Para entender o fenómeno Anitta, e o funk, leiam este texto de Bernardo Oliveira
Ainda discriminado, o funk é onipresente no espírito carioca.
“...tudo lá no morro é diferente/
daquela gente não se pode duvidar/
começando pelo samba quente
que até um inocente sabe o que é sambar...”
(“Linguagem do Morro”, Padeirinho da Mangueira e Ferreira dos Santos)
A arte contra cultura, a cultura contra a arte
Substituindo a palavra samba pela palavra funk, o trecho acima permaneceria tal e qual. Foi retirado de um samba dos anos 60, gravado pelo mangueirense Jamelão, e destaca dois aspectos da relação morro-asfalto no Rio de Janeiro que vigoravam bem antes daquela época. O primeiro é uma declaração de distinção: “tudo lá no morro é diferente”. Produto do descalabro do estado brasileiro, as favelas constituem, como na maioria dos redutos afro-descendentes da América, uma espécie de estado paralelo, com leis e dinâmicas próprias, reduto de grande miséria, mas também de grande força criativa. O segundo aspecto, decorrente do primeiro e leitimotiv da composição, é a “linguagem” do morro.
Além da música prodigiosa, durante muitos anos vinculada ao
samba e ao jongo, o morro criou um dialeto próprio, com o qual o morador se comunicava, evitando ser compreendido pelos “meganhas” e pelo povo do asfalto. Como os policiais do 8º Distrito de Polícia do Estácio, que há cerca de 70 anos prendiam sambistas por vadiagem e apologia do jogo e da malandragem, os funkeiros de hoje são incriminados por apologia ao crime e às drogas. Da mesma forma como sua arte era considerada já naquela época menor e inculta, o funk foi tratado como forma artística bárbara e primitiva. Marginalizados e combatidos pelo moralismo do poder público, samba e funk compartilham do mesmo poder: ora deleitam, ora ameaçam, e, não raro, produzem ambos os efeitos, simultaneamente.
A despeito de uma substancial melhora na qualidade de vida do brasileiro em geral, a favela permanece como um local pródigo em efeitos ambíguos. Mesmo assimilado pela imensa maioria da população, e até mesmo overseas, o funk ainda enfrenta o preconceito. Neste sentido, vale lembrar uma frase muito citada, mas ainda assim bastante significativa, proferida por Jean-Luc Godard: “cultura é regra, arte é exceção”. Isto é, a arte prejudicaria a cultura, sendo, no entanto, a única instância capaz de legitimá-la. A virulência do discurso artístico, manifestação radical da insociabilidade, operaria como motor da criação e da renovação, embaralhando os códigos vigentes e o poder estabelecido, esgarçando o tecido social com suas descomposturas.
A frase me veio à cabeça em meados de Dezembro passado, quando assisti às imagens do cerco policial aos irmãos MCs, Ticão e Frank, por associação ao tráfico de drogas. Me flagrei novamente desconcertado diante da relação paradoxal entre a arte e a cultura e, mais especificamente, entre o funk nascido nas comunidades e a chamada “sociedade carioca”. Mas neste caso, mesmo a distinção entre cultura e arte se dá de forma complexa, muito embora se possa começar admitindo uma verdade insofismável, contida em um dos funks mais “bombados” da última década: “é som de preto e favelado, mas quando toca ninguém fica parado” (“Som de preto”, de Amilckar e Chocolate).
Em todos os extratos sociais, o funk prossegue firme e forte, causando prazer e incômodo, alegria e dor. Do ponto de vista da fruição e do prazer, desconhece classe, cor e credo. No entanto, a última década marcou um novo patamar no seu estatuto e influência sobre a cultura brasileira: o funk se tornou onipresente, absoluto. De alto a baixo, só se fala do funk, só se toca o funk, tanto nos bailes realizados nas favelas, como também nas boates da Zona Sul, sem discriminação. E ai! do DJ por estas terras que não se curvar a sua majestade! Corre o risco de ser varrido do mapa, o que nos coloca no centro de um estranho paradoxo. Ao mesmo tempo, o funk ainda demarca profundas diferenças sócio-culturais na sociedade brasileira, particularmente a carioca. Os bailes funk que acontecem dentro das comunidades ainda são repreendidos pelas autoridades, enquanto o impacto do preconceito social, tanto no show business, como na sociedade, definem em parte o seu estatuto.
Que estranho elemento responde pela qualidade ambígua do funk, que desperta, simultaneamente, a desconfiança e o prazer? “Todo mundo diz a regra”, prossegue Godard, “mas a arte nunca é dita, é escrita, pintada, filmada, vivida...” Existiria, então, para além da arte como técnica, uma arte de viver. Talvez resida ai a diferença do funk. É evidente que a arte restrita aos museus e aos padrões seguros do show business não possui o conteúdo arriscado de uma manifestação como o funk. Quando o perigo da arte se mistura ao perigo da vida nas ruas, é justamente neste caso que a música propriamente dita invade o desejo e as aspirações, corrompe, inebria, desestabiliza e abre caminho para o novo, tal como Platão preconizou há mais de dois mil anos.
Sim, Platão, como Godard, considerava que a arte prejudica a estabilidade da cultura, embora as conclusões não sejam as mesmas. E com Platão e Godard, concorda também a delegada que efetuou a prisão, Ellen Sardemberg, que alega participação direta dos Mcs no tráfico de drogas, utilizando a música para estimular os jovens da comunidade a engrossar as fileiras do tráfico. Na mesma operação policial foram presos MC Smith, autor de faixas como “Blindado não intimida” e “Vida Bandida”, MC Max e MC Galo. Na esteira das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) comandadas pelo governador Sérgio Cabral e o Secretário de Segurança José Mariano Beltrame, os bailes funks realizados nas comunidades vem sendo alvos constantes da polícia, ao contrário dos bailes do asfalto, cada vez mais glamourizados por um público eminentemente branco e morador da zona sul carioca. Porém, não foi a primeira vez, nem será a última que os embates entre o funk e as autoridades marcaram o noticiário policial.
Em 2006, o MC Colibri, autor de “Quer Bolete?”, foi preso pelo mesmo motivo, e volta e meia chegam notícias de represálias, licenças canceladas e proibições arbitrárias que ao longo de mais de vinte anos definiram as estratégias de produção e escoamento do funk. No caso espécífico dos Mcs envolvidos nas prisões, a produção se valia da combinação de internet com sistemas de rádio clandestinos para divulgar as músicas em escala semi-industrial, configurando um forma no mínimo prodigiosa de “mercado interno”. Enquanto isso, os outros funks, os “legalizados” tocam sem parar nas diversas quebradas do Rio de Janeiro, de alto a baixo na escala social carioca. A despeito de sua onipresença na cultura carioca, o funk que relata o cotidiano e os códigos da favela – descrevendo ou aludindo ao modo de vida, as mazelas ou mesmo ao crime – é repreendido, enquanto a sua apropriação pela classe média é respeitada como “elemento cultural” e fonte de diversão.
Quando o funk permanece inscrito nos códigos vigentes da sociedade do “asfalto”, contido por uma estrutura mercadológica e geopolítica que o ampara, é aceito e cantado aos quatro ventos. Porém, quando atrelado à linguagem e aos hábitos do “morro”, sua repercussão se inscreve no território difuso das mais profundas contradições da sociedade brasileira, que possui uma dinâmica própria com relação a comportamento, hábitos e até mesmo no que diz respeito a fruição estética e cultura de festa. Não só a história do samba ilumina a história do funk, como também a história da relação entre criminalidade e arte característica dos guetos: o que seria do blues, do jazz, do funk, de James Brown e de Fela Kuti se a lei vigente os tivesse impedido de prosseguir?
Popozudas e o “proibidão”
Nos idos dos anos 80, dois elementos principais norteavam o funk e seus domínios: a paródia e a denúncia social. Equipes de som (sound systems) mais conhecidas, como a Furacão 2000 (do renomado DJ Marlboro) e a Pipo’s, investiram nesses segmentos, cavando pouco a pouco o espaço do funk no mercado e no coração dos brasileiros. Além dos raps, as equipes também desenvolviam as chamadas montagens, uma forma de funk instrumental que joga com os samplers e a mesa de som – uma espécie de dub, mal comparando. Com o tempo, outros temas e formatos ganharam espaço, sobretudo o erotismo, o relato social e, muitas vezes, o apelo pacifista em vistas de sanear a imagem do gênero, supostamente manchada pela violência que vigorava nos bailes da década de 80 e 90. Na última década, restou a paródia, fortalecida pela habilidade de MC Catra em modificar clássicos da vetusta MPB (Música Popular Brasileira) - como “Tarde em Itapoã”, de autoria do principal letrista da bossa nova, Vinicius de Moraes, com seu pupilo Toquinho, transformada na hilária “Mamada de manhã”.
Hoje preponderam o funks com temas explicitamente sexuais ou relativos ao tráfico de drogas. Durante os últimos 10 anos, a ala sexual foi reforçada por nomes como Daise Tigrona e Tati Quebra-Barraco, ambas representantes de um posicionamento sexual feminino despojado dos limites impostos pelo machismo latino americano, mas esta linhagem foi perdendo espaço para os bondes femininos, formado por “popozudas”, mulheres esculturais que dançam de forma insinuante, como a Gaiola das Popozudas, ou as dançarinas batizadas com nomes de fruta (mulher-melancia), plantas (mulher-samambaia) ou carne mesmo – a celebérrima Mulher Filé, descoberta por Catra. Após a dança hipnótica, geralmente conduzida pelo MC, as próprias bailarinas se arriscam no microfone com suas roupas sumárias e voz agudíssima, atestando um certo esvaziamento político do funk em função do mercado. Entram nessa conta também os bondes masculinos, inaugurados comercialmente no início da década pelo Bonde do Tigrão e representando hoje pelos Hawaianos e os Caçadores.
Há alguns anos, o rótulo “proibidão” circunscrevia o funk erótico e o funk apologético ao tráfico de drogas, mas devido à massificação do primeiro, o rótulo hoje descreve as peculiaridades do segundo. E, no entanto, esta modalidade, perseguida pela referências explícitas de apoio ao tráfico de drogas, concentra hoje o que há de mais interessante e poderoso, musicalmente falando, em termos de funk carioca. Basta uma olhadela nos links acima, referentes aos Mcs acusados, para perceber que a força criativa do funk está reservada aos chamados proibidões. Sua composição é básica. Não se trata mais do DJ com seus vinis, emulando os ritmos e práticas norte-americanas, mas do operador de apetrechos eletrônicos, como o MPC, se esmerando em produzir uma verdadeira batucada digital. Sobre esse aspecto, vale notar que o funk carioca mudou muito, sobretudo no que diz respeito à relação com seu gênero matriz, o Miami Bass.
Desde o início da década passada, o gênero vem se distanciando consideravelmente do Miami, substituindo-o pelo “tamborzão”, batida influenciada pela levada dos atabaques, comum nos pontos de candomblé. Há quem credite a criação do “tamborzão” ao DJ Luciano Oliveira, mas trata-se de um dado controverso. O fato é que os “proibidões” se apropriaram dessa batida contagiante, retiraram todos os excessos harmônicos (melodias, samplers, etc) e sobre esta trama percussiva extremamente despojada de floreios, cantam o cotidiano violento da favela com flow matador. Presenciar um baile “proibidão” corresponde a uma experiência fulminante, tanto pelo valor simbólico da cerimônia, quanto pela força estética do acontecimento.
Simbolicamente, exprime profundos antagonismos do “Hell de Janeiro”, a existência de um poder paralelo que nos separa. Mas, como arte, o funk “proibidão” não escolhe público e domina até mesmo o crítico mais empedernido, demonstrando uma evidente capacidade de promover a tão desejada permeabilidade social que nem o samba possui nos dias de hoje. Às antípodas dos temas bucólicos e românticos do samba, as letras dos “proibidões” apavoram aqueles que não moram lá: “Nossa vida é uma guerra / Nossa morte é uma certeza / Não é só tirar marola/Nem acumular riqueza / Dia-a-dia é ‘nós’ na luta portando fuzil, A-K / Pra nenhum filha da puta / Vim aqui esculachar.” (“Morrer como homem é o prêmio da guerra”, MC Smith).
Não esqueçamos de contar também com a ala saudosista, que prega o retorno aos temas e batidas dos primórdios do funk, através de festas como Eu Amo Baile Funk, que acontece em locais acessíveis à classe média como o tradicional Circo Voador, na Lapa, ou na elitizada Carioca Funk Clube, comandada pelo renomado DJ Sany Pitbull. Na mesma linhagem, a Velha Guarda do Funk, fundada em 2004, reaqueceu hits de quinze anos atrás, com apresentações convincentes de artistas como Amaro (que fazia dupla com o falecido MC Suel), Duda do Borel (que com William gravou um dos funks mais famosos de todos os tempos, o “Rap do Borel”), Pixote, Coiote e Raposão, entre outros. Uma outra vertente, minoritária, inclui releituras nos âmbitos mais diversos, desde o sertanejo universitário (a verdadeira “folktrônica” brasileira) até o Axé Music (a versão comercial da batucada baiana), destacando-se os esforços em levar o funk do
Rio de Janeiro para outros estados do Brasil, como São Paulo e Brasília. Até mesmo no exterior, o funk se destacou na última década, retrabalhado pela turma da Mad Decent (Diplo, principalmente), pelo hip-hop de Baltimore (Spank Rock e afins) e com os hibridismo de M.I.A., que contou com a MC Deise Tigrona em seu show no Rio de Janeiro, em 2007.
Mas nem tudo é previsível na atualidade do funk carioca. Nem mesmo o modo de apropriação, nem mesmo as questões geográficas. Hoje o funk possui representantes nos quatro cantos do país, estimulando as mais diversas inflexões. No rol das apropriações anômalas, podemos destacar dois exemplares que demonstram seu poder de comunicação, semelhantes na forma de expressão, mas antagônicos em seu conteúdo. O proto-fascista Bonde da Stronda, formado por jovens de classe média alta que, semelhantes aos Mcs ligados ao “proibidão”, “contam a realidade que vivem no seu dia-a-dia, expressando seus sentimentos através de suas músicas”. O resultado, como não poderia deixar de ser, são pérolas de homofobia, como o trecho a seguir: “as loucuras rolando direto dia após dia / homem com mulher, mulher com mulher, sem pederastia.” E o Sapabonde, formado por brasilienses assumidamente lésbicas, que, à moda dos funks eróticos, cantam seus gostos e suas práticas sexuais. Reacionário ou progressista, o funk é meio de comunicação dos mais diretos e objetivos disponíveis na praça.
A corrosão da conformidade...
O lendário urbano carioca está repleto de historietas, como a que descreverei a seguir. Matrimônio na alta roda, com direito à beca e pompa. O DJ está proibido de tocar funk, mas devido à pressão dos convidados, obtém a permissão da dona da festa para que comece o “baile”. Quinze minutos depois, todos, inclusive a noiva e sua mãe, que requisitaram a proibição, estavam rebolando e “descendo até o chão”, como manda o figurino. Por que a proibição? E por que sua suspensão súbita, em meio à alegria da
festa? Bem, a proibição veio da desigualdade social, do preconceito racial, da imagem equivocada que a tevê sempre formou da favela e que ecoa nas mentes e nos corações da classe média. Já a suspensão da proibição se deu por conta do ritmo contagiante, da descontração, do bom humor que tomou de assalto as mesmas mentes e corações. O que definiria esta habilidade particular do funk de ser amado e odiado, desconhecendo credo, raça, orientação política, etc? O que o habilita a criar um laço cultural extremamente complicado entre classes sociais diferentes em um país patrimonialista como o Brasil?
A arte é uma manifestação perigosa, cujo perigo varia conforme o contexto que a circunda. Seu perigo está no fato de que penetra na sensibilidade ocasionando tranformações imprevisíveis. Verdadeiro atestado de não-conformidade emitido pelos excluídos, o funk é uma arte arrebatadora cujo grande trunfo não é o tráfico de drogas, as armas ou o sexo, mas a promessa de que um dia a “cidade partida” se tornará uma só, reunida sob o signo da dança, da festa e da alegria.
Bernardo Oliveira, Fact Magazine, 2011
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