Will Smith, Chris, a estalada, e a mulher dele



Rock: (no palco)  Jada, I love you. GI Jane 2, can’t wait to see you.
👉(Estalada)👈
Smith: (no lugar) Keep my wife's name out your f***ing mouth!

(Cerimónia de entrega dos Oscars 2022)

Do tempo em que não perdia pitada da cerimónia de entrega dos Oscars, ao tempo em que deixei de ter interesse no espectáculo, decorreram muitos anos. E depois desses anos, mais anos ainda. Agora, para ficar acordada a seguir a entrega dos prémios em directo, preciso de ter uma motivação especial. E até para recapitular o evento tenho preguiça!

Ontem, quando, pela manhã, abri o computador, pouco se escrevia sobre a festa do cinema americano, ou os premiados, mas havia textos de meio metro sobre o bofetão de Will Smith a Chris Rock. As opiniões multiplicaram-se pelo dia fora. (E agora, aqui estou, também a escrever mais um texto de meio metro sobre o caso!) A dado ponto até já esperava ver alguma TV a convocar psicólogos para trocar tudo aquilo em miúdos freudianos para nozes. 

Mas as opiniões dividiam-se. Pensava eu que os comediantes estavam a salvo nos palcos e que não havia limites ao humor. Será que os nomeados aos Oscars têm alguma  licença especial para esbofetear quando ofendidos por uma piada? Que comédia! Afinal, #SomosCharlie, não? Ou já deixámos de ser? Se Jada está para Smith como Maomé para os seus crentes, Charlie é Chris. Alguns dos que condenaram o ataque de morte a Charlie, decerto agora desculpam Smith. Talvez se ele tivesse morto, ou, pelo menos ferido, Chris, já fossem mais severos com o actor. Mas o parvo do Chris aguentou firme como uma Rock, aguentou o golpe até com elegância. 

Imaginem apenas que aqui a vossa escriba ia com o namorado a um show de stand-up. Tínhamos comprado bilhetes para a primeira fila. O comediante coloca o foco das piadolas sem graça sobre mim, que estou ali sentada, à mão, podia até ser noutra pessoa. O meu mais que tudo sobe ao palco para lhe dar um soco, seja porque quer defender a sua dama à moda antiga - como se eu não pudesse fazê-lo, e precisasse de defesa - , seja porque eu me mostrei ofendida. A cena seguinte, qual seria? Os seguranças seriam decerto chamados e o arruaceiro-mor conduzido para fora da sala. Estou, ou não, a fazer filmes? Porque motivo, então, está tanta gente a tomar a defesa de Smith quando o prejuizo que ele causou com o seu comportamento é muito maior do que, possivelmente, o impacto que a piada terá tido em Jada, que resvirou os olhos e às tantas até teria esquecido a coisa por ali? 

Será que o Chris não sabia que a mulher sofria de alopecia? (Não faço ideia se ele sabia ou não da doença, nem se Will Smith não está bom da cabeça, após anos de abuso e manipulação por parte da mulher, sendo uma vítima, como também já li, enfim, o casal Smith é o assunto do momento, o assunto a explorar para obter a nossa atenção.) Uma coisa é certa: sem bofetão, a piada estaria esquecida antes da abertura de novo envelope pelo mundo inteiro. Com o bofetão vieram os memes virais e será eternizada na internet. 

Examinada com algum distanciamento, a piada não parece ser particularmente acintosa, a personagem interpretada por Demi Moore com quem Jada é comparada, era a de uma mulher determinada a ser a primeira nos SEAL, tem de provar o seu valor e  ganhar o respeito dos homens quando se alista. É traumático perder o cabelo? Sem dúvida. Seria mau se Jada, nos seus 50 anos, entrasse numa sequela daquele filme de Ridley Scott? A meu ver seria uma bomba! Além disso, Jada parece ter ultrapassado o trauma, parece mostrar a sua cabeça rapada com orgulho. Se começou por usar um turbante, agora não o faz; podia usar uma peruca e ninguém saberia da alopécia, não o faz. A doença começou em 2018. Em Setembro do ano passado ela rapou o cabelo e disse - no seu programa The Red Table Talk - que o marido tinha adorado o novo look. Afirmou que ficou satisfeita por tê-lo feito, uma experiência bonita, de liberdade, que a fez sentir-se mais ligada a si mesma e ao divino. Depois disto, acaso se justifica a atenção mundial, a minha postagem de meio metro? Somos todos uns parvos, é o que é.

Li uma opinião de alguém, uma americana, que dizia que o problema nem sequer era a doença, era o facto de o cabelo das mulheres negras ser tabu, um território que Chris devia saber perigoso. O cabelo das mulheres negras tem sido alvo de piadas desde sempre, de tal forma que muitas não gostam dele, esticam-no para que perca o frizado e fique como os cabelos das brancas. De igual forma, rapar a cabeça também não livra as mulheres de piadas, a que se soma a perseguição para que digam a razão da carecada. Chris Rock sabia que o cabelo era um tema sensível, dizia ela, pois fez um documentário sobre o assunto, - Good hair - motivado pela filha de 3 anos, que lhe terá um dia perguntado por que razão o cabelo estava estragado...Quanto mais leio menos entendo. Não devia ter acontecido, nisso estamos todos de acordo.

De um modo geral eu não tenho os actores em especial consideração só porque são actores. Além disso, a vida pessoal deles, as suas ideias, as suas simpatias, por regra, não me interessam. Em tempos ouvi/ via muitas entrevistas com alguns, percebi que há de tudo: uns são inteligentes, cultos, informados, sensíveis, outros nem tanto. O que eles são fora das personagens que interpretam e das vidas que vivem nos ecrãs, para mim não é assunto. Não os tenho como modelos ou pessoas exemplares, não são seres sobredotados: são actores. Estudaram e aperfeiçoaram-se na sua arte, tal como outros artistas, tal como outras pessoas anónimas se apuraram nas suas habilidades, técnicos, cientistas, médicos, para, por exemplo, salvarem vidas. São pessoas, com virtudes e defeitos. Logo, não me choca que Will Smith tenha reagido de forma tão primária. Smith podia ter entalado o Chris com uma piada à altura, ou até com um comentário educativo de rasgo. Mas isso talvez fosse esperar demasiado dele. Ou talvez exista um historial entre ambos - ou entre os três - que a gente desconheça e lhe tenha feito saltar a tampa.

Depois do sucedido, a criatura desfez-se em lágrimas e desculpas sem substância:"A arte imita a vida. Eu pareço o pai maluco, como disseram sobre Richard Williams, o amor faz fazer coisas loucas", foi dançar e gozar o seu Oscar pela noite dentro, como se tudo tivesse sido lavado pelas lágrimas e sanado pelas desculpas; a malta aplaudiu muito, talvez de pé, não sei, não vi; o filho pateta ainda se foi gabar para o Twitter dizendo que é assim que a família Smith lida com as coisas. Não é nos momentos de paz, de festa, de descontração, que as pessoas se revelam verdadeiramente como são, é nos momentos de dificuldade, de desafio, é que são testadas. Will Smith foi testado e o resultado foi o que se viu. Os filmes eclipsaram-se, ninguém falava mais deles. Se houve momentos altos na cerimónia, actuações, discursos significativos, ninguém falava mais deles. Decepcionante e uma vergonha para todos os que gostam de cinema, risível para quem acha que os Oscars não passam de uma fantochada, uma gala de super-ricos para promover o negócio. Decepcionante para todos os negros de quem tão frequentemente se diz, em especial, nos EUA, serem mais agressivos que os brancos: imaginem o que o bofetão macho de Smith não fará por esse "mito".

O que talvez alguns não saibam, é que enquanto a tranmissão corria, parte da reação de Will Smith - quando regressou ao seu lugar junto de Jada - não foi para o ar. Nos Estados Unidos, o som foi silenciado por 22 segundos, um processo possível graças ao pequeno intervalo entre o que acontece no palco e a transmissão de TV, e que tem por objectivo silenciar o asneiredo. Os EUA são uma nação muito púdica: não se pode dizer  "Fuckin" na televisão. A Comissão Federal de Comunicações (FCC) garante que entre 6h e 22h, a televisão não seja maculada por asneiredo indecente que possa chocar a audiência mais sensível. A FCC proíbe "a disseminação de material que, em seu contexto, descreva ou descreva, em termos obviamente censuráveis ​​pelos padrões sociais, actividades ou órgãos sexuais ou escatológicos". E agora, mais uma curiosidade: esta medida tem origem num sketch humorístico do grande George Carlin intitulado Seven Dirty Words You Can Never Say On Television.  Carlin era dizia que as palavras não tinham poder e que lhe tinham dado poder ao aprisioná-las. Não sei ao certo se foi a apresentação decorreu na TV ou se o sketch foi transmitido num programa de radio, - o sketch está num LP que se chama Class Clown - mas em algum momento terão surgido queixas de cidadãos de bem, muito preocupados que a juventude fosse corrompida pelas palavras feias, o que levou à intervenção do tribunal, etc, foi criado um regulamento, multas e esta medida, malha que muitos consideram contrária à primeira emenda da Constituição americana.

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