Cinema: Don't look up. Não olhem para cima.
Don't look up é Hollywood a vender bilhetes. A história não arriscou nada, não cuidou de problematizar um assunto sério que merecia, e muito, uma história épica e mobilizadora. É uma oportunidade perdida. E também oferece uma visão esquemática do problema, - a ameaça climática tem de ser combatida em muitas frentes, não pode ser resumida a "um cometa", um problema único que se resolve com uma missão que o faça explodir em pedacinhos. Não vejo que seja uma metáfora perfeita. Além disso, qualquer semelhança entre o que ali vi e a realidade não é pura coincidência porque o filme é, personagem a personagem, muito decalcado de figuras públicas, ou figurões do nosso tempo, e da realidade, que, em muitas situações, até o excede. Do ponto de vista da sua construção, desenvolvimento de personagens e interpretações também não é brilhante. Acredito que que não fosse a bateria de nomes estrelados e se não tivesse sido mostrado no Netflix não teria obtido significativa atenção. No seu desenvolvimento até serve melhor o clima de pandemia que atravessamos, a forma como o poder, media, redes, empresas, instituições, populações, etc, comunicaram e lidaram com isso, do que o problema das alterações climáticas, que Mckay diz tê-lo inspirado. Mesmo se o protagonista di Caprio é o actor paladino da defesa do luta climática, quem é que se sentiu motivado para fazer alguma coisa pelo clima depois de o ver? Uma pena que um assunto tal apenas tenha servido para "entreter" e dividir opiniões, em suma, um desperdício. Li que os cientistas do clima adoraram ver o filme. Sentiram-se retratados porque há anos que alertam e os políticos protelam dar atenção séria ao tema, alguns negando até o problema. Por exemplo, deGrasse, mediático cientista norte-americano, disse que o filme chega a ser documental, ou seja, bem realista.Concordo com ele quanto a uma coisa: anda tudo a olhar para o chão, distraído, de olho no telemóvel. É grande o poder de alienação das redes sociais onde se exploram os conteúdos populistas, os fenómenos de celebridades, e das televisões light, um circo que facilmente mantém as pessoas alheadas da realidade.
Em Don't look up, vemos como uma Presidente Trumpesca, uma adepta do nepotismo, faz escolhas questionáveis, nomeia gente sem moral ou qualificações para altos cargos, falsifica dados para obter vantagem nas eleições, tem outras prioridades que coloca à frente dos destinos colectivos: afinal, o mundo já esteve à beira do fim muitas outras vezes e, sem preocupações de maior, ela manda relaxar, que está tudo controlado. Apesar disso, vimos muito mais do que isso quando Trump esteve no poder, hoje o panorama parece um pouco melhor. O perigo é eminente, uma questão de meses, mas os jornais rapidamente desvalorizam a descoberta científica de Kate Dibiasky e Randall Mindy. Mais tarde deixarão cair a história, é mais importante estar com o poder. Mas e Greta Thunberg? Não esteve em todas as páginas de jornais e revistas? Não foi a Pessoa do Ano para a revista Time em 2019? Não me parece que o tema do ambiente seja assim tão ignorado pelos media como Mckay quer que acreditemos. Pior do que a pouca cobertura é o excesso de cobertura que circula nas redes, muitas vezes desinformativa. Na televisão também ninguém ganha audiências a falar de assuntos sérios. Nisso, estou com Mckay, nos EUA ou aqui, é verdade que as audiências são lideradas por reality shows e similares mais facilmente do que por qualquer outra proposta mais "intelectual" ou "dramática". Se se lembrarem, foi assim que Trump ganhou as eleições. Contra a seriedade dos jornais, a TV deu-lhe espaço para ele oferecer espectáculo, ser uma personagem, oferecer histórias que incendeiam as audiências, não que as façam pensar ou deprimam. Kate, a personagem mais terra-a-terra e coerente, acredita que o cometa não tem nada de hilário e acaba transformada num meme e persona non grata da TV. Quando regressa a casa a família bate-lhe com a porta: apoiavam o plano do empresário, que viesse o cometa. O cientista cede a uma make-over e deixa-se seduzir pelo mundo da fama e das celebridades televisivas, trocando a mulher pela apresentadora louraça e vistosa, mas nada burra. Acaba por ser promovido a estrela “nerd” sexy, e porta- voz do Governo, quando o cometa se torna de uso político conveniente e é necessário alguém que dê a cara e credibilidade ao novo programa. A Presidente desiste da sua empresa salvadora dos EUA e do mundo para ceder à vontade de empresário poderoso, visionário e hedonista, que tem um plano sem base científica, claro, para salvar o mundo do cometa, da fome, e do desemprego: em vez de o estourar, quebra-se em pedaços, que se capturam e trazem de volta à Terra. Aí aproveitam-se os minérios do seu núcleo. Era lindo se fosse viável, só que não é. Mas os riscos e segurança da empreitada são-lhe são indiferentes pois em caso de catástrofe ele tem tudo assegurado para si e amigos que possam comprar a segurança: um lugar numa nave para fugir da Terra. A opinião pública está dividida entre os que acreditam no cometa e na tragédia, e os que negam a sua existência, até que uma bola de fogo cruza os céus.
O que escrevi aqui anteriormente, uma rápida postagem do Facebook, foi é, sobretudo, dirigido à incapacidade de dialogar, de trocar opiniões, a propósito de filmes, séries, futebol, tudo, que hoje campeia nas redes. Por mim, adorem o filme, que seja o filme da vossa vida. Mas será assim tão difícil aceitar opiniões diferentes SEM enxovalhar os outros? Os "críticos" são estúpidos, - sejam os críticos de cinema ou quaisquer outros que comentem o filme - pois o filme está top. O filme foi feito para o público, não para os críticos de cinema que nunca fizeram filmes! Dá vontade de rir. Os críticos nunca fizeram filmes e por isso a opinião deles tem de estar errada. Mas a opinião do Manel que só faz fotos com o telemóvel é acertadíssima! Pois bem, bons críticos, aqueles que conhecem a história do cinema, que viram muito cinema e que sabem sobre cinema, podem ser bastante úteis para alargar a nossa percepção de espectador comum. Um crítico não é qualquer pessoa que escreve sobre cinema e que as há por aí a pontapé, eu, incluída. Aliás são bem raros os críticos que vale a pena ler. Evidentemente, podemos não concordar até com o melhor crítico: temos direito a formar a nossa opinião. Mas antes de ficarmos tão embevecidos com a nossa opinião, não devíamos fazer um esforço para a basear não apenas na emoção, ou no "achismo", como tantas vezes parece? Mas, ainda assim, se não quisermos saber disso e se quisermos apenas afirmar o nosso gosto por um filme qualquer, o que é legítimo, porque não conseguimos fazê-lo sem chamar estúpidos aos outros?
A metáfora do cometa parece ter encantado muitos, desde logo Mckay. O filme, disse ele, é sobre a ameaça das alterações climáticas, que já estão em marcha, e o consequente apocalipse climático, que vai acontecer se não tomarmos medidas. Essa ameaça é como um cometa que vai atingir o planeta e de que ninguém quer saber. Ora, pessoas houve que nem perceberam que o cometa era uma metáfora e que o que ali estava em causa era uma crítica ao pouco que as pessoas se importam com os apelos da Greta... Pois bem, se muita gente não viu isso, fará alguma diferença? Digo que não, não faz, a comparação serve para um estado geral de coisas: a comunidade científica está em descrédito há muito tempo, é censurada, perseguida, até, já o era no tempo do Bush, depois tudo se tornou mais visível, graças, também à penetração da internet. Esqueçamos os EUA, quantas vezes em vez de um cientista as nossas TV chamam "especialistas" ou deixam assuntos sérios nas mãos de comentadores de plantão, é apenas um exemplo. Os orgãos do poder, e seus agentes, comportam-se de formas cada vez mais obnóxias, manipulando e deixando-se manipular, a comunicação social é cada vez menos independente, cada vez mais faz das notícias espectáculo, a investigação séria relegada para plano secundário. As empresas gigantes controlam e abusam de quem as utiliza, inclusivamente até vendendo os seus dados.
Apesar desta pertinência, Don’t look up, dá a impressão de que a causa do clima está perdida e de que o mundo está perdido porque somos todos idiotas, uns vítimas de vícios e fraquezas, outros manipulados, os que mandam e os mandados, os poderosos e ricos, os dependentes e pobres. Mas o verdadeiro problema é muito menos uma ameaça (de um cometa/ das alterações climáticas/ de um vírus) do que não exigirmos acções por parte de quem tem o poder para agir e de não sancionarmos quem não age quando temos hipótese de o fazer. Não falta consciência das ameaças, o que falta é conhecimento não superficial das coisas e acção cidadã decisiva por parte de uma grande maioria. Esta realidade não vende bilhetes, é coisa de documentário, de investigação, tal como as notícias sérias são mau material para o The Rip, o show da Tv onde os cientistas são calados à força. Resolver o desastre ambiental a separar de lixos ou a deixar de comer carne, não chega, mas dá-nos algum conforto, a ilusão de que estamos a fazer tudo o que podemos fazer. Todavia, se chamados a eleger os nossos líderes, deixamos nas mãos dos outros a decisão ou descartamos um partido que se preocupa com as " causas verdes" porque o programa tem ideias apara agir a montante do problema e não a jusante e isso é já exigir demasiado. Don't look up culpa os líderes, os seus joguinhos de poder, as suas alianças, a sua promiscuidade, as redes que nos entretêm, as TV que nos alienam, quando me parece que andamos a dormir com o inimigo e o filme não nos quer acordar, Hollywood precisa de vender bilhetes, a gente compra, vai ver, ri-se, chora, esquece. A verdade continua a ser inconveniente.
Mas há esperança para além de Don't look up. Não são apenas os cientistas que lutam, há muitos activistas pelo mundo fora, até actores que estão no palco dos acontecimentos quando é preciso (lembro-me de Mark Ruffalo) e não apenas no palco de um filme a cantar cançõezinhas com letras parvalhonas. Li num artigo sobre ecologia que enquanto a administração Trump boicotava leis importantes para combater as alterações climáticas, as cidades e os cidadãos conseguiam triunfos. Que não são necessariamente os chefes dos países que lideram as batalhas e encontram AS SOLUÇÕES para os problemas mas antes as cidades e os seus líderes, em conjunto com os seus cidadãos. Havia exemplos dos EUA e China. Talvez haja aí um bom filme à espera de ser feito. Se não houver, há sempre a possibilidade de Mckay nos oferecer um spin-off com o Brontoroc e seus amigos.
O humor é um atributo do mais subjetivo que pode haver e aqui o humor é corporizado na personagem de Jonah Hill, o filho idiota da Presidente, seu braço direito. A piada por que o filme vai ser lembrado é a de um general que cobra por snacks na Casa Branca, mais uma metáfora sobre o abuso de poder. As cenas finais abandonam a comédia, a sátira, para se tornarem o mais possível realistas e dramáticas. Mas depois dos créditos, como nos filmes de super-heróis, temos mais uma pequena cena de comédia para levantar o moral à saída do cinema. No futuro distante a Presidente, após uma longa viagem espacial na cápsula de criogenia, desperta em grande forma. Muito despida, mostra o rabo, dá duas lérias, e é comida por um Brontoroc. Mais uma vez, nem sequer teve muita graça, se é que teve alguma. E também não foi trágico. Quanto a mim, Mckay fez uma experiência que correu mal ao tentar um equilíbrio entre o humor e o drama. A sua "dramédia" ficou a meio caminho de tudo. Um cartoon, uma caricatura, uma super-produção povoada de estrelas de Hollywood com inegável poder de atração, deliberadamente pouco subtil, mas também muito descomprometida com o real problema. Devíamos exigir mais, não apenas dos líderes mas também de Mckay. Notem, escusado dizer, isto é terreno subjectivo. Não é ciência.
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