Catarina Gouveia: uma fotografia feita com amor




Nada como uma doença para colocar a nossa afobada vida em pausa. Pelo Facebook ainda providenciei uma vaga explicação sobre o facto de estar tão silenciosa. Havia quem interpretasse como desprezo. Mas não, não era nada pessoal, era apenas a vida, um pouco cheia, um pouco complicada. Agora, doente, sem energia para nada, aproveitei para ler as cusquices do momento. Uma das que rendeu foi uma certa fotografia que uma Catarina Gouveia publicou no seu Instagram. Vi a foto no telemóvel e pensava que era alguém a fazer publicidade a depilação definitiva! Ou talvez a produtos solares pois o verão vem já a caminho. Em primeiro plano um par de longas pernas exibia-se. Reparei melhor e lá percebi que o casal apresentava o seu rebento ao mundo, muito enroscado, minúsculo, entalado entre o peito e os braços da mãe. A cama era, vi depois, era uma cama de hospital. O que saltava à vista não era o recém-nascido, era o majestoso par de pernas da mãe, maiores que as dos gafanhotos, bem tonificadas e bronzeadas. Sim, eu vi a foto e segui viagem, dedilhando o telemóvel uma e outra vez.

No dia seguinte a foto continuou a aparecer no meu feed e de repente apercebi-me de que tinha despoletado mais uma polémica daquelas que não levam a nada a não ser a demonstrações de incivilidade. Gente anónima e celebridades faziam ora a defesa ora a condenação da foto onde a tal Catarina Gouveia anunciava que tinha sido mãe. Mulheres e homens de barba rija trocavam argumentos online por causa de uma fotografia que, no seu entender, devia ter sido assim mas foi assado. Caramba. A mulher devia ser importante, pensei eu! Mais umas voltas pelo Facebook e leio um "Postal" do Luis Osório sobre a mesma fotografia que por esta ocasião já atraía mais olhares que as da World Press Photo! Para o jornalista - escritor, não era uma foto feliz. Escrevia ele sobre quem era a Catarina. Aproveitei para me informar. Uma influenciadora, uma mulher de sucesso, segundo os padrões da actualidade. Mas, atenção, de certa actualidade, talvez a mediática. Ele referia a multidão de seguidores no Instagram, os negócios que ela fecha com muitas empresas que pagam pela sua imagem. Entendi. A Catarina é um veículo que as empresas usam para vender, ela dá a cara e o corpo por esses produtos, instrumentos usados para convencer também os influenciáveis de que as empresas patrocinadoras se preocupam mais com o planeta do que com o lucro. A Catarina apela a comportamentos mais saudáveis e ecológicos da nossa parte - como comer menos carne ou usar menos plástico. Luis Osório diz que queremos segui-la, imitá-la, para estar à altura das suas convições e da sua missão.

É provável que a Catarina se mova em cenários decorados e vista peças de luxo de guarda-roupas selecionados e use acessórios de forma muito pouco espontânea. Há muito que deve ter negociado parte da sua autoridade, contrapartidas, conjugado prazer com obrigação comercial. Porque uma influenciadora não é senão um instrumento. O seu estilo de vida, que é a sua moeda de troca, conferiu-lhe um estatuto público. Se não agir de certa forma, se não estiver à altura desse estatuto, será duplamente penalizada: primeiro, pela sua audiência, depois pelas marcas que procurarão outra influenciadora mais alinhada com os seus planos de comunicação. E a competição é forte.

A Catarina escreveu um livro. "Quando nos diz o que devemos comer nós acreditamos – como não acreditar quando a vemos?", pergunta um Luis Osório que eu gostaria, à medida que leio o "Postal", que fosse talvez um pouco mais irónico e menos seduzido pela beleza inquestionável da Catarina. Pois eu pergunto-me antes como acreditar. Quem é a Catarina para me dizer o que devo comer? É jovem e tem bom aspecto? Muitos seguidores? Isso chega para legitimar o que diz? Ela é nutricionista? Pois é, sou desconfiada por natureza. Além disso, levo uma existência que o Luis e a Catarina talvez reputassem de remediada, ou mesmo triste, num mundo imperfeito, desarrumado e indigno de qualquer Instagram. Nem sei como é que se pode viver assim, e até ser feliz, longe das influências de Catarinas, fazendo render as tradicionais receitas da Mª de Lurdes Modesto - modificadas "à minha moda" - e tendo presente a velha roda dos alimentos! Serei talvez anormalmente imune à sua beleza? Ou invejosa do seu sucesso e da felicidade que irradia em cada pixel da sua pele? Serei eu uma aberração do nosso tempo? Ou mesmo ingrata? Não, nada disso. Reconheço que a vida lhe está a correr bem. Mas, além de sermos as duas mulheres, o que temos em comum? Que aspirações comungamos? Que interesses partilhamos? Não seria feliz na sua pele. Tenho a certeza. Existem vidas que invejo, sim, mas não a dela. Nem o seu estatuto. E posso dizer, com toda a minha rude honestidade, que as opiniões da Catarina me importam tanto quanto a foto que tirou: nada.

Sei perfeitamente como o marketing de influência funciona. Ele podia mesmo ser personalizado na esbelta figura desta mulher sorridente, uma deusa bem feminina capaz de lançar habilmente as unhas às nossas emoções e desejos mais primários para nos convencer de qualquer coisa. As influenciadoras são um produto do domínio que as redes sociais impuseram quotidianamente e, pior, da nossa submissão acrítica a esse modo de vida sempre conectado e virtual. Quem souber mover-se nesse nível será rainha, alcançará sucesso, seja ele qual for, seja pouco ou muito o seu talento, a sua habilidade, a sua ideia, projecto, não duvidem disso. As influenciadoras dominam a comunicação e a cultura na internet, dominam o entretenimento na internet e por mais que nos pareçam criaturas vazias ou fúteis, ou artificiais, estão a conseguir levar a água ao seu moinho com uma precisão robótica. A Catarina domina as tendências, aprendeu a comunicar com o seu público, sabe explorar essa ligação. Não esquecer. É o publico, talvez pouco exigente, conformado ou demasiado sonhador, ou, quem sabe, alienado pela vida moderna, que cria estas personas. Existem algumas influenciadoras que alavancam o seu sucesso na sua boa aparência, bem podia ser o caso desta mulher com as suas longas pernas torneadas, os seus cabelos volumosos e sorriso encantador. A sua base de fãs é o que lhe dá poder. A forma como a influenciadora pode accionar essa base gera dividendos que as empresas, ou ela mesma, podem explorar. Cresci sem influenciadoras mas antes da sua aura de influência não havia um vazio. Tive" as estrelas", que, basicamente, possuíam atributos muito semelhantes. Viessem de onde viessem, do cinema, da música, da radio, do espetáculo, da TV, do desporto, eram aproveitadas pelas marcas. Mas as "estrelas" eram raras e funcionaram num tempo e num quadro tecnológico espartilhado. Hoje a comunicação é muito mais ágil, versátil, omnipresente e instantânea. As influenciadoras estão no nosso bolso podemos interagir com elas enquanto dedilhamos um telemóvel. Mas um pequeno império de seguidores que demorou a ser construído, pode ser facilmente demolido quando a influenciadora dá um passo em falso. Os seguidores não perdoam uma opinião, um comportamento, ou uma foto menos perfeita de uma influenciadora. E, pior, não sabem ser gentis ou sequer educados porque as redes sociais acabaram com o respeito mínimo garantido que uma televisão, uma rádio, ou mesmo a imprensa, mediavam.

Depois de escrever de forma babada sobre a Catarina, o Luis desfere o golpe de misericórdia proclamando que a deusa errou, cometeu um erro de percepção. O momento devia transparecer autenticidade - leia-se "sofrimento" ou "cansaço", enfim, "marcas" do transe do parto - e não, nada disso. É um "postal" que cheira bem, que cheira a "salon de beauté", isto ele não disse, digo eu. Depois diz que lhe teceram comentários inclementes, indignos, injustos. Que as mulheres vão perceber que a fotografia é falsa e que se uma é, todas serão. Ora, o Luis Osório, que é jornalista, ou foi, que entenda que autenticidade é qualidade exigida no reino do jornalismo, não no do Instagram. O reino do Instagram é o lugar das aparências, ainda que "aparência" não deva ali ser entendida como "falsidade". Será que o cenário de um filme é uma falsidade? No contexto daquela história que vemos desenrolar-se aos nossos olhos, aquele cenário é tão real quanto o dinheiro pode pagar. A produção cuidou que a aparência fosse a melhor e mais adequada para se contar uma certa história. A Catarina fez o mesmo. Contou a história da sua maternidade bem sucedida da forma mais convincente que pode, aliás, como sempre faz. Se houve dor? Sangue? Choro? Claro. Mas também houve beleza, felicidade, sucesso. Ela escolheu. Deveríamos esperar outra coisa de uma influenciadora? Não. Ou achará o Luis que quando a Catarina posta sobre o seu despertar, por exemplo, uma foto tirada nas Maldivas, a beber o seu suco desintoxicante matinal, ela acordou radiosa, sem remelas, sem mau hálito, e com o cabelo ondulante em cascata, bem penteado? E que não houve caos, desarrumação, hesitações no guarda-roupa, cascas de fruta, sementes e espingalhos por toda a banca de cozinha?

Catarina Gouveia veio depois justificar-se aos fãs, dizendo lamentar o tumulto que a sua foto causou. Adiantou também que a qualidade da imagem se ficou a dever à máquina que foi usada. E a pose? A pose também se ficou a dever à qualidade da máquina. (!!!) Queixou-se de estar dias sem poder entrar na sua casinha digital, o seu Instagram transformou-se num campo de batalha, onde mulheres se batiam entre si, (verbalmente, claro) se agrediam e a agrediam. As pessoas não praticam o respeito pelos outros. Nunca ela quis sobrevalorizar-se ou subestimar as outras mulheres ao fotografar a experiência avassaladora do seu parto! Ela apenas deu voz a uma experiência muito positiva, a foto foi apenas mal interpretada: "Eu não tenho a obrigatoriedade de representar outras mulheres numa fotografia em que comunico o nascimento da minha filha. Só tenho que representar-me a mim e aquilo que foi para mim o momento", disse ela.

Pelo Google, soube que a Catarina talvez tenha começado a sua carreira nos Morangos com açucar. É actriz de novelas. Entrou em alguns filmes. Apresenta um programa na CM TV. Ficou conhecida por preferir produtos biológicos, ter cuidados alimentares, respeitar uma rotina de treinos físicos regulares. Mudou a sua vida para melhorar a pele: queria evitar ter borbulhas que ganhou quando foi morar sozinha, nos tempos da faculdade, e comia fast food. A coisa era de tal ordem que nem a maquilhagem cobria e ela a precisar de filmar uma novela! Agora a Catarina é uma trintona com pele de bebé que vai para as ilhas Seychelles festejar o aniversário, ou que foge para as praias do Brasil quando faz frio em Portugal,  onde faz fotos a beber água de coco, que tem um apartamento em Lisboa, uma casa de praia em Tróia. Casou num hotel de luxo, no Algarve, teve uma lua de mel nas Maldivas...O marido, empresário, não gosta de expor a sua vida nas redes, que se mantenha assim sóbrio por muitos anos é o que lhe desejo. As páginas "cor-de-rosa" andam em cima de tudo o que faz e diz. Publicariam fotografias dos seus enjoos de grávida, se ela os tivesse tido, não sei se teve...e etc.

Ao que li, acusaram-na de transmitir uma fantasia, um parto irreal. Dizem as acusadoras - e os acusadores - que as mulheres se vão sentir muito mal quando estiverem na maternidade em virtude desta foto.  Que a realidade do parto é feia. A sério? Mas que tipo de mulheres é que vão estar em trabalho de parto a pensar na fotografia da Catarina Gouveia? Na sua experiência? Mas que mulher é que não tem mais em que pensar nesse momento? Dizem que a maior parte das mulheres não tem a experiência boa de ter um parto maravilhoso. Eu digo é que a maioria das mulheres não tem é uma conta de Instagram onde ganhar dinheiro a postar fotos bem retocadas e estudadas do seu estilo de vida. Parem lá um minuto para pensar. A maioria das mulheres não tem nem uma pequena parte da experiencia boa de ter a vida da Catarina Gouveia, mesmo se o que ela tem pode ser muito bom ou pouco consoante aquilo que uma mulher se deseje nesta vida, claro.

A  Catarina também não teve uma preparação para o parto semelhante à da maioria das mulheres: fez meditação, massagens, fisioterapia, tudo com o objectivo de ter o melhor parto possível. Foi relatando o seu dia a dia para uma revista de saúde feminina, recebendo uns trocos por isso, certamente. Talvez tenha feito suplementação, talvez tenha seguido uma dieta especial, talvez até já esteja a pensar em mais um livro baseado na sua experiência: "Comer com mais amor na gravidez". Para a maioria das mulheres, estes trâmites não passam, igualmente, de uma fantasia: a sua realidade pré-natal, por mais bonita que seja, é muito menos cuidada. Umas porque não querem, outras porque a vida não lho permite. Várias amigas minhas trabalharam até quase à véspera do parto, cumprindo um horário de trabalho normal, sentando-se ao volante diariamente para chegar à empresa, e tudo isso sem descurar a sua vida familiar. Algumas delas ocupam, hoje, lugares destacados, até na esfera pública. A sua vida também não lhes correu nada mal, mas nem duvido que alguns sacrifícios foram feitos. A última coisa que lhes passava pela cabeça era fotografar a barriguinha colocá-la na internet.

Se a Catarina comunicou uma fantasia em relação ao parto, que a maioria das mulheres não vive, e se vida dela é uma com a qual a maioria apenas pode fantasiar, e não viver, porque é que tantas pessoas a seguem? Não será porque a maioria gosta daquilo que ela mostra? A perfeição? A fantasia? O sonho? O que eu vi, a foto polémica, mas indubitavelmente feita com amor, tirada dois dias depois do parto, era, afinal, apenas a Catarina a ser a Catarina Gouveia, uma influenciadora de sucesso. Desçam à terra, por favor! A importância que essa foto tem apenas depende da atenção que lhe quisermos dar. É muito drama e pouca uva.




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