Lapsis: um curioso filme de ficção cientifica de Noah Hutton


Este filme fez-me lembrar um que eu já tinha esquecido e que se chama The humingbird project, um misto de drama, thriller e comédia, - sim, é um mix, meio esquisito  - uma história de amizade e um alerta sobre a competição desenfreada em que o capitalismo lançou as empresas e os indivíduos, com um excelente Alexander Skarsgarde - que conheceu a fama como o vampiro de True Blood, é aqui calvo e barrigudo, de nome Anton, socialmente desajeitado, mas um génio capaz de aperfeiçoar os códigos para fazer um programa de computadores rápido. O primo dele, Vincent, é interpretado por Jesse Eisenberg com garra. Ele convence Anton de que podem ganhar milhões reduzindo milissegundos da conexão entre a Bolsa de Valores de Nova York e o Kansas, instalando um cabo de fibra ótica em linha recta,- sim, leram bem, em linha recta! - desde New Jersey até ao Kansas. Para isso será preciso negociar fundos, obter equipas, meios, escavar túneis, enfrentando moradores Amish, montanhas, rios e pântanos, e luta da concorrência! E porquê "Projecto Beija-Flor"? Porque o milisegundo mais rápido que os primos precisavam é o tempo que um colibri leva para bater as asas uma vez. Conseguir esse pouco era o que bastava para ganhar os milhões e eliminar a concorrência. Por incrível que possa parecer, este filme sobre túneis e cabos acabou por ser mais ou menos razoável entretenimento.

Lapsis é um filme de baixo orçamento, simples mas com alguma ambição, e talvez até mais coeso que o anterior. Em comum têm a existência de cabos e a corrida contra o tempo e o facto de partilharem de certas visão do mundo capitalista.  O realizador é filho do casal de actores Debra Winger e Timothy Hutton, e creio que este foi o primeiro filme que vi realizado por ele. Não conhecia nenhum dos actores envolvidos, uma situação que por vezes me agrada bastante, e que em algumas ocasiões até prefiro. Lapsis é uma crítica à ganância das empresas que exploram os trabalhadores e à forma como todos somos cúmplices nisso. Vi-o porque me disseram que era ficção científica e por saberem que eu tenho um fraquinho por filmes deste género feitos com pouco dinheiro. Por vezes são bastante engenhosos e apresentam uma boa ideia desenvolvida solidamente. Infelizmente, a ideia de haver florestas pejadas de cabos à superfície não me pareceu uma ideia de muito futuro, mas arranjei forma de fazer a paz com esse detalhe, imaginando que aquilo seria o estágio inicial da tecnologia, uma coisa a resolver mais tarde!

Pensava, portanto, que o filme se passava no futuro, mas a história podia acontecer hoje, num lugar qualquer do nosso mundo, onde uma companhia pioneira numa tecnologia revolucionária se instalasse para laborar, recrutando pessoas para trabalhar nas suas operações, sabotando o seu sucesso. Em Lapsis, a empresa é a CBLR. Esta empresa paga a trabalhadores para puxarem cabos de fibra através das florestas. De alguma forma esses cabos são necessários para que as pessoas possam utilizar os modernos computadores Quantum.

Ray é um homem da classe média que trabalha na entrega de encomendas, um trabalho mal remunerado mas flexível, o que lhe permite dar assistência ao seu irmão que sofre de uma particular espécie de fadiga crónica, quem sabe provocada pela nova tecnologia, a que deram o nome de Omnia. Decide então fazer um biscate no fim de semana pois um amigo ganhou muito dinheiro assim e ele deseja internar o irmão numa clínica, mesmo se nem ele nem o irmão aprovam a tecnologia nova. Consegue uma "licença" que pertenceu a outrem, um lance ilícito mas necessário, pelo tem de pagar 30% daquilo que apurar ao vendedor. Consegue entrar e faz a formação básica. 

A empresa dourava bem a pílula, afinal quem é que nunca desejou trabalhar em plena Natureza! Mas uma vez no local a tarefa revela-se ingrata: Ray não está em boa forma física mas não pode sequer parar para descansar sem que uma voz irritante do seu geo-localizador o mande prosseguir. Ray não sabe montar uma tenda para acampar, e quando refere que recebeu o nome de Lapsis Beeftech no sistema da CBLER, pois não teve permissão para criar o seu, não é recebido com simpatia pelos colegas. Um bando de crianças, filhos dos trabalhadores e de detentores de tendas de comes e bebes, também perturbam Ray mais do que ele desejaria roubando-lhe a recarga de cabo que chega via drone assim que a bobine acaba.

Além de competir com os outros humanos, os trabalhadores também competem com uns robôs que têm por função mantê-los produtivos e que são uma autêntica matilha sempre no seu encalço,  incitando os desgraçados que arrastam o trollei com as bobinas de cabo, encosta acima, lamaçal adentro, a correrem contra o tempo. É que uma vez ultrapassados pelos robôs, se estes completassem a rota antes deles, perderiam tudo. De pouco adianta colocarem armadilhas: são apanhados e removidos das rotas.  O aparelho que serve para Ray se geo-localizar, impedindo que se desvie da rota, e para onde foi descarregado o software de um tal Lapsis, a quem pertencera a licença, permite-lhe aceder a rotas mais longas e bem pagas, que só estavam acessíveis aos mais experimentados, uma vez mais provocando animosidades entre os seus semelhantes. Mas também encerra algo mais precioso do que o dinheiro que alguns dos trabalhadores mais rebeldes procuravam: a possibilidade de fazer uma revolução contra as máquinas que à traição lhes roubavam os ganhos e assim derrubar a empresa que os explorava de forma tão vil, nem sequer apoiando os acidentados, enquanto os lucros da nova tecnologia cresciam exponencialmente. 

Umas vezes é muito divertido e outras quase toca um leve terror psicológico, quando o poder de sugestão triunfa sobre a evidência, em especial enquanto seguimos Ray pela floresta, tal como ele sem perceber bem do que aquilo tudo se trata. Mas o fim do filme é muito claro em relação ao que ali importa. Os avanços científicos e tecnológicos tanto podem sere usados para o bem como para o mal e Lapsis é pessimista quanto ao futuro dos trabalhadores da CBLR, ao mesmo tempo que nos faz sentir uma parte desse problema. Não raramente a responsabilidade na exploração do trabalhador por parte de grandes empresas apoia-se numa rede difusa de muitos outros agentes menores que de alguma forma alheada ou consciente, pactuam com as suas propostas injustas,  ignorando o elo mais fraco. Lapsis não é um filme perfeito, mas quando acaba percebemos a sua razão de ser e a  força da sua ideia chave acaba por nos fazer aceitar alguma dose de absurdo que lhe encontremos ou mesmo objeções razoáveis como um mal menor.


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