Sobre o caso da idosa coberta de formigas no Lar da SCM de Boliqueime

 

Tinha acabado de ver uma publicidade  a uma residência sénior onde cobram 1650 euros/mês quando a notícia surgiu no feed do meu telemóvel. As imagens do vídeo gravado em Junho no Lar da SCM de Boliqueime são tristemente repugnantes. Por estas imagens e outras histórias que mais vezes do que seria desejável chegam à internet, tenho a pior impressão destes lugares e preferia morrer a acabar num. A notícia informava-me de que a pessoa entregue aos cuidados da instituição, uma mulher de 86 anos, amputada de uma perna, com uma escara, estava a ser alimentada por sonda gástrica, presa à maca pelo pulso. As formigas, bastantes, alimentavam-se talvez dos exudatos ou tecidos em decomposição. Havia muitas na zona do pescoço. Ela pode apenas ter falecido, dias após a filmagem do vídeo, porque tinha chegado a sua hora. Mas pode também ter contraído uma infecção pois o risco para a saúde colocado pelas formigas é real e as formigas infestaram a sua cama e passearam-se pelo seu corpo. 

As industriosas criaturas espalham microrganismos. Todo o espaço devia estar preparado para minimizar o seu acesso  e bem higienizado e asséptico para não atrair as "operárias". Num quarto com uma pessoa acamada tem de existir um alto controlo sanitário, seja em casa, seja no hospital. A infestação pode acontecer de forma rápida, dependendo da distância até ao formigueiro. Mas elas chegam devagar, primeiro algumas apenas. As operárias, após a descoberta de comida, regressam ao ninho deixando trilhos de feromonas que as outras seguem. Sabendo isto, e observando a quantidade de formigas, admito como provável que a utente não estivesse a ser muito vigiada. 

A SCM também referiu a proximidade a jardins para explicar o sucedido. Ora, se há um jardim isso devia ter motivado um maior cuidado no tratamento dado aos pontos de acesso ao edifício: onde há jardins há formigueiros e as formigas não esperam para ser convidadas de ninguém, elas encontram sempre um caminho para o que lhes interessa com o seu olfacto apurado. A debilidade da utente é anterior à entrada na SCM, assim como as feridas, mas estas razões apenas determinariam cuidados acrescidos de higiene. A SCM aguarda agora o resultado do pedido de autópsia médico-legal do MP. Que a Mesa Administrativa reze para que não seja encontrado um nexo de causalidade entre um patógeno transportado pelas formigas e a morte. 

A SCM escreveu no comunicado agora divulgado que a negligência do - ou dos funcionários -  é grave e inadmissível. Também afirma que será implacável com ele, ou com eles, concluído o inquérito disciplinar. Mas o vídeo é de Junho e o inquérito e esta forte indignação são apenas de agora, Setembro, depois da Segurança Social ter ido visitar o Lar no seguimento de denúncia com base no vídeo, de cuja existência a SCM não tinha conhecimento. Dá a impressão de que, em  Junho, a SCM limpou as mãos do assunto. Que medidas tomo? Despediu as funcionárias da limpeza? Os ajudantes de lar? A morte era um assunto encerrado e a vida tinha de seguir o seu trilho: não houve inquérito, quando muito um raspanete. As pessoas que estão a trabalhar na SCM são as obreiras, como as formigas, mas, tal como no formigueiro, fazem parte de uma cadeia de autoridade. O braço de cuidados não começa e acaba na mão que não apanhou a almofada e os lençóis do chão, ou no par de olhos que devia ter visto o carreiro de formigas e não viu, ou em quem deixa o chão e roupa mal higienizados. Os cuidados devidos num serviço deste tipo estão inscritos numa cadeia de subordinação e, desde logo, a SCM devia ter assumido a responsabilidade da falha, seja qual for a explicação. 

A instituição quer agora recuperar a imagem e o bom nome que o vídeo tornado público e afirmações, que reputa de insultuosas, colocam em causa: anuncia também uma queixa-crime contra quem divulgou o vídeo, uma funcionária, julgo. Mas as palavras dispensavam-se, as imagens de uma pessoa idosa e quase moribunda a ser alimento de formigas numa instituição que tinha por incumbência cuidar dela, já são, por si só, um insulto que baste, um insulto à decência devida a qualquer ser humano impotente. Se esta mulher é utente, é porque contribui com a sua reforma, ou contribui a família, e contribui o Estado, ou seja, nós. Portanto, também temos o dever de estar atentos e de exigir um mínimo, ou, no mínimo, refletir, questionar. Filmar e divulgar pode não ser legal, mas actualmente é a forma, umas vezes fácil, outras, o último recurso, de lançar questões. É sabido que a maioria ignora o que a lei estipula acerca da tomada de imagens e divulgação nas redes, e que fica chocada quando se diz que é crime fazê-lo. Sim, é crime, mas a pessoa em questão, agravado o seu gesto por ser funcionária,  talvez não tenha agido de má-fé ao filmar e divulgar as imagens, como a SCM defende. Talvez tenha sido a forma que arranjou de nos mostrar que algo vai mal neste modelo. De facto, a institucionalização como norma geral, a consideração do lar como solução para todos, está  ultrapassada. É preciso criar um novo modelo ou adaptar o antigo aos idosos do nosso tempo e às suas necessidades. E é também preciso renovar a perspectiva sobre o idoso, o fardo.

É frequente ler que as  Misericórdias se queixam de que o dinheiro é curto, diz-se que financiam a estadia de utentes  com poucos rendimentos ou nenhuns com outros que possuem reformas mais elevadas, que, inclusivamente, passam à frente nas listas. Queixam-se que o Estado não sobe o valor das comparticipações e que têm de delapidar o seu património. Queixam-se que é difícil recrutar pessoal. Queixam-se de que os familiares não cumprem com os pagamentos, queixam-se de que abandonam os idosos no seu colo. Os trabalhadores, os ajudantes de lar, entre outros, queixam-se dos baixos salários, queixam-se de não serem valorizados nem profissionalmente nem em termos de remuneração. Enfim, é muita queixa num serviço sensível em virtude do perfil de muitos dos seus utentes que além de idosos, podem ser portadores de doenças crónicas, dificuldades de mobilidade e demências. 

A negociata em torno da "assistência a idosos", em especial para os que não podem pagar 1460 euros, ou mais,  para estar numa residência sénior,  parece-me pouco eficaz e pouco transparente e apenas tolerada porque ainda não houve coragem de exigir melhor, ou porque há uma acomodação generalizada em torno deste modelo. As SCM insistem que a solidariedade não é um emprego, é uma missão, mas talvez aqui resida o equívoco. A complexidade deste serviço não pode funcionar com base no espírito solidário. Não é com “espírito de serviço e de missão” que se garante o melhor. Estas palavras são habituais na boca destes responsáveis para justificar o impossível, a boa vontade e as boas intenções. Ficam lindamente em discurso e no papel mas na realidade representam sacrifício, improviso, desgaste. O que é mesmo crucial é o profissionalismo rigoroso, sinónimo de adequado investimento material e também no capital humano da instituição, que devia ser bem recrutado, bem formado, bem recompensado pelo serviço que presta. O pessoal não devia trabalhar em serviço assistencial por necessidade mas por opção, devia poder falar abertamente da dureza emocional e física do seu trabalho, e do orgulho com que o faz, todos os dias, preservando, claro, a identidade dos utentes e informação sensível das instituições, ser valorizado pois estas pessoas prestam serviços essenciais, não fazem caridade, não dão uma esmola, não andam ali por amor à camisola. Andar a chorar comparticipações do Estado e a temer o futuro a cada subida do custo de vida só pode ter impactos negativos na qualidade da entrega diária dos funcionários e na prestação dos serviços aos utentes. Por outro lado, não sei como se poderia fiscalizar a ausência de escrúpulos de tantos que abrem lares, ou que dirigem lares, e que atentam contra pessoas vulneráveis das mais diversas formas. 

Mas se não é uma sentença de um tribunal que vai limpar esta imagem da cabeça de muita gente, já a necessidade de encontrar um lugar de acolhimento para idosos enfermos, ou apenas fragilizados, irá fazer com que, acredito, o episódio acabe por ser considerado um caso fortuito, - que o pode ter sido - sem grandes consequências para a instituição, e relegadas para segundo plano as questões que suscita, o da revisão destes modelos assistenciais, preocupante, pertinente, urgente, que me fizeram lembrar as também frequentes notícias sobre lares ilegais. Nestas instalações procuradas pelos preços baixos que praticam, é que nos habituámos a ler que não há nem pessoal com formação nem equipamentos adequados, nem supervisionamento, nem condições de bem-estar, sendo até frequentes as denúncias de abusos. Temo que as irregularidades sejam bem mais comuns do que aquilo que se imagina, sejam os lares uma obra das Misericórdias, comparticipados pelo Estado, ilegais ou até de luxo. É uma vergonha, e é também uma vergonha que não haja uma fiscalização exemplar das condições em que a assistência aos idosos se processa. A "terceira idade", isto é a população envelhecida, foi, há uns anos, reduzida a uma doença contagiosa -  "a nossa pátria foi contaminada com a já conhecida peste grisalha", - num artigo de jornal, por um individuo com responsabilidades políticas, que, em sua defesa, disse que não tinha inventado a expressão. 

Foi notícia no início deste ano que a Segurança Social identificou mais de mil lares ilegais nos últimos dois anos. Notificou 186 estruturas para encerrar e fechou coercivamente outras 48, uma média de dois lares ilegais fechados por mês desde 2020. Ora, no meu entender estes números são uma vergonha. O presidente da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS), adiantou (à LUSA) que o elevado número de lares ilegais poderá estar relacionado com a desproporção entre oferta e procura e listas de espera muito grandes nas IPSS e Misericórdias que não deixam alternativa. De acordo com o Instituto da Segurança Social, "um encerramento tem, em regra, subjacente a verificação de condições de funcionamento muito deficientes que impliquem diretamente com os padrões mínimos de qualidade aceitáveis. As razões mais frequentes para notificação de encerramento são casos de inexistência de licença de funcionamento, insuficiência de recursos humanos, quer em número quer em qualificações; deficiências graves nas instalações, cuidados de higiene e conforto inadequados, deficiências e/ou insuficiência na alimentação, ausência de certificado de vistoria higieno-sanitária, e ausência do certificado de condições de segurança ou inexistência de detetores de incêndio.

Os Censos 2021 revelaram um aumento expressivo da população idosa e um decréscimo da população jovem em Portugal. Espaços de convívio inter-geracional e ocupação de idosos, o seu acolhimento e o apoio domiciliário, a prestação de cuidados continuados, os cuidados de saúde mental, a adequação desta intervenção a um novo perfil de utente, entre outras importantes questões,  deviam ser uma prioridade nas discussões, nos planos e nas acções de muitos, não apenas do Governo, mas também da sociedade civil. 

Que as polémicas imagens fossem aproveitadas para relançar uma reflexão alargada motivadora de reivindicações de mudança, de visão de futuro, também é ambicionar demais. E assim, passada a minha e vossa indignação, as formigas continuarão à espreita da próxima oportunidade para nos desassossegar e fazer pensar na miséria que é envelhecer sem dignidade. Elas são muito mais eficazes no seu espírito de serviço e na sua missão do que muitos de nós.

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