Cinema: Soylent Green. Nova Iorque. O ano é 2022. As pessoas não mudam.
Abertura do filme Soylent Green, veja no Youtube
Há 50 anos um filme referia pela primeira vez o "efeito de estufa". Soylent Green integra-se na vaga de filmes dos anos 70 que tinham a pretensão de avisar a Humanidade sobre um futuro desastroso, evidenciando a possibilidade de ameaças são diversas como pragas biológicas ou vírus alienígenas - The Omega Man e The Andromeda Strain, - o nuclear, "You maniacs! You blew it up!" - Planet of the apes , - ou computadores inteligentes que se revoltavam contra os seus criadores - Westworld. É hoje raro encontrar quem não saiba qual o segredo no centro de Soylent Green. As suas taglines ficaram famosas: "Qual é o segredo de Soylent Green?", - que o trailer desvendava sem esforço - ou " O ano é 2022. As pessoas não mudam. Farão o que for preciso para terem o que querem...e querem Soylent Green." Este ano toda a gente vai falar do filme de Richard Fleischer, talvez até revê-lo, ou vê-lo pela primeira vez e procurar por previsões concretizadas ou não. Aqui fica a minha contribuição, mais para quem não tenha vontade disso. Há spoilers adiante.
A abertura do filme resume de forma eficaz a ascensão e declínio da civilização ocidental através de um bom trabalho de animação de fotografias e de uma montagem muito ágil, que acelera ou desacelera ao ritmo do progresso e da estagnação nos EUA, servindo de contexto para o que se segue. Do bucolismo da vida agrícola à industrialização, da exaustão de recursos à crescente poluição, a evidência da impossibilidade de um desenvolvimento sustentável. Os campos outrora férteis tornam-se estéreis e incapazes de prover às necessidades da população mundial. A migração para as cidades foi o passo seguinte. Isto, a par da natalidade elevada, resultou numa Nova Iorque do futuro asfixiante, a rebentar pelas costuras onde nada funciona e tudo é escasso, espaço, trabalho e comida. Filme da sua época, mantém a relevância. O presente é rico em incertezas e ameaças. Fleischer afirmou que quis filmar algo que parecesse realista, usando um estilo quase documental, - talvez por isso, esta abertura, e pouco "futurismo" - embora encerrando alguma poesia.
A ficha técnica do filme foi relegada para o seu final, recupera as imagens da Natureza intocada que rodeiam Sol Roth, personagem interpretada por H.G. Robinson, quando se despede da vida. O actor - que aqui faz o seu 101º filme - morreria uns dias depois de terminadas as filmagens, tornando a cena da sua morte assistida particularmente simbólica e emotiva, e permitindo a Heston, seu amigo na vida real, brilhar como em poucos outros momentos. Soylent Green termina com a mão ensanguentada do detective Thorn erguida no vazio, num apelo pela divulgação do segredo de Soylent Green, e que, antevemos, não irá encontrar eco prático.
O ano é 2022. Numa Nova Iorque de 40 milhões de habitantes, a atmosfera citadina é doentia e irrespirável. As pessoas usam máscaras. Uma vaga de calor dura todo o ano, tudo arde, o efeito de estufa arruinou colheitas, ecossistemas. O trabalho escasseia, a classe média extinguiu-se. Os pobres vestem roupas humildes, famílias dormem nas escadas dos edifícios ou em carros abandonados, as igrejas estão cheias de sem-abrigo e orfãos. As bolachas Soylent vêm em duas cores, e também se vendem as migalhas, a preço mais reduzido. São feitas de soja e lentilhas. À terça-feira é o dia de comprar Soylent Green, a comida milagre, anunciada como mais saborosa, mais proteica, porque feita com plâncton, mas ainda assim também escassa. Há revolta nas ruas por sua causa, esgota-se rapidamente e os famintos são removidos à força por bulldozers, como se fossem lixo humano.
Nem todos vivem tão mal que olhem para uma maça como quem observa um diamante. Sol, que viveu muito, recorda-se do tempo em que havia carne à venda em toda a parte, ovos, manteiga, e por isso emociona-se e pode exclamar perante um naco vermelho: "Como é que chegamos a isto?" Os mais ricos compram no mercado negro os bens essenciais, a carne, frutas, vegetais, frascos de compota, a preço elevado. Os mais ricos dos ricos têm guarda-costas, apartamentos com ar-condicionado que vêm com mulheres jovens incluídas - elas foram transformadas em objectos sexuais, “fazem parte da mobília”, são mesmo chamadas "mobília", porque o contrato de arrendamento as inclui como tal - e outros confortos: água canalizada, que para os outros é racionada e obtida em bombas públicas onde fazem fila, e electricidade, sem que tenham de pedalar para a obter, como faz Sol, no apartamento repleto de livros que partilha com o detective Thorn. Ele, que fora professor, é agora um "Polícia livro", pessoa que sabe ainda lidar com esses objectos raros que pararam de ser impressos quando deixou de haver papel e energia. Professores e bibliotecários idosos trabalham para terceiros, fazendo pesquisa. Reúnem-se na Supreme Exchange, a biblioteca, onde só alguns "Livros" são admitidos. Ali se analisa informação, se trocam conhecimentos: eis o que resta da civilização. É assim que Sol pode assistir Thorn no seu trabalho de detective. Têm sorte: quando têm um caso, têm trabalho.
Neste 2022 o guarda-roupa é mais antiquado que futurista, os capacetes da polícia parecem ter sido pedidos emprestados ao guarda-roupa de algum filme de futebol americano. Além de um computador de jogos de vídeo com moeda, exemplar histórico, no apartamento luxuoso do director assassinado, a tecnologia estagnou porque a sociedade colapsou. Nem um relógio de pulso parece funcionar, difícil, talvez, encontrar peças que não se fabricam mais. A cidade do futuro não é muito diferente da cidade dos anos 70, nem por fora, nem por dentro das habitações. O que mudou foi a sua paisagem humana e aquilo que a move. É claro que o detective Thorn aproveita todos os benefícios do apartamento subitamente vago, envolvendo-se até sentimentalmente com a bela "mobília".
Ao investigar o crime, - um director da Soylent Green aparece assassinado - à medida que se aproxima perigosamente da descoberta da verdade, o detective Thorn acaba por ser afastado, destacado para as ruas, onde é alvo de uma tentativa de assassinato por homens a soldo do Governador. Isto sucede porque a polícia foi comprada pelo poder, o Governador, em campanha já para a re-eleição, faz parte dos orgãos directivos da empresa Soylent Green. A empresa, ao controlar o fluxo de alimentos sintéticos que garantem a sobrevivência da população, tem todos na mão: as massas esfomeadas, os agentes da ordem e os governantes. O chefe de Thorn quer encerrar o caso, mas ele pensa de forma teimosamente diferente e persiste na sua busca pela verdade.
Um relatório oceanográfico da Soylent Green, com dados obtidos entre 2015 e 2019, encontrado por Thorn no apartamento do director assassinado contém uma verdade inconveniente: os mares estão contaminados e há escassez de plâncton. Daí as pessoas, em quantidade abundante, serem o próximo recurso a usar na produção de bolachas para alimentar as massas, uma forma (de reciclagem?) que a empresa encontrou para garantir os lucros e que o Governo certamente endossou como a solução mais fácil para calar a boca dos famintos, colocando os seus objectivos mais imediatos à frente de uma solução digna e do destino do Planeta. No ano de 2022, o progresso e a falta de escrúpulos de alguns transforma uma maioria em "canibais light". Quem ousar intrometer-se neste esquema pagará com a vida o facto de ainda ter preocupações de moral ou consciência, seja um director que se tornou pouco confiável, seja o padre que ouviu a sua confissão e que perdeu o juízo, ou um detective inteligente e teimoso. Os mais fracos, os que caíram na dependência ou na manipulação da Soylent Green, são comidos pelos mais fortes. Uma classe de privilegiados adaptou-se à crise e sobrevive às custas da aniquilação de outra.
Acabar com a miséria de uma tal existência é possível através da eutanásia nos centros que o Governo disponibilizou, de forma gratuita. Eufemisticamente, Sol refere-se-lhe como "ir para casa". Sol despede-se da vida em lágrimas (felizes?) porque rodeado de imagens cinematográficas do mundo natural no seu esplendor, ouvindo a sua música clássica preferida e envolvido pela cor favorita, escolhida por ele para o ambiente da sua câmara de morte.
As pessoas nunca prestaram mas o mundo era mais bonito, tinha dito Sol a Thorn. Só que ele não tinha como acreditar. Ao chegar ao Centro de Suicídio Assistido, Thorn não consegue impedir o amigo de morrer, mas confirma o esplendor da Natureza de que ele falava nas imagens projectadas que pode também ver, um passado inimaginável para ele. O detective durão e impudente comove-se. O "Livro" seu amigo, em assembleia com outros "Livros", descobrira o segredo de Soylent Green. Todavia, aos velhos "Livros", depositários do conhecimento, faltava uma prova para poderem apresentar o caso ao Conselho das Nações. A constatação de um planeta perdido, o segredo de Soylent Green que Sol lhe confidencia, e a dolorosa perda do amigo que escolhera morrer ao descobrir a verdade, deixam Thorn destroçado emocionalmente.
O horror não acaba aqui. Thorn irá ver como são fabricadas as bolachas ao seguir o camião do lixo que transporta o corpo do seu amigo Sol para o centro de processamento. Eis a prova que faltava. Após fugas e lutas, o filme termina com Thorn ferido lançando o seu famoso apelo : "O oceano está a morrer, o plâncton está a morrer ... são as pessoas. Soylent Green é feito de pessoas. Eles estão a fabricar a nossa comida a partir de pessoas. A próxima coisa que eles vão fazer é criar-nos como gado para fazer comida. Tem de lhes dizer ( aos "Livros") Você tem de lhes dizer!" Mas...sabendo a verdade, sabendo que as bolachas verdes eram feitas a partir dos restos mortais de seres humanos, quantos teriam a coragem de as recusar, sabendo que morreriam de fome?
A tragédia da descoberta de Sol é ainda maior do que Thorn talvez perceba: a morte dos oceanos e a indicação da diminuição do plâncton, talvez devido à acidificação, significa a extinção da vida. Sem eles, sem plâncton, e uma vez que as florestas já eram inexistentes no ano de 2022, o mundo estava perigosamente à beira do fim. Os oceanos e as florestas são o suporte de vida do planeta, cada um fornecendo metade do oxigénio essencial à vida, a toda a vida. Ou seja, se Thorn fosse um cientista, e não um polícia, bem que poderia ter gritado: "Vamos todos morrer!," em vez de "Vamos todos ser comidos que nem gado!"
O filme foi inspirado pelo conto de ficção científica Make room! Make room!, escrito por Harry Harrison, focado na ameaça da sobrepopulação e consequente fome, e no controlo da natalidade, mas muito alterado na sua adaptação ao cinema por Richard Fleischer, que adicionou uma história de crime, mistério e acção para alimentar o nosso interesse até final, e a ideia do Soylent Green, do "canibalismo".
Soylent Green é uma eco-distopia contra o progresso desenfreado, a delapidação de recursos naturais, a promiscuidade entre poderes. E um apelo à dignidade humana. Sem humanidade, o Homem acabará por devorar a Humanidade. Em Portugal, o filme estreou no Cinema Apollo, em 1977, com o título À beira do fim.
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