Cinema: tick, tick...Boom! , um filme magnífico de Lin-Miranda




É frequente não escrever sobre os filmes que mais gostei de ver. Não sei a razão. Acontece. Ora, nesta leva de cinema, e enquanto se espera pela atribuição dos prémios que "fecham" mais uma temporada de cinema, os Oscars, estou decidida a não deixar passar tick tick...Boom! em branco. Gosto de musicais mas não me considero uma conhecedora das produções e lendas da Broadway. Vi o filme Rent, que tem canções de Jonathan Larson, mas não sabia que morreu precocemente e no dia da estreia deste seu musical, Rent, que, em 1996, foi um êxito estrondoso na Broadway: esteve12 anos em cena. Rent é a história de um grupo de amigos que vivem em New York nos anos 80. Mark e Roger têm abordagens diferentes da vida: um desistiu dela, o outro quer fazer dela um filme. Rent aborda alguns temas sociais fortes da época, o emprego, a toxicodependência, a homossexualidade e a epidemia da SIDA. 

Depois do filme Rent, de Chris Columbus, é a vez de tick, tick...Boom! Este filme é um verdadeiro espectáculo musical semi-auto-biográfico sobre Larson, um compositor à beira de fazer 30 anos e que sente a pressão do tempo e a angústia de não ter ainda conseguido realizar o seu sonho. Na realidade, Larson morreria com 35 anos, no mesmíssimo dia em que o seu musical Rent estreou. É demasiado irónico e  trágico que não tenha podido ver o seu sucesso, um pelo qual tanto tinha lutado, por entre dúvidas, desânimos e esforços vários.

 tick, tick...Boom! é a estreia de Lin-Manuel Miranda na realização. Miranda tem um pequeno cameo no filme, é um artista versátil,  com Grammy, Emmy, Pultizer e Tonys no curriculum, criador de conhecidos musicais, "Hamilton" e  "In the Heights", autor de bandas sonoras para filmes infantis, actor, etc. Ele credita o musical Rent como responsável por grande parte da sua inspiração. Em conjunto com o argumentista Steven Levenson criou o meu filme favorito de 2021. Desde que o vi pela primeira vez, ainda em Novembro, que se tornou inesquecível. Este ano que passou foi particularmente satisfatório em termos de cinema. Considero Drive my car como o melhor filme do ano, de caras, o mais perfeito e mais profundo que vi, uma experiência do melhor cinema que é possível fazer. Mas tick, tick...Boom! foi a maior surpresa e, para mim, uma experiência muito envolvente e emocional, uma que nem todo o cinema consegue alcançar. O seu filme de estreia como realizador pode não ser perfeito como o filme de Ryusuke Hamaguchi nem ter o apuro e a ambição da obra da experiente Jane Campion, mas esta abordagem da jornada criativa e a vida pessoal de Jonathan Larson carrega uma tal energia e uma tal autenticidade que me rendi e já o vi duas vezes num curto espaço de tempo, o que para mim é quase inédito. Além de promover de forma competente e criativa a música de Larson, muitos aspirantes a artistas reconhecerão ali dilemas conhecidos. Os dias que antecedem qualquer êxito divididos entre a ânsia de criar e a dúvida e a incerteza de que se vai conseguir transformar uma visão pessoal em algo único e relevante; a luta entre entregar-se à sua arte ou viver o momento irrepetível, com os amigos, a namorada, a família, que não vão durar para sempre.  Os dias em que o sonho se revela um pesadelo, quando, no mundo em redor, tudo gira, avança, acontece, mas a vida parece uma prisão. Não perder a fé em si mesmo, enquanto se fazem escolhas que aos outros parecem apenas egoísmo, é um desafio. E não desistir, e ainda acreditar que o dia do triunfo chegará, um objectivo diário.

Andrew Garfield oferece-nos uma interpretação extraordinária, para a qual trabalhou durante um ano, aprendendo música, aprendendo a cantar, aprendendo a ser Jon, Jonathan Larson. Garfield foi escolhido para o papel depois de Miranda o ver representar na Broadway a peça de 8 horas "Angels in America", de Tony Kushner, pela qual Garfield venceu um Tony. (Eis os actores que com ele concorriam ao prémio: Tom Hollander, (Travesties), Jamie Parker, (Harry Potter and the Cursed Child, Parts One and Two), Mark Rylance, (Farinelli and The King), Denzel Washington, (Eugene O'Neill's The Iceman Cometh). Esta premiada  peça  lançada no início dos anos 1990, parte da realidade de um casal gay de Manhattan, e da crise provocada pela SIDA na América de Reagan, para abordar de forma complexa a política, os direitos humanos e a religião. "Angels in America" tem uma adaptação televisiva em quatro partes, com actores consagrados como Al Pacino, Meryl Streep ou Emma Thompson em 2003. 

Em grande parte de tick, tick...Boom!, Jon está num palco, sentado ao piano. É acompanhado por instrumentistas e  uns incríveis Vanessa Hudgens e Joshua Henry, que cantam com ele, enquanto Jon nos conta a sua história de vida, graças a uma edição particularmente feliz, entre números musicais. Este palco é o do New York Theatre Workshop – a casa criativa de Jonathan,  o palco onde "Rent" estreou. O filme está cheio de simbolismo para quem conheça bem o percurso de Jonathan Larson e o teatro musical. 

O ainda muito jovem Jon, aspirante a compositor teatral de sucesso, anda há oito anos a escrever um musical de ficção científica enquanto serve às mesas para pagar as contas. Os nervos estão à flor da pele enquanto dá tudo por tudo para escrever uma canção em falta no II acto do seu musical futurista. O tempo corre depressa demais, o workshop não tarda aí. Mas a inspiração falha-o. Não avança, desespera, está bloqueado. À sua volta, o mundo pula e avança. A namorada tem um emprego novo em perspectiva, o melhor amigo, optou por um emprego seguro em vez da vida artística, e um apartamento de luxo. E ele? Ele está encalhado no seu sonho. A vida desmorona-se à sua volta, os seus amigos próximos adoecem em plena epidemia da SIDA, a namorada quer deixá-lo, até a luz é cortada, no momento em que ele precisava mais! 

Por mais filmes dramáticos que já tivesse visto com Andrew Garfield - Silêncio, O mistério de Silver Lake, Hacksaw Ridge - ele sempre surgia na minha cabeça como o Homem Aranha! Ó Belinha, mas tu vês esses filmes da Marvel e companhia? Claro que vejo! Umas vezes por curiosidade, outras porque gosto das personagens da banda desenhada e outras para acompanhar o meu sobrinho. Alguns filmes de super-heróis são divertidos, outros são tremendamente aborrecidos. O Homem Aranha de Garfield parece não ter sido do agrado de muitos, mas para quem nutre apenas um interesse superficial pelo género, o meu caso,  é o meu favorito. O valor de Garfield como actor dramático estava mais que à vista, mas em tick, tick...Boom! ele também canta, e, ainda que a sua voz não seja nada de especial, com tal entrega, emoção e expressividade que não consegui reprimir a minha comoção. Nos dias seguintes andei em campanha, a promover o filme, a obra de Jonathan Larson e, sobretudo a maravilhosa interpretação a que tinha acabado de assistir. Era evidente que Garfield iria ser premiado em vários certames. Agora, que já vi todos os nomeados para o Oscar de Melhor Actor, sei que ele irá talvez para Smith, talvez para Cumberbatch, mas se dependesse de mim, entregava-o a Andrew Garfield. Se isto não foi a interpretação de uma vida, não sei o que terá sido. 

Destaque para um dueto musical, a canção Therapy, uma coreografia muito engraçada fortemente apoiada na expressão facial dos intervenientes, até mesmo nos olhos! Andrew Garfield e Vanessa Hudgens, cantam sobre a comunicação do casal numa relação, pedindo desculpas por coisas feitas, de acordo, talvez, com o aprendido na terapia que frequentam. O número é entrecortado com a séria discussão entre Larson e sua namorada Susan (Alexandra Shipp), ela queixando-se da relutância de Jonathan em perceber que ele a está excluindo quase completamente da sua vida, totalmente obcecado com o seu workshop musical. O contraste obtido é fabuloso e a edição, a ferramenta perfeita para sublinhar isso.

Por outro lado, de novo o contraste, numa cena com uma escala totalmente diferente, com uma encenação mais teatral que a maioria, até grandiosa, para a canção "Sunday", que tem lugar num "diner" tradicionalmente americano. Garfield canta sobre coisas triviais do brunch de domingo, o café, o bagel, o facto de ser mais barato tomar o pequeno almoço em casa, o colesterol, com suavidade - apesar de estar à beira do colapso, novamente um jogo de opostos - rodeado de vários astros da Broadway, artistas que trabalharam em "Cabaret", "Ragtime", o "Fantasma da ópera", e também nos musicais "Rent" e "Hamilton". “Sunday”, ambientada no The Moondance Diner no SoHo, onde ele trabalha a servir às mesas e tornar-se o próximo Sondheim, é uma espécie de paródia ou tributo à canção de Sondheim do musical "A Sunday in the park with George". Até aparece Bernardette Peters, estrela desse musical, (era a Dot, e usa o chapéu desta personagem) sendo facilmente identificável, pela reverência com que Jon a saúda, cruzando as mãos sobre o peito. O restaurante acaba por se transformar num teatro de proscénio e os artistas, que fazem poses, ou estão vestidos e usando adereços que os ligam aos musicais, deixam os seus lugares e vêm até ao espaço exterior, conduzidos por Jon, simulando uma cena do musical de Sondheim. Por fim a imagem transforma-se num "quadro" pontilhado, como a obra pictórica de Seurat. Para os entusiastas e conhecedores da Broadway, este foi um ponto alto do filme, de redobradas emoções. Trata-se de uma "recriação" de uma cena do musical de Sondheim, que até é previamente mostrada num televisor, e comentada pelo amigo Michael. 

Sem mais, recomendo este magnífico filme (imperfeito) para todos os que apreciam o teatro musical, ou adaptações de musicais ao cinema, e mais ainda para aqueles que sempre me dizem não gostar. Acredito mesmo tick, tick...Boom!, este filme, tenha contribuído, - e vá continuar, à medida que mais pessoas o descubram, - para gerar mais público para filmes musicais. Havendo procura, mais filmes deste género serão feitos. Torço por isso!


Green dress - cena cortada do filme. Ver no YT.


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