Cinema: In the Heights, um filme de Jon M.Chu, repleto de fé



A América do Sul tem vários países de língua espanhola e um país de língua portuguesa, o Brasil. O espanhol é o idioma mais falado no continente, o português, o segundo. Na República Dominicana, fala-se espanhol. Em Cuba, também país do mar do Caribe, o espanhol, em Porto Rico, outra ilha caribenha, integrada no território dos EUA, também, no México, país entalado entre estes e a América Central, idem. Em alguns destes países, outras línguas nativas são reconhecidas. São estas as nacionalidades em foco no filme In The Heights. Graças a alguma semelhança entre a nossa língua e o espanhol, podemos ver In the Heights e talvez apreciar melhor o seu colorido linguístico que outros falantes. As línguas tanto servem para nos unir, para estabelecer pontes, como para erguer barreiras entre os povos. 

Porque existem semelhanças, os falantes de português podem encontrar curiosas diferenças. Quando Lin-Miranda - que cresceu em Washington Heights e se inspirou na sua vivência para criar o espectáculo da Brodway- surge no filme na pele de um piraguero, a empurrar um carrinho de madeira pela rua, apregoando piragua, gelados feitos de raspas de gelo, moldados em pinha com a ajuda de um copo,  regados com xaropes de fruta bem doces, a dado momento ele diz "China", quando se refere aos sabores dos xaropes. Mas, mas sabor a China?! Em Porto Rico, este sabor refere-se a Laranja, - a laranja doce foi trazida da China para a Europa pelos portugueses, certo? Em Grego, laranja doce diz-se "portocala" - que ali apenas designa a laranja amarga; e "melão" é sandia.

In the Heights,  é um filme realizado por Jon M. Chu,  baseado num sucesso da Broadway de Lin-Manuel Miranda, de 2008. O argumento é da mesma Quiara Alegría Hudes que escreveu a peça musical e que aqui introduziu adaptações. O título refere-se a Washington Heights, um bairro predominantemente latino no extremo norte de Manhattan, que o protagonista Usnavi (Anthony Ramos) diz ter ruas cheias de música. Tanto quanto sei, tempos houve em que o crime era ali uma preocupação, sobretudo por causa de gangues ligados ao tráfico de droga e a corrupção policial. Mas neste filme nada disso é referido. Sem sexo, violência ou drogas, o filme parece querer maximizar as audiências. Agora parece que o receio já não é o crime e antes a "gentrificação", um problema que está bem no centro da história que Usnavi conta a um grupo de curiosas e pacientes crianças numa praia na República Dominicana ao longo do filme. 

Além de ser narrador, Usnavi, à beira dos 30, - não é difícil descobrir a origem do seu nome! - é dono de uma mercearia ou pequeno super onde os habitantes do bairro se cruzam, bebem café e jogam na lotaria. Todos passam por ali antes de se fazerem a mais um dia de trabalho, que é como quem diz, à conquista dos seus sonhos. O seu "suenito" é regressar à ilha caribenha e reconstruir o bar do pai, agora destruído pelo furacão. Mas ele tem um dilema: quer levar algumas pessoas consigo e nem todas estão de acordo.

Usnavi, tímido, romântico, também está apaixonado por Vanessa (Melissa Barrera), uma bonita, ambiciosa e intimidante rapariga que trabalha no salão de beleza local. Usnavi vive com a "Abuela" (Olga Merediz), uma cubana que o amparou desde que ficou orfão e é patrão de Sonny (Gregory Diaz IV), um rapazinho trabalhador e inteligente, imigrante indocumentado, filho de pai alcoólico. Usnavi tem um amigo afro-americano, Benny (Corey Hawkins), que trabalha na central de taxis, - e que um dia espera ter um negócio só eu. O encantador Benny está apaixonado por Nina (Leslie Grace), uma jovem que entrou na faculdade e de quem a família e a comunidade esperam muito. Infelizmente, Nina, a caloira, deu-se mal longe dos seus e do bairro que compreende e nutre a sua identidade. Foi humilhada, tratada como criminosa pelos "brancos" da escola de elite, e agora está determinada a desistir do curso e até a desafiar o pai (o conhecido Jimmy Smits, que muitos conhecem de séries de TV) que tudo tem sacrificado para poder pagar as propinas. 

Apesar de serem personagens secundárias, algumas das suas interpretações são tão boas que chegam a competir com as dos principais, em especial, Olga Merediz, como "Abuela" Claudia - que foi nomeada para um Tony pela sua actuação na Broadway. Não pôde ter filhos mas é a mãe Cubana do bairro inteiro, um alicerce tão importante no filme como na comunidade. Apesar de se ter matado a trabalhar como criada, nunca conseguiu juntar dinheiro para regressar a Cuba: ter um sonho e vontade de vencer nem sempre é o suficiente; ou mesmo Daphne Rubin-Vega como a vibrante cabeleireira Daniella, que está de partida para um novo bairro, em conjunto com as suas duas amigas e colegas. Ou ainda o jovem Gregory Diaz IV, como Sonny de la Vega, primo de Usnavi, que não quer sair da Nova Iorque porque veio para ali de fraldas, e nada recorda da República Dominicana, mas que, mais tarde se mostrará disposto a arriscar tudo por um futuro e obter o Green Card.

In the Heights é um filme sobre os sonhos dos imigrantes, uma história sobre a muita paciência e fé de que necessitam para vencer em solo estrangeiro, como diz a Avó Cláudia: "Tivemos que afirmar nossa dignidade de pequenas maneiras", acreditando que os " Pequenos detalhes dizem ao mundo que não somos invisíveis." Porque a dignidade está nas pequenas coisas e por isso a Abuela diz-se grata por tudo o que tinha recebido na vida, por mais pequeno que fosse. Eis a lição: embora o sentimento possa ser de derrota - "powerless" - o que importa e é determinante é abraçar a luta.

É um filme exuberante, cheio de cor, e caloroso, e não apenas por ser Verão em Nova Iorque e as pessoas buscarem continuamente o chuveiro das bocas de incêndio ou as piscinas para se refrescarem. Há sequências divertidas e impressionantes, como a da canção 96.000, numa cena que junta todo o bairro numa piscina, e onde todos à vez nos contam, cantando, sobre o que fariam se lhes tivesse cabido o prémio de lotaria no valor de 96.000 dólares: quem é que não deseja e sonha com a sorte grande? Além de dança e rap, o número inclui natação sincronizada, tudo em escala monumental. Ou a do salão de beleza, que Nina visita assim que chega a casa - e de onde sai com o seu cabelo natural, encaracolado, - onde há cabeleiras postiças em monos que se animam ao ouvir as coscuvilhices do bairro. Há cenas que surpreendem visualmente, tecidos coloridos que se desdobram desde telhados dos prédios para a rua onde Vanessa, ignora os piropos e caminha resoluta, sonhando ser designer de moda; ou de Corey Hawkins e Leslie Grace saindo da escada de incêndio para dançarem na parede do seu prédio que passa a ser o seu chão. E o que dizer de toda a sequência de Olga Merediz cantando Paciencia y Fe? É melhor não dizer nada porque só vendo como ela revisita as suas memórias e se despede desta vida se entenderá. E há também o excelente número de abertura que nos apresenta Usnavi e todas as personagens e o bairro, ao som da canção tema do filme: In the Heights. Ou ainda o número  "Carnaval del Barrio" onde a cultura latina é celebrada com humor e garra.

Em The Heights a dança é, na maior parte, um assunto colectivo: é o bairro inteiro, a comunidade é uma personagem colectiva, que se agita e move na rua, num pátio, numa discoteca, numa piscina, unida num abraço identitário. O bairro é os seus habitantes. O bairro cantado, que todos trazem no coração, que lhes falta quando partem, é, infelizmente, também é o bairro de onde querem escapar para provar o seu valor. Os tempos dos seu pais já não são os deles. A vida no bairro mudou: como aguentar a subida das rendas, a subida do preço de serviços que os novos lojistas que ali se instalaram cobram? Um apagão impede os habitantes de trabalhar e de se divertirem. Mas, mais uma vez, a mensagem é que não se pode parar, é preciso reagir, seguir em frente, dançar ao ritmo da música.

Tinha visto Crazy Rich Asians, e, para minha surpresa, apreciado a comédia. Assim, fiquei curiosa para ver In the Heights, realizado pelo mesmo Chu. Não me parece tão bem conseguido, por vezes tive a impressão que o filme se esforça demais para ser bom e que podia ser mais curto. Ao contrário daquela comédia, surpreendeu-me que não tivessem recrutado grandes estrelas (latinas) para o filme pois é uma grande produção: é bom ver caras desconhecidas. Lembrava-me do actor Anthony Ramos num filme,  White Girl, um que suscitou variadas polémicas, quer por estereotipar porto-riquenhos, quer pela representação da sexualidade feminina, a nudez de algumas cenas, e por abordar o "privilégio de uma mulher jovem e branca".

Numa altura em que está sempre em escrutínio a questão da correcta representação, ou não, da identidade por Hollywood, não sei se este filme correspondeu às expectativas da audiência latina ou se terá havido críticas. Quando estreou -no verão - não estive atenta e agora também não fui procurar saber. A  alegria e optimismo de In the Heights são contagiantes, é mais um filme que eleva a esperança acima de todas as expectativas, talvez porque estejamos todos precisados de muita. Além das boas canções, ritmos musicais - hip-hop, salsa, merengue, etc, - diversos tipos de dança, e boas coreografias, é bem feito, bem interpretado, apresentando sequências surpreendentes para apreciadores de filmes musicais e não só.

Apesar deste filme nos revelar o pulsar de uma comunidade com autenticidade, suas aspirações e combates, The Heights esbate deliberadamente as fronteiras entre a realidade e a fantasia, do primeiro ao último minuto, quando é revelado onde Usnavi sempre esteve sentado a contar a sua história. A maioria sorrirá ao ver a família feliz e o cenário do The End. Eu preferia um outro final, mas este também não me incomoda assim tanto como isso, afinal é bom que nos sintamos em casa, onde quer que nos encontremos. Beneficiando da semelhança linguística entre a minha língua e o espanhol, posso dizer que assistir ao filme foi uma fiesta e que me senti como un pez en el agua.

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