao olhar de todos, num evento tão observado. Ainda agora tivemos a publicação de um relatório sobre abuso sexual de menores pela Igreja, que serve o caso na falta de outra comparação, e pergunto-me em qual deles é revelado que o abuso de algum menor aconteceu durante a missa dominical e a escassos dois metros da mãe. Na fotografia é possível ver a Drª. Payal Kanodia, a mãe do menino, sempre por perto e sorridente. (Kanodia, é administradora da M3M Foundation e diretora do M3M Group, onde desempenha um papel vital na operação dos negócios. Possui um doutoramento em Filosofia pela Universidade Internacional de Estudos Fundamentais em São Petersburgo, Rússia, é membro diplomático do CDI. Também estudou empreendedorismo na Harvard Business School, em Boston.)

Nestes prints vemos interações do Dalai Lama com diversas pessoas, e podemos reconhecer o tipo de contactos que são tido por habituais cumprimentos e saudações. 


Surgiram opiniões contrárias à tese do abuso, uma minoria, pessoas que de forma ponderada tentavam explicar o sucedido à luz de outro entendimento cultural. De forma liminar foram igualmente rotuladas como pedófilas, nojentas e criminosas e enxovalhadas com inapropriado recurso a linguagem expressivamente degradante, própria de gente mal formada, incapaz de alinhar duas frases direitas, como já é habitual nas redes sociais. 

A avalanche de condenações abafava todas estas tentativas de inverter a maré de difamação contra a pessoa do Dalai Lama. Do argumentário de defesa que vi constava que mostrar a língua não tem no Tibete o mesmo significado que entre os ocidentais, que ali é um cumprimento, não é nem sinal de má educação nem um orgão especialmente sexualizado. (Em Sete anos no Tibete, de facto, existe uma cena onde os tibetanos mostram a língua ao explorador e seu amigo.) Ou que o Dalai Lama se tinha expressado mal, que tinha confundido o uso das palavras. (Na minha opinião, desde logo imaginei que talvez fruto da idade ou até de alguma demência, algo lhe tivesse escapado ao controlo, mas nunca algo de teor lúbrico.) Também li que o Dalai Lama costuma provocar as pessoas de forma inocente e divertida, e isso é verdade, realmente, há pelo menos um vídeo onde ele explica que gosta de fazer os outros rir, fazendo cócegas, cócegas que também o vi fazer à criança no vídeo polémico. Aliás, tudo o que ele fez, já tinha feito a adultos antes, há vídeos e fotos disso, desses contactos. Opiniões mais políticas da situação apontam um vídeo editado com propósito difamador de um evento com estudantes que já tinha acontecido em Fevereiro, lançado num momento chave, uma acção que teria a China na retaguarda. (Mas foi mais fácil acreditar que o Covid tinha sido produto de uma engenharia viral na China do que uma tal explicação.) Li ainda que os abraços que vimos, toques e saudações são considerados uma enorme honra, nada censurável, daí todos falaram em enorme sorte e bênçãos recebidas pela criança e não em qualquer abuso sexual. 

Entrevistas da mãe e do menino onde referem a experiência como boa e abençoada estão disponíveis no Youtube. Estes prints foram extraídos desse vídeo filmado a seguir ao evento.
A criança teve vários momentos de contacto com o Dalai Lama, na abertura do evento, no decurso do mesmo, quando, com impertinência que a mãe tenta demover, pede o abraço ao Dalai Lama, e no final, na despedida, quando parte um coco, o que é considerado um ritual auspicioso. Ia preparada para ver uma criança completamente atemorizada e constrangida por tudo aquilo – era o que a maioria afirmava nas redes - mas não vi nada disso. Mais, ouvi a criança dizer que a experiência tinha sido boa e ouvi a mãe dizer que se sentiam abençoados. Como já referi, a mãe, de vários filhos, é, além de budista, uma doutorada, desportista, tem uma carreira, estudou nos Estados Unidos, conhece também a nossa mentalidade e os nossos costumes. 

Estes dois prints mostram os três, a mãe, o filho - no momento em que ele pede o abraço - e o Dalai Lama, e a sua posição relativa. O último print é de uma fotografia tirada na despedida do evento, o menino está sentado no colo do Dalai Lama. O vídeo de onde a imagem foi capturada pode ser visto no Youtube.




Perante tudo isto, questiono de que serve o nosso acesso à informação, dita "à distância de um clique",  o Google, se em vez de questionarmos o que vemos e de procurarmos ir além do óbvio, embarcamos na via rápida do que nos parece ser de forma tão inconsciente. Mais: porque vão tantos atrás de autênticos gurus do Facebook, que as mais das vezes nada mais fazem que digitar lugares comuns? Que garantias nos dá a sua visão, a não ser que coincide com a nossa? Gente que parece fabricar texto após texto como quem enche chouriços, alguns mera exploração fácil e emocional de temas que mereciam antes um sério  debate e aprofundamento? Diversão e emoção, e, de preferência, sangue, rendem bem mais Likes do que conhecimento, análise, posições minoritárias e antagónicas, e essa gente sabe disso e leva os outros na pandeireta. É lamentável. Leiam esses, mas não deixem de ler opiniões de sentido inverso, não enxovalhem estes por terem opiniões diferentes e, sobretudo, questionem. Sempre.

 Um dos argumentos em circulação.

(Na cultura tibetana, é comum ver os velhos avós não só adar um beijinho às crianças pequenas, mas também dar um pequeno doce ou um pedaço de comida às crianças da boca – directamente, boca a boca. Isto pode não ser a norma da vossa cultura, mas isto é comummente feito no Tibete. Depois de o mais velho dar um beijinho e um doce, já que não há mais nada na boca, nada mais para dar, eles dirão a frase 'Ok, agora come a minha língua' (não 'chupa', como Sua Santidade disse mal devido ao seu inglês menos proficiente). A frase tibetana é 'Che Le Sa'. Eles dizem isso como "Eu dei-te todo o meu amor e os doces, então é isso, tudo o que falta fazer é comer a minha língua». E é uma coisa brincalhona, que as crianças sabem. Isto não é realmente feito na Região de Lhasa (capital do Tibete) tanto, mas é mais comum na região de Amdo (de onde Sua Santidade é).
No entanto, é definitivamente um costume tibetano.)


O menino perguntou ao Dalai Lama se podia dar-lhe um abraço e ele concordou. Quando o monge se inclinou para cumprimentá-lo, espetou a língua de fora, enquanto encostava a sua testa na do menino, e disse-lhe: Suck my tonge. Levantou-se um clamor. Já agora pergunto também onde está esse clamor quando as crianças do Tibete sofrem? Os tibetanos são um povo oprimido, esquecido. As crianças tibetanas sofrem também, não apenas os adultos. As crianças também podem ser condenadas à morte se se provar que estão a atentar contra a supremacia chinesa. Leiam o texto que vos deixo, abaixo, se têm dúvidas. A polícia vigia os movimentos dos tibetanos, faz detenções, usa tortura. Não sabem o que seja a liberdade de expressão, não podem protestar, manifestar a sua simpatia pela causa tibetana, seja através de imagens ou palavras. Arriscam a vida, arriscam ser presos, separados da família e de apoios, sem um julgamento justo. 

A todos os que viram constrangimento, inquietude, nojo, receio, repulsa e que temeram de forma tão forte pelo bem estar da criança (indiana) no vídeo, pergunto, pois, porque não se manifestam com idêntico fervor e repulsa perante esta continuada violação de direitos humanitários básicos.

(Resumo)

O Tibete é uma região dos Himalaias, um planalto gelado com o dobro do tamanho do Texas, apelidado de “teto do mundo”. Os tibetanos compartilham uma linhagem com os povos chinês, mongol e siberiano, embora se diferenciem por uma mutação genética que lhes permite prosperar a mais de 13.000 pés acima do nível do mar, bem como por uma série de diferenças culturais, incluindo sua própria língua, religião e costumes.

No entanto, uma campanha de assimilação acelerada empreendida pelo governante Partido Comunista Chinês está ameaçando apagar totalmente o modo de vida único do Tibete. A última salva foi revelada na segunda-feira, quando três especialistas da ONU alertaram que cerca de 1 milhão de crianças tibetanas foram separadas de suas famílias e colocadas à força em internatos estatais chineses, como parte dos esforços para absorvê-las “culturalmente, religiosamente e linguisticamente” pela dominante cultura chinesa Han.

O esquema envolve a colocação de crianças de comunidades rurais em escolas residenciais, onde as aulas são ministradas exclusivamente em chinês mandarim, com poucas referências à história tibetana, religião e certamente não ao líder espiritual exilado Dalai Lama. O resultado é que muitas crianças esquecem sua língua nativa e lutam para se comunicar com seus pais quando voltam para casa, o que normalmente dura apenas uma ou duas semanas por ano. Embora a proporção de estudantes chineses em internatos seja de cerca de 20% em todo o país, os especialistas da ONU acreditam que a grande maioria das crianças tibetanas está em grandes escolas residenciais após o fechamento sistemático de salas de aula rurais.

“O sistema escolar residencial para crianças tibetanas parece actuar como um programa obrigatório de larga escala destinado a assimilar os tibetanos à cultura Han de maioria, contrariando os padrões internacionais de direitos humanos”, Fernand de Varennes, relator especial da ONU para questões de minorias; Farida Shaheed, relatora especial sobre o direito à educação; e Alexandra Xanthaki, relatora especial na área de direitos culturais, em comunicado conjunto .

É o mais recente caso de ataque cultural prolongado às minorias da China - principalmente uigures , tibetanos e mongóis - desde que o presidente Xi Jinping assumiu o cargo em 2012. O exemplo mais flagrante é a detenção extrajudicial de até 2 milhões de uigures e outros muçulmanos em campos de reeducação na província ocidental de Xinjiang, que a ONU considera “crimes contra a humanidade”.

Embora os tibetanos tenham sofrido ataques de intensidade oscilante desde a invasão do Exército Popular de Libertação em 1950, os esforços se aceleraram desde que uma onda de protestos anti chineses eclodiu em 2008 e uma onda de terríveis autoimolações começou um ano depois. Desde então, os tibetanos foram encurralados em grupos de trabalho e comunidades nomadas forçados a estabelecer-se em conjuntos habitacionais fixos, com severas limitações nas actividades de monges e fiéis. Em agosto de 2018, um ativista que simplesmente organizou aulas de língua tibetana foi condenado a cinco anos de prisão por “incitar o separatismo”.

Em contraste, o governo chinês insiste que está, de facto, salvaguardando a cultura étnica e aponta para as novas estradas, ferrovias e hospitais nascidos do investimento do Estado que ajudaram a aliviar a pobreza extrema no Tibete. Com certeza, hoje os visitantes Han lotam os templos tibetanos em Lhasa e Xining, seduzidos por um fervor religioso inebriante. No entanto, a promoção oficial da cultura étnica é, em última análise, redutora - um pastiche de danças e canções folclóricas para as multidões de turistas.

O Tibete nunca foi uma utopia pacifista. Mesmo após a introdução do budismo da Índia no século VII, os tibetanos eram um povo marcial, cujos guerreiros a cavalo altamente qualificados saqueavam a Ásia central, saqueando cidades e exigindo tributos de rivais colocados sob seu jugo. Os xamãs lançam feitiços para guiar as espadas e lanças de seus guerreiros; tribos oprimidas foram punidas com a amputação de narizes, orelhas ou mãos.

Sob o imperador Songtsen Gampo, cuja consorte nepalesa é considerada a primeira a trazer o budismo para o planalto congelado, os tibetanos controlaram um império que rivalizava com o de Genghis Khan e os otomanos, até mesmo saqueando a capital da dinastia Tang da China, Chang'an - atual Xian - em 763. Mas o império tibetano se fragmentou em uma confusão de feudos a partir de meados do século IX, apenas se fundindo em um Tibete forte e amplamente unificado em 1642, quando surgiu a atual linhagem de Dalai Lamas. Mesmo assim, o Tibete permaneceu em grande parte um estado cliente do império mongol prevalecente. (O título de Dalai Lama, que significa “Lama do outro lado do oceano”, é de origem mongol.)

Enquanto o PCCh insiste que a parte oriental do planalto tibetano faz parte da dinastia Qing desde o início do século 18, eles convenientemente encobrem o facto de que os Qing eram manchus do noroeste da China e nominalmente budistas tibetanos. Poucos tibetanos sequer avistaram um chinês Han na época da invasão comunista, conhecida coloquialmente como “ngabgay”, ou um evento tão catastrófico que desafia qualquer descrição. Embora a China tenha mantido o Tibete sob seu controle em vários pontos da história, o território gozou de “independência de facto” desde sua última expulsão em 1912, de acordo com a Comissão Internacional de Juristas.

Isso terminou com a chegada das tropas chinesas vermelhas em 1950 e a fuga do Dalai Lama para a Índia em 1959. Apesar de todas as dificuldades que se seguiram, o Tibete de alguma forma se agarrou à sua identidade ao longo das décadas de privações sufocantes. Mas a campanha das escolas residenciais ameaça fazer dos tibetanos de hoje a última geração no planalto que poderia reivindicar culturalmente o nome.

“O regime comunista da China pensa que a cultura tibetana, nossa língua e religião distintas, é uma ameaça à segurança nacional”, diz Dorjee Tsetne, membro do Parlamento tibetano no exílio, baseado no norte da Índia. “O objetivo da China é nada menos do que acabar completamente com a identidade nacional do Tibete.”

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