Mahsa Amin. Solidariedade para com as mulheres iranianas


Desde o início dos anos 80 que mostrar uma mecha de cabelo, os braços ou as pernas, ou recusar  usar um hijab se transformou em motivo de discórdia no Irão. De tempos a tempos as mulheres protestaram mas não obtiveram apoio significativo, nem local nem internacional. Há uns anos, uma jovem subiu a uma caixa na rua da Revolução, em Teerão, tirou o hijab e fez dele uma bandeira. O vídeo tornou-se viral. Vida Movahedi foi presa em 27 de Dezembro de 2017 e libertada no dia seguinte com uma multa. Ficou conhecida como o ícone de um grupo de mulheres que repetiu a sua acção de protesto ao longo de 2018, fotos testemunham o sucedido nas redes sociais com a hashtag #girlsofrevolutionst. O Artigo 638 do Código Penal Islâmico do Irão especifica que "As mulheres que aparecerem em locais e estradas públicas sem usar um hijab islâmico serão sentenciadas de dez dias a dois meses de prisão ou multa de 50 mil a quinhentos riais".

Um vídeo numa conta do Instagram, "Soutien femmes Iran", mostra 53 artistas francesas a cortarem uma mecha de cabelo, umas mais comprida, outras menos. Imitam o gesto de uma iraniana enlutada, cortando o cabelo sobre o caixão de seu irmão, Javed Heydari, que morreu durante uma manifestação anti-hijab. "For Freedom" é o slogan lançado por Juliette Binoche para iniciar o protesto. Entre as celebridades, actrizes e cantoras,  identifico Marion Cotillard, Isabelle Huppert, Jane Birkin e Charlotte Gainsbourg, Isabelle Adjani, Léa Seydoux ... "Bella Ciao", agora ​​cantada em farsi pela iraniana Gandom, é transformada no hino deste movimento de protesto, nascido na sequência da morte de uma jovem de apenas 22 anos, Mahsa Amini, a 16 de Setembro, três dias após a sua detenção em Teerão pela "polícia moralista" por ter o véu mal ajustado, deixando ver o seu cabelo, uma violação do rigoroso código da República Islâmica. 

A eurodeputada sueca Abir al-Sahlani também cortou os cabelos em plena sessão do Parlamento Europeu umas dezenas de personalidades espanholas, entre as quais as actrizes Alba Flores, Carmen Maura, Maribel Verdú, Paz Veja e Penélope Cruz, também cortaram mechas.

A 13 de Setembro, a jovem Mahsa chega a Teerão para férias com a família antes de iniciar seus estudos universitários na província do Azerbaijão Ocidental e é parada no metro pela polícia. Segundo relato da a família foi esbofeteada, batida, levada para um veículo e transportada para um centro de reeducação para aulas de modéstia, onde terá desmaiado. No hospital, após um coma, acaba por ser dada como morta, ao cabo de 3 dias. A morte de Mahsa Amin incendiou os ânimos originando protestos em mais de 40 cidades do Irão. Os vídeos partilhados no Twitter são violentos. Gritos por direitos e liberdades perdidos em 1979, estátuas de líderes da revolução islâmica incendiadas, e véus atirados ao chão e para fogueiras, enchem as noites d tumulto. A multidão que tomou as ruas de forma espontânea, homens e mulheres de ambos os sexos, sobretudo muita juventude, assim libertando a frustração acumulada por décadas com um regime anti-democrático. A polícia, como é seu hábito, reprimiu com violência essas manifestações. Quase 180 mortos, muitos feridos e detidos até ao momento em que escrevo. No relatório médico entretanto divulgado lê-se que a morte de Mahsa Amini se ficou a dever a uma situação de saúde pré-existente, mas as TAC ao cérebro (divulgadas pelo jornal “Iranian Internacional”) mostram sinais de fraturas.

O vídeo francês foi uma iniciativa do advogado Richard Sédillot, com longo curriculum em matérias de direitos humanos e pleitos em instâncias internacionais, e é nada mais do que isto: um gesto de solidariedade simbólica para com as mulheres e homens do Irão, e em especial os detidos em condições de completa ilegalidade durante o protesto. Mas muitos franceses logo puseram em causa o seu valor pois tal gesto não irá mudar nada. Acusam o protagonismo balofo de um punhado de gente que vive confortável e no luxo, mais uma promoção cosmética Ocidental. As estrelas ocupam  o espaço mediático e o assunto que se devia discutir fica na rectaguarda. Mas, digo eu, se fica é apenas porque as pessoas preferem criticar negativamente o vídeo em vez de o aproveitar para lhe acrescentar valor, pessoas que passam talvez pelas notícias dos protestos no Irão com total indiferença, afinal, convenhamos, a maioria dos europeus não tem grande simpatia por países islâmicos e só a visão de um hijab é motivo para horror. Em França o hijab está proibido nas escolas e nos lugares públicos, o choque cultural é forte e frequente. O gesto de cortar uma mecha de cabelo é ridículo? Ora ainda bem que sim pois foi justamente por uma mecha de cabelo, uma ridicularia, que uma jovem foi batida e capturada pela polícia, acabando morta.

O cabelo feminino tem um valor simbólico em muitas culturas, de submissão e de serviço a uma causa maior - os monges rapam o cabelo antes de servir a Deus, os militares usam o cabelo curto quando servem no Exército - ou de força, como no caso de Sansão, personagem bíblica. As mulheres iranianas são obrigadas a cobrir o cabelo para não seduzirem os homens. Mas não apenas as mulheres iranianas, qualquer mulher, de qualquer cedo religioso tem de cobrir a cabeça em público. O véu, que era usado desde sempre no Irão, como em outros lugares, foi proibido por Reza Pahlavi em 1936, que desejava um Irão mais ocidentalizado inspirado pela Turquia. O seu filho e sucessor retirou as sanções contra o seu uso, tornando-o voluntário. Infelizmente, a sua deturpada visão política, que em nada acautelava os interesses do país, gerou o descontentamento popular que abriu caminho ao regime que se seguiu, um sistema onde coexistem instituições democráticas, eleitas por sufrágio direto e universal (como a Presidência e o Parlamento), e órgãos nomeados pelo poder religioso. Os partidos políticos têm pouca relevância. Em 1979, o Ayatollah Khomeini tornou o uso do véu obrigatório transformando-o num símbolo de repressão. Após a Revolução Islâmica, as mulheres foram obrigadas a usá-lo em público. Ora, isto é reduzir a mulher a um objecto sexual, apenas isso. Quem desafiasse a norma era perseguida pela família, pela polícia ou por ambas. Muitas mulheres desejam poder usá-lo, uma escolha livre, e não imposta por razões ideológicas ou religiosas. Note-se que o véu também tem o seu papel no Cristianismo. O hijab acabou por se transformar num símbolo de tirania, num símbolo da perda de liberdade que se seguiu à revolução.

Depois de ter assistido ao vídeo das francesas, fiquei à espera que em Portugal algumas actrizes lhes copiassem o gesto. Demorou um pouco. "Liberdade para todas… vergonha de comportamentos totalmente inaceitáveis da raça humana!", ou ainda, "Sorte em ser livre." Primeiro, Fernanda Serrano deu a tesourada simbólica. Não sei se houve mais algumas, mas a seguinte foi Catarina Furtado. "Gesto apenas simbólico pela liberdade das mulheres! Basta! Obrigada a todas pela coragem que têm tido no Irão", escreveu Catarina Furtado nas redes sociais. O seu vídeo obteve uma recepção mista, favorável e desfavorável. Quando o vi também não apreciei a atitude dela. Comparem-se as duas, Fernanda e Catarina. Há diferenças óbvias capazes de justificar comentário. Não estou contra o comentário. Não é isso. Mas havia em muitos um pequeno ódio mais ou menos disfarçado, como se ela não devesse fazer aquilo por não ter qualquer legitimidade. Mas, que qualidades, que atributos é preciso ter para manifestar solidariedade, afinal, uma opinião em forma de gesto, nada mais do que isso? Usar um véu? Ser iraniana?

Como já é comum, as pessoas atrás de um teclado revelam-se as brutas que são, honestamente é algo que me dá medo. Por exemplo, como será o farmacêutico tão simpático que me vende as bombinhas da asma quando se senta em frente ao ecrã? Um ogre digital? Avanço que não tenho qualquer tipo de simpatia pela Catarina. É-me indiferente. Não sabia bem o que tem sido a vida dela desde que a vi surgir como apresentadora de TV ou no filme Maria e as outras. Fiz uma busca só para comprovar que desenvolveu projectos relacionados com mulheres, que é desde 2000, Embaixadora de Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA) focando o seu trabalho na igualdade de género, educação sexual e reprodutiva, saúde materna e não-violência. Fundou a ONG Corações Com Coroa que desenvolve um trabalho de consciencialização em relação aos direitos das meninas, raparigas e mulheres, criou a série de documentários Príncipes do Nada onde se reflete sobre os principais problemas do mundo em desenvolvimento, etc. Portanto, confirmado que, mal ou bem, é uma pessoa implicada na área dos direitos humanos, gostava de entender por que razão tanta alminha comenteira acha que mais valia ela estar quieta quando tanta mulher e homem estão a cortar cabelo pelo mundo fora. 

Habituada apenas a vê-la nas capas de revistas que não compro, mal a reconheci no vídeo. O tempo passa e não deixa ninguém para trás. Por um instante até me parecia a Margarida Marinho, uma actriz de que gosto bastante! Durante 14 segundos, - sim, alguém mediu a duração do vídeo - a Catarina anda com a tesoura à roda da mecha, é verdade, e a gente não sabe bem como interpretar a expressão dela, se de fastio, se de nojo, se de indecisão. Um pouco diferente da resoluta Binoche ou da Huppert, ou mesmo da Serrano! Mas isto também se joga no terreno das simpatias: desde que vi a Binoche no filme A Dupla vida de Véronique que ela tem um lugar especial na minha galeria de actrizes, e a Huppert é, como se costuma dizer, um monstro da representação,  enquanto que a Catarina não me impressiona, mal me lembro de a ver no ecrã. Fiquei um bocado perplexa e a pensar se ela não teria bebido ou fumado qualquer coisita, mas nem me passou pela cabeça  atacar a fulana, nem pela atitude nem por ter cortado o cabelo. ESCOLHI não o fazer porque a intenção do vídeo o não merecia, mas, no meu íntimo, lamentando o sucedido.

Também li que este gesto - não apenas o da Catarina -  vai deixar as mulheres iranianas envergonhadas, não sei se por ser uma mecha só. Uma mecha maior resulta num protesto mais expressivo, mas creio que o problema da Catarina foi a forma como se filmou, o que é estranho, vindo de uma pessoa que sabe de comunicação. ( E parece que entretanto apagou o vídeo.) O vídeo das francesas além de demonstrar a solidariedade através do corte de cabelo, denunciava a opressão continuada que se vive no Irão. É possível que, para algumas pessoas tenha sido a primeira vez que ouviram falar deste tópico. Não vamos menosprezar a capacidade de "atração" que estas "estrelas" ou figuras públicas possuem junto do público, mesmo de quem não gosta delas, até talvez por razões justas, políticas, ou outras. Talvez um protesto ridículo capture a atenção de forma mais fácil que uma peça jornalística, afinal o Tik Tok é que bate records, não a televisão.

Pior do que a atitude algo incompreensível com que Catarina se filmou é o gesto de quem partilha o vídeo nas redes APENAS para incendiar a malta que acorre que nem moscas sôfregas quando lhe cheira a coisa que não presta. Claro, claro, todos temos direito à nossa opinião, evidentemente. Mas já aborrece quando esse tipo de partilha se faz e repete vezes sem conta, se parece um modus operandi de alguém que sabe que em duas linhas atiça um rastilho de comentários. Há criaturas que vivem para isto, tendo um gosto especial em sinalizar momentos imperfeitos ou pouco felizes, deslizes, passos em falso, de personalidades mais ou menos públicas. E depois há os que militam numa espécie de apedrejamento digital, agradecidos por terem tomado contacto com mais aquela pérola de miséria humana. O que seria do dia digital destes seguidores dedicados sem praticar umas linhas de enxovalho cáustico? Não posso dizer que nunca o tenha feito, mas nunca o fiz por sistema, e depois que pensei melhor no que estava a fazer já não o faço. 

O problema das redes é este: fazem-nos andar muito mais voltados para o que os outros fazem do que para o que andamos a fazer. Além disso, o nosso tempo é cada vez mais curto e então usamo-lo a comentar em vez de pensar, deixamos que os outros que pensem por nós. Assim,  a Catarina é ridícula porque cortar cabelo não ajuda as mulheres iranianas,  mas mudar o filtro da foto para apoiar a luta das mulheres no Irão já é uma boa prática, vai resolver tudo. Ser apenas solidário digitalmente não resolve problemas, claro que não, mas é algo a não menosprezar num tempo em que o mundo é uma bola digital e que a comunicação online cruza fronteiras. O que as mulheres iranianas querem é o que as europeias têm: liberdade de escolha. Poderem constatar online que conhecemos a sua luta e que estamos do seu lado, pode ser pouco, mas também pode ser muito,  mesmo sabendo elas que por cá a vontade de queimar os seus véus é real, emboras por razões diferentes das suas. É apenas a minha opinião, podem discordar, como é óbvio,  educadamente.




Do que eu percebi das leituras feitas,  há um significativo simbolismo em torno do cabelo cortado capaz de transformar esta manifestação numa forma eficaz de solidariedade, tão expressiva como ir para o Terreiro do Paço com um cartaz. Quem criticou o corte da mecha de cabelo que fique atento às redes, pois não faltarão manifestações de corpo e alma onde poderão comparecer com cartaz e megafone, e ser melhores do que a Catarina e as outras, ou eu mesma. Ou, quem sabe, talvez tenham uma ideia melhor para expressar solidariedade e, se for o caso, a gente agradece. 

Não foram somente as famosas que cortaram mechas de cabelo. Mulheres e homens de todo o mundo mostraram solidariedade para com a situação das mulheres iranianas em comícios e manifestações, cortaram ou rasparam o cabelo em público ou em vídeos que subiram nas redes. Num artigo da CNN explica-se que cortar o cabelo é em si um ritual de luto capaz de expor melhor a profundidade do sofrimento pela perda de um ente querido. Mas, além disso, para muitas mulheres iranianas, cortar o cabelo é também uma forma de protesto, no momento presente, é um sinal de "protesto contra o assassinato de nosso povo", diz Shara Atashi.

A prática tem raízes históricas, é citada em Shahnameh, - Épica dos Reis ou Épico dos Reis, ou Livro dos Reis ou mesmo Xanamé -  uma grande obra poética escrita no século X, pelo escritor iraniano Ferdusi, que narra a história e a mitologia do Irão, desde a criação do mundo até à sua conquista pelos árabes no século VII. Composto por cerca de 60.000 versos, o poema conta as histórias dos reis da Pérsia e é uma das obras mais importantes da literatura em língua persa. Em várias passagens da obra o cabelo é arrancado em sinal de luto. No Shahnameh, depois que o herói Siyavash é morto, sua esposa Farangis, e as meninas que a acompanham cortam o cabelo para protestar contra a injustiça. Também há cortes de cabelo na poesia de Hafez e Khaqani, poetas persas, sempre associados a luto e protestos contra a injustiça. São explicações da escritora e tradutora do País de Gales, Shara Atashi, e Faezeh Afshan, engenheira química, residente em Bolonha, e de Shima Babaei, uma activista iraniana residente na Bélgica, em artigo da CNN, que nos ajudam a perceber que este acto simbólico tem um significado mais profundo do que aparenta.

Posto isto, na nossa Europa cada um é livre de cortar ou não o cabelo, de ter a sua opinião, de ser um bruto digital à vontade, enfim, de fazer o que bem lhe apetece, suportando depois a respectiva chicotada crítica. Eu, por exemplo, há muito que não mudo filtros de perfil para demonstrar solidariedade, também não vou cortar cabelo, - mas já cortei um longo rabo de cavalo para ajudar as crianças com alopécia - nem irei ao Terreiro do Paço de cartaz em punho. Escrevi este texto por solidariedade para com as mulheres do Irão, a antiga Pérsia, um povo que merecia um destino melhor, um país rico em cultura que gostava muito de visitar, mas para o qual não me sinto convidada, aguardando o fim da era dos Ayatolás, com esperança.


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