A cerimónia dos Oscars não tem salvação


Este ano os Oscars estavam desesperados por agradar e cativar audiências.  A indústria cinematográfica ficou de gatas no último par de anos em virtude das salas terem ficado às moscas por causa das medidas anti-propagação Covid. Mas tudo foi pouco para ressuscitar um espectáculo que já conta com 94 edições e que há umas décadas atrás tinha 40 milhões de telespectadores. Agora se tiver 10 milhões já é muito. O balanço não foi positivo.

Poucos amigos tenho que sejam cinéfilos. O cinema pouco interessa à maioria deles e a entrega dos Oscars, menos ainda. Alguns - e algumas- menos próximos adoram assistir àquele tédio que é a chegada das estrelas e partenaires ao teatro Dolby, o célebre passeio na passadeira vermelha. Depois disso, fecham a TV, ou o PC, ou o que for. Este ano havia alguma expectativa em relação à passadeira pois o Covid impediu esse desfile de luxos por dois anos. Nem quando me interessava pela cerimónia tinha paciência para esse ritual. Não é que não goste de dar uma vista de olhos pelos vestidos, mas as entrevistas são péssimas, as poses, as gracinhas, as perguntas de circunstância...um tédio. E os intervalos? Nada disto é feito em nome do público, nós, os que vemos os filmes, é apenas feito em nome da indústria, do negócio. Basta ver que o Oscar de Melhor filme é recebido pelo produtor, justamente o "Senhor da Massa". Os Oscars, claro,  promovem nomeados e vencedores, um clube muito selecto ao qual todos querem pertencer, por mais prémios que acumulem, e que garantidamente lhes abre portas. Mas, nós, bem, nós só ali estamos para "ler os comentários".

Em quatro telefonemas recebidos por estes dias, em três deles perguntaram-me: " E o estalo dos Oscars?" Eu brinquei: " A sério, os Oscars foram um estalo? Não me digas." Entre palavra vai, palavra vem, lá me foram dizendo que agora os Oscars são celebrações de tudo, menos do cinema. Mas eu já sabia. Podem não ver nem isso nem os filmes mas estão a par das "polémicas". Lá se falou dos discursos antigos a propósito de Harvey Weinstein e do MeToo - a edição 90ª dos Oscars ficou marcada pelo combate ao assédio e pelo apelo a que artistas sub-representados, género, etnia, etc, se unissem para terem mais voz e protagonismo, em suma, pela necessidade de uma indústria mais inclusiva. Alguns anos passados e os títulos dos artigos que fui lendo na internet eram do tipo, será que vamos ver uma mulher queer levar o Oscar pela primeira vez? Será que um homem surdo vai levar o Oscar pela primeira vez? Será que Jane Campion vai ganhar o Oscar de melhor realização, tornando-se a terceira mulher a ganhar um Oscar nessa categoria? Será que um canal de streaming vai ganhar o seu primeiro Oscar , o AppleTV+, com  CODA? Parece, portanto, que se há um tempo para falar especificamente de cinema, não é durante a época dos Oscars. Durante os Oscars estamos no reino da efeméride e da estatística. Com isto não quero dizer que as questões da sub-representação, ou da autenticidade, não sejam válidas, e antes que as pessoas não estão dispostas a juntar o útil e o agradável no mesmo saco, e que, por isso, deixaram de se interessar pela cerimónia.

Já antes do estalo do Smith tinha havido polémicas em virtude de alguns prémios (categorias técnicas) não serem atribuídos em directo. De entre eles, um dos mais comentados foi o de banda sonora, cuja entrega até se presta a bons momentos de entretenimento em palco, mas que nem em virtude disso se safou de ser relegado para segundo plano. Uns são filhos, outros são enteados. Não se percebe embora se entenda que a paciência para ouvir tantas pessoas, por mais talentosas que sejam, a agradecer a uma dúzia de colegas, amigos e pets, não é elástica. Há quem não queira ver o Drive my car porque tem 3 horas. Onde arranjar paciência para assistir a uns Oscars intermináveis?!  Estes técnicos são cruciais, não bastam os actores e um realizador para fazer um filme. E, infelizmente, por vezes até são mal pagos - ainda há pouco tempo fizeram uma greve. Não subir ao palco para receber os carecas é mau, ponto. Mas o público não os conhece e os produtores acharam que ninguém se importaria. Alguns deles são dos poucos que se atrevem a furar o protocolo chique, aparecendo vestidos informalmente, sem joias milionárias emprestadas, nem penteados de divas, nem peles de bebé obtidas à custa de plásticas caríssimas. Gostava dessa injecção de realidade austera no meio de tanta encenação! Correu bem o corte, sim senhora: em vez deles, tivemos direito a comédia na forma de um musculado Smith das Cavernas.

Parece que o humor não esteve em grande forma. Parece. Não vi. Amy Schumer, Wanda Sykes e Regina Hall apresentaram a "cerimónia", o que obriga a dizer piadas que decerto não escreveram, e, talvez a improvisar com margem previamente negociada: "A Academia tem 3 mulheres a apresentar os Oscars porque é mais barato do que pagar a um homem para o fazer." Vale a pena sentar o rabiote em frente à TV para ouvir estas graças? 

Sempre com o objectivo de cativar a malta, os produtores do show introduziram umas votações online para o público em geral que eu apanhei pelo ar e que não entendi completamente. Soube que deu raia, ou, pelo menos, que não teve o efeito pretendido. Os fãs elegeram "Army of the dead" como o filme favorito. Não gosto de zombis, não vi, não quero ver, mas o Zack Snyder já tem tudo a postos para filmar mais um, agora incentivado também por esta distinção. Também fiquei a saber que as audiências não acham os filmes dos Oscars "mainstream" e que por isso o interesse tem decaído de ano para ano. Mas que cinema é que os americanos afinal veem? Vejamos os filmes que geraram mais receita em 2021: Spider-Man: No Way Home, Shang-Chi,Venom: Let There be Carnage, Black Widow...Ora, o que é que isto nos diz? Possivelmente que são os jovens quem mais vai ao cinema. Percebe-se que os Oscars estejam em agonia: que jovem é que tem pachorra para ver aquilo?! A minha sugestão é a Academia começar a nomear blockbusters da Marvel e companhia. Aí sim, é garantido que terão audiências na entrega de prémios. Não creio que a cerimónia de atribuição dos Oscars tenha salvação. Teve o seu tempo de glória e ele já lá vai. Há tanto que ver, tão mais interessante, desde logo, um bom filme! Quem é que quer perder tempo a ver uma entrega de prémios de cinema? Antigamente era o único momento em que as pessoas viam os actores e as actrizes sem ser nos filmes. Hoje, a internet está cheia de entrevistas em programas de TV, making off, filmagens diversas, autorizadas e não autorizadas, promoções,...que se podem ver e rever até ao enjoo. 

Outra questão que me têm feito quando me encontram no supermercado é como é que Coda se sagrou Melhor Filme. O mais curioso é que me fazem esta pergunta sem ter visto filme. Mas isso tem explicação: quando se tem um filme com 12 nomeações e outro com 3, em qual é que apostamos? Tenho visto mais descontentamento do que celebração com essa atribuição, até li que os membros da Academia erraram! Não, não erraram. Fizeram uma escolha, e o sistema de votação - que permite que todos votem o melhor filme, e não apenas os realizadores, - talvez tenha favorecido o filme dirigido e escrito pela cineasta Sian Hede. 

Um filme pequenino e independente, torna-se o melhor filme do ano. Bom, talvez a maioria dos votantes esteja cansado de violência e controvérsia, dentro e fora da tela. E então eis que surge um filme que é, todo ele, um bálsamo. É simples, orientado positivamente, com boas interpretações, personagens simpáticas, etc, tem humor, tem música - nunca menosprezem o poder de uma canção bem interpretada no meio de um filme! -  além de nos colocar perante uma comunidade sub-representada em Hollywood. A somar a isto a estratégia da Apple que deve ter gasto uma pipa de massa na promoção... e aí está. Esta vitória fez-me lembrar o que se passou com o filme Roma e Green Book, em 2018. O filme deve ter-se tornado popular junto de um público não muito exigente, - leia-se refinado, artístico, polémico, alternativo, o que queiram -  mas que gosta de ver um filme bem feito, humano, sem artifícios, e que o faça sentir recompensado pelo tempo empregue, exactamente o contrário do que se sente ao assistir à entrega dos Oscars.

Para o fim, guardei algo que me tem feito  pensar. Julgava eu que os surdos tinham ficado nas nuvens com o filme e os três prémios recebidos, mas aqui e ali comecei a ler algumas críticas: que nem tudo no filme é perfeito, que, por exemplo, é feito para agradar primeiramente a uma audiência de ouvintes, e não aos surdos e "Codas", ou ainda que a protagonista não é uma coda: que houve preguiça na forma como o casting foi feito...Que ninguém no elenco ou na equipa criativa é um "coda", daí o uso da palavra "coda" no título não ser inteiramente legítimo...Até o facto de do realizador e o produtor não serem surdos e terem subido ao palco para aceitar o prémio de Melhor Filme foi incompreendido: porque não deixaram um dos actores surdos aceitar? Não, os actores ficaram ali a traduzir em língua gestual o que aqueles estavam a dizer...Também lamentam que o filme se tenha apropriado do termo "Coda" que ninguém conhecia excepto a comunidade de surdos. O filme reivindicou o termo sem ter pedido aos codas e eles estão ressentidos. Ou pelo menos a pessoa que assim desabafou, estava...Basicamente é como chamar a um filme "A rapariga negra" e o filme ter um elenco de brancos! 

Não há dúvida que a vida não está fácil para os fazedores de filmes! Para o ano há mais!

Comentários