Sobre a tradução de títulos de filmes gringos no Brasil



- Annie Hall - Noivo neurótico, noiva nervosa
- Airplane - Apertem os cintos, o piloto sumiu
- The sound of music - A noviça rebelde
- The hangover - Se beber, não case
- Lost in translation - Encontros e desencontros
- Giant - Assim caminha a humanidade
- Shane - Os brutos também amam
- Meet the parents - Entrando numa fria
- Parenthood - O tiro que não saiu pela culatra
- West Side story - Amor, sublime amor
- Saturday Night Fever - Os embalos de sábado à noite
- Out of Africa - Entre dois amores
- The godfather - O poderoso chefão
- Indiana Jones e o Templo da Perdição"
- Ferris Bueller's Day Off - Curtindo avida adoidado
- Jack and Jill - Cada um tem a gémea que merece
- Vertigo - Um corpo que cai
- It’s a Wonderful Life - A Felicidade Não se Compra
- Mr. Smith Goes to Washington - A Mulher Faz o Homem
- To Kill a Mockingbird - O Sol é Para Todos
- Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo - Três Homens em Conflito
- Rebel without a Cause - Juventude Transviada
- From Dusk Till Dawn - Um Drink no Inferno
- The apartment - Se Meu Apartamento Falasse
- A Hard Day's Night - Os Reis do Iê Iê Iê
- Persona - Quando as mulheres pecam
- Breakfast at Tiffany’s - Bonequinha de luxo
- Meet the Fockers - Entrando numa fria maior ainda
- We're the Millers - Família do bagulho
- Calamity Jane - Ardida como Pimenta

Há dias, eu e os meus amigos Facebookianos do Brasil, andávamos todos a preencher e a partilhar uma lista com títulos de filmes no Facebook, uma das tais correntes que acabam por ter alguma utilidade. No caso, acabei por encontrar alguns títulos que ainda não conhecia e que já agendei para ver num próximo fim de semana. Reparei que era quase impossível identificar a maioria dos filmes pelo título, com excepção dos filmes brasileiros: muitos dos filmes feitos nos EUA não tinham recebido tradução literal. Quando fiz a minha lista coloquei o título na língua original, a inglesa, mas imagino que se tivesse usado os títulos dados aos filmes em Portugal, eles também não saberiam a quais me estava a referir. Embora não desconhecesse por completo esta realidade, nunca me tinha debruçado sobre ela o suficiente para perceber a sua dimensão. Em Portugal a maioria dos títulos parece-me mais literal. A não ser que também não tenha prestado muita atenção a isso. Na maior parte das vezes retenho o título em inglês. O caso muda de figura se não forem filmes ingleses ou portugueses: aí a tradução é quase sempre o que fica. O Eduardo Affonso listou para mim os dez primeiros títulos que aqui vos deixo como amostra. Basta passar os olhos. Os títulos parecem ser realmente bastante peculiares no Brasil. Fiquei intrigada e googlei mais alguns.  Na "googlagem" encontrei um texto interessante, cujo link deixo abaixo, sobre a arte da escolha do melhor título para um filme no Brasil, escrito por alguém que já trabalhou nisso. Isto é curioso pois usamos a mesma língua e os fazedores de títulos chegam a soluções muito diferentes. E cómicas! O filme "White Men Can't Jump" (1992), em Portugal recebeu o título "Branco Não Sabe Meter". No Brasil, o filme com Woody Harrelson e Wesley Snipes, chama-se "Homens Brancos Não Sabem Enterrar".

Dar um título a um filme não é um puro e simples exercício de tradução. Outros factores influem na escolha do título ideal. É um processo que ajuda a construir o sucesso ou o fracasso de um filme. Não é um pim-pam-pum. Pode ser simples, pode ser complicado. Basta ver este exemplo cuja dificuldade reside desde logo na expressão "Rat race". A comédia "Rat Race" (2001) em Portugal é conhecida como "Está Tudo Louco!", no Brasil é "Tá Todo Mundo Louco! - Uma Corrida por Milhõe$". Não podia ser traduzido literalmente pois a expressão idiomática Rat Race (corrida de ratos) significa uma competição infrutífera por poder e dinheiro.

Uma distribuidora que  adquire um filme para exibição pode ter de escolher um título diferente do original por várias razões. No processo de escolha de um título, o tradutor não deverá deter apenas conhecimentos técnicos e linguísticos, deve procurar conhecer a cultura, valores e costumes do público ao qual o filme  se destina. Estes poderão explicar títulos que se afastam do original, mas alguns parecem mesmo ser um produto da criatividade e brincadeira de alguém.

Se um filme é adaptado de um livro conhecido, há vantagem em manter o título, - por exemplo, Hamlet -  mas, ainda assim, a cultura local pode justificar a mudança se se verificar que o título pode gerar confusão ou mal estar no novo público. O título do filme de animação infantil Moana passou a Oceania em Itália, embora a personagem se chame Vaiana em toda a Europa, por existir uma actriz europeia de cinema porno com esse nome. A Disney ficou certamente preocupada com a possibilidade de as criancinhas buscarem no Google por Moana e aparecer  a italiana Moana Pozzi em cenas picantes! Fiz a pesquisa por brincadeira e o mais picante que apareceu foi um cartoon singelo. E em Portugal? Aqui, e na maioria dos países europeus, essa nova princesa da Disney, uma adolescente corajosa da Polinésia, também foi rebaptizada como "Vaiana", por haver já marca registada concorrente. Os títulos têm de respeitar os direitos de autor, é outro factor a merecer atenção.

Também os títulos pequenos ganharam a preferência, desde logo porque os cinéfilos os encurtam de forma natural. Por exemplo,The Chronicles of Narnia: The Lion, the Witch and the Wardrobe. Nunca me referi a este filme usando mais do que as primeiras palavras do título. Borat é Borat, nem o cartaz ajuda! Mesmo se sabemos que a palavra Cazaquistão aparece no final título nunca nos lembramos das que estão após os dois pontos!  À medida que filmes passaram a ser vistos em ecrãs mais pequenos, os títulos grandes também são preteridos por apresentarem difícil legibilidade. Outra situação: se uma série ou filme circulou com o título original e um público se acostumou com ele, no momento em que ele ganhe uma tradução, o público vai reagir mal ao novo título. Aconteceu onde? No Brasil, claro, com os fãs de Breaking Bad, uma das séries mais populares dos últimos anos, que passou a ser A Química do Mal.  

Para bem traduzir um título de um filme, é necessário que o tradutor leve em conta uma série de contributos que podem passar pela  sinopse do filme, o meio social a que se dirige, a sua origem histórica ou literária, entre outros. Um título tem de conseguir suscitar interesse, curiosidade, tem de ser bem aceite pelo público a que se destina, e tem de vender o filme o melhor possível. Um filme é um produto, um produto cultural. Dirige-se a consumidores. Tem de atrair o consumidor e ao mesmo tempo manter a expectativa sobre aquilo que ele vai ver, não devendo revelar nem o enredo, nem estragar um final de forma desastrada. O clássico de Alfred Hitchcock "Vertigo" (Vertigem, na tradução literal), recebeu o nome de "A Mulher que Viveu Duas Vezes" em Portugal. No Brasil, o filme ficou conhecido como "Um Corpo que Cai", o que deixa adivinhar algo do seu guião.

Equacionando tudo isto, portanto, e resumindo, o título pode ficar como está, pode haver uma tradução literal, pode haver uma adaptação do título, ou ele pode ainda ser completado por uma expressão. O que é preciso analisar? A cultura do país onde o título vai circular, se há um conhecimento do título original junto do público a que se destina, que será vantajoso aproveitar; se a tradução do título original perde sentido ou ganha uma conotação errónea, caso em que tem de ser descartada. O título original também pode ser mal recebido em termos culturais num certo país, devendo ser adaptado. O título não deve ainda ter sido utilizado noutra obra para não se verificarem conflitos de direito de autor.

Encontrei, como escrevi, um texto interessante da autoria do Thiago Cardim, que pode ser lido na íntegra, aqui. Foi escrito em 2020 e leva o título seguinte: "A FINA E CONTROVERSA ARTE DE DAR TÍTULOS EM PORTUGUÊS PARA OS FILMES." Ele trabalhou numa distribuidora de cinema  responsável por trazer filmes "gringos" para as salas de  cinema do Brasil. Foi redactor numa agência e  cuidava dos textos de todos os anúncios publicitários, em todas as plataformas (TV, rádio, revista, jornal, internet), e também criava títulos dos filmes em português. Leiam na íntegra pois o relato contem mais exemplos e está escrito com precisão descontraída e humor. Deixo algumas passagens relevantes:

- Antes de qualquer coisa, preciso dizer que, tá bom, pode ser que vocês não acreditem em mim, mas na distribuidora na qual eu trabalhava, a primeira opção era sempre manter o título original ou uma tradução literal. Eu garanto, prometo, juro. E era sempre a minha opção nº 1, de uma lista com 20 ou 30 diferentes para que todo o departamento de marketing pudesse votar nas suas favoritas. Mas acreditem e reflitam, em muitas ocasiões, as traduções literais não fazem sentido. Sério!

- (...) algumas piadas, tiradas, sacadas simplesmente não cabem no nosso idioma. Eu sempre tentava a tradução literal e depois discorria em uma série de sinônimos, junções de palavras, expressões que significassem a mesma coisa. Aí, se era muito complexo, buscava talvez algo em uma frase de efeito dos diálogos, por exemplo, que pudesse tentar ajudar a vender melhor a trama. Ou quem sabe algo na sinopse. Ou então na tagline original – sabe aquela frase de efeito do pôster do filme? Por vezes até trocava ideia com os distribuidores do filme em outros países, para ver que ideias eles tinham.

-No caso das comédias, é claro que é preciso uma dose cavalar de humor para batizar os filmes. Até porque o que é humor para os americanos, para os ingleses, para os franceses, não é necessariamente humor para os brasileiros. Existe um abismo de diferença.
 
- (...) eles (filmes) precisam ser batizados de uma forma “vendável”, como parte de uma estratégia de marketing. E esta estratégia leva em consideração o público-alvo e todas as suas principais características. É óbvio que isso vai variar muito de filme para filme, de público para público e, claro, de empresa para empresa.

- Cada distribuidora acaba desenvolvendo também os seus critérios muito particulares. Mas o título tem que VENDER o filme.

- Mas é preciso tentar compreender esse fator mercadológico antes de apenas criticar a “não tradução literal.”

- O grande problema, mais uma vez, é que estamos em um país no qual não se fala inglês. A gente pode até falar, mas não representamos a massa. E aí que a gente tem que se ater ao fato de que a grande maioria não fala. No fim das contas, cabe uma regra básica de que dá pra usar o título em inglês quando ele é sonoro. Matrix, por exemplo, é fácil de falar, mesmo para quem só fala português.

- Mas já trabalhei tanto com cinema e com TV por assinatura e posso garantir que a demanda por filmes e séries dublados é dez vezes maior do que as reclamações. Juro! Não estou exagerando e as pesquisas comprovam. E é por isso que aumentou tanto a demanda por filmes dublados. E a audiência que eles trazem para a TV, e o público que eles levam ao cinema, só provam que isso deve continuar crescendo cada vez mais. É uma tendência, gostemos dela ou não.

- (...) tem a coisa de um filme que é baseado numa série, numa história em quadrinhos, num livro. Seria LÓGICO que ele tivesse o mesmo nome do original, correto? Olha… até seria. Mas é bom que se explique que esta é uma regra que nem todo mundo segue. Justamente pensando no aspecto mercadológico, existem distribuidoras que optam por não usar o título do livro se ele for pequeno, nichado ou pouco conhecido no Brasil. O mesmo vale para HQs, séries de TV e etc. É uma posição discutível, eu sei. Mas que, se você levar em consideração que um filme é um produto, faz muito sentido.

– Não consigo explicar Se Beber, Não Case, perdão. Nem adianta perguntar.


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