Comentário intempestivo

 


Preciso de óculos novos, está mais que visto. O oftalmologista avisou-me: “Então até daqui a 3 anos”. A minha língua dobrou uma asneira. Tinha pago uma fortuna. Só 3 anos? Em vez disso perguntei se não havia nada que eu pudesse fazer para adiar o meu regresso ao consultório. A resposta científica, traduzida em miúdos resumia-se a um, não, és velha, aguenta-te. Desde há um tempo que ando a esticar o prazo dessa visita: o diabo das lentes progressivas têm um preço absurdamente progressivo e se foi um tormento habituar-me a elas, agora não saberei viver sem elas. Tenho de as substituir por idênticas. Menos que isso será um de cavalo para burro doloroso. Mas isto está no limite. Mais umas luas e para bem decifrar os rótulos no supermercado já só lá vou de lupa, à Sherlock Holmes.

Tenho vindo a adaptar-me a uma vida de Magoo. Não é assim tão mau depois de praticar à força. Agora tomei também a decisão de evitar comentar mais cenas no telemóvel ou corro o risco de passar vergonhas. Uma gaja engana-se porque viu mal, usa um tom descontraído, e logo aparece um polícia da boa educação a exigir respeito e a esclarecer os importantes factos que esta tipa não soube ver na fotografia ou na legenda. Como se eu fosse da plebe e tivesse afrontado sua majestade, como se estivesse em causa o relatório de uma autópsia de cena criminal, eu fosse médica legista e tivesse tido o denodo de não usar uma exacta linguagem profissional. 

Devia saber, fruto da experiência, que na rede azul há guardiões para quase tudo de plantão, e para quase todos. Nunca podemos baixar a guarda, impõe-se andar na linha. Do seu posto de vigia estão sempre prontos a reportar a nossa mais pequena derrapagem ao sistema, ou, coisa mais comum, a castigar-nos em público, talvez porque, tornando-nos pequeninos é sempre garantido sentirem-se grandes. Não importa se defendem o caroço da cereja, ou se a cereja, no preparo do doce; importa defender tudo com máximo rigor. E, nessa óptica, é certamente muito certo defender o caroço, mesmo que o caroço se esteja nas tintas sobre se vai entrar no doce ou se acaba no caixote do lixo. 

Talvez se tenha tratado de um novato ou imaturo digital. Ou alguém a passar um mau bocado necessitado de libertar a pressão. Ou alguém acabado de experimentar as suas primeiras lentes progressivas, quem sabe! Presbiopia é dose! A gente nunca sabe, e, não sabendo, não devemos ser muito duros no julgamento digital. Eu também já tive o sangue na guelra mas depois encontrei uma forma mais amável de fazer as coisas. Descobri a minha vocação para a meiguice no ano em que fiz um curso sobre a química da felicidade e me viciei em obter oxitocina sempre que a oportunidade se proporcionava. Eram tempos lassos, ou de maior paciência. Então, quando detectava um erro ortográfico no Facebook, enviava uma mensagem ao seu autor: “ Boa tarde! Talvez queira corrigir a gralha que encontrei na segunda linha do seu texto.” Andava sempre à coca de erros ortográficos, como devem imaginar. Já não sabia se era viciada em oxitocina se em encontrar os erros dos outros! 

Já me deixei disso. Disso e daquilo, deixei-me de muita coisa. Outros que corrijam o mundo que eu não tenho tempo. (Menos mau se fosse essa a verdade. Não é. Tornei-me foi apática, decidi poupar a minha energia e usá-la apenas no mais importante.) Mas claramente não falta quem tenha tempo e tesão furiosa para endireitar a nossa falta de visão ou a pouca educação com que nos expressamos no Facebook. Talvez gente que ainda acredita em endireitar o mundo linha a linha, ou gente que gosta de palavras caras, ou que fez daquilo ou destas o seu vício. 

A vida custa cada dia mais caro, isso todos conseguimos ver, com ou sem óculos. O que me endireitaria a vida, sei eu! E não é o despeito de um estranho, cujo seu melhor rasgo teria sido o de me ignorar e ao meu erro. (Tal como o meu melhor teria sido ignorá-lo em vez de me penitenciar ironicamente pelo comentário intempestivo.) Convenhamos, a coisada não passava de um caroço perdido numa marmelada. Mas descobrir o vício de ser amável com o próximo e ser recompensado com oxitocina é uma riqueza para muitos invisível. E a oxitocina não paga contas. Se pagasse, ai, ai, a vida seria decerto mais cor-de-rosa neste modorrento antro azul chamado Facebook. 


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