Westworld, o filme, e a série da HBO



"Where nothing can possibly go worng!"
Westworld, 1973

Westworld começou como um filme baseado num livro de Michael Crichton e realizado por ele mesmo.Westworld foi suficientemente importante para ter uma sequela, embora irrelevante, de seu nome, Futureworld, para influenciar filmes subsequentes, desde Blood city - um híbrido de western e ficção científica -   a Terminator, ou mesmo o recente Ex machina, e depois uma série da HBO, com mesmo título, autorada por Jonathan Nolan e Lisa Joy. A sua história é simples, mas fascinante. Uma empresa, Delos, oferece uma nova experiência de férias aos turistas ricos: são três parques temáticos - Europa Medieval, Roma Antiga e Velho Oeste Americano - povoados por animais e seres humanos realistas, robôs, com quem os humanos podem interagir de toda a maneira que desejem, mesmo criminosa, sem nunca sofrerem consequências danosas. Um anúncio de TV abre o filme e mostra um repórter a questionar os turistas no regresso das férias. Um turista explica que quando somos crianças e brincamos aos cowboys, uma criança dispara (bang-bang!) e a outra cai no chão, fingindo morrer. Diz ele que Westworld é assim, só que é mesmo verdade. Os robôs são cientificamente programados para parecer, agir, falar e até sangrar como pessoas reais, esclarece o entrevistador.  Eles existem para servir e proporcionar aos turistas a experiência de férias de uma vida. Infelizmente, os homens parecem tirar mais proveito do parque do que as mulheres já que relatam ter sido xerifes, ou entrar em duelos, ou ter casado com princesas; já a única mulher entrevistada parece ter apenas gozado de bom sexo no parque Romano. Este paraíso de diversão deixa de o ser quando alguns dos robôs começam a mostrar problemas de funcionamento que os cientistas e técnicos não conseguem resolver. Algumas dessas máquinas tinham sido criadas por máquinas pelo que aquele universo  não era assim tão controlado como parecia. O contagioso  "vírus" informático depressa se propaga pelos três mundos pelo que se instala o caos  em toda a estrutura e apenas um dos turistas, Peter, que tinha viajado ao parque convencido pelo amigo John,  um cliente regular, consegue escapar à perseguição implacável de um pistoleiro. Quem viu o filme jamais esqueceu esta personagem interpretada por Yul Brynner, o cowboy robô vestido de negro, de olhos reluzentes como metal. Programado para matar, ele apenas cumpre a sua missão original. O que aconteceu foi apenas uma falha na segurança que deixa os turistas à sua mercê. Não é que tenha chegado a hora da vingança ou da libertação dos robôs. Em Delos, as máquinas ainda não atingiram o nível de consciência, não ganharam vontade própria. 









Os anos 70 foram férteis em ficção científica de todo o género. Todos os caminhos foram explorados, em baixo orçamento ou em muitos dólares. Sempre gostei deste género e vi bastantes filmes, uns na televisão e outros no cinema, por exemplo, THX 1138, o primeiro filme de George Lucas, onde o livre arbítrio dos habitantes de uma cidade é controlado pelas autoridades através do uso de drogas. Em Andromeda strain, - primeira adaptação de um livro de Michael Crichton, - filme realizado por Robert Wise, que dirigiu Música no coração, um grupo de cientistas, num ambiente clínico, limpo e despojado, que sempre associei aos filmes desta década, um pouco erradamente, procuram a causa de morte da população de uma cidade: um satélite despenha-se trazendo um micro organismo letal. Solaris, de Andrei Tarkovsky, um filme sem efeitos especiais, melancólico e doloroso, história que Steven Soderbergh também filmou em tempos recentes, sobre um cientista que vai investigar o que aconteceu numa estação espacial que orbita o planeta Solaris, sendo assombrado por memórias do seu passado. Stalker, outra obra-prima do cineasta, também é desta época. A clock work orange, mais uma obra prima da década, de Kubrick, à altura polémico, hoje, um filme de culto e de inquestionável mestria, contrasta com o delirante e esquisito Zardoz, uma ideia algo ridícula do britânico John Boorman, sobre exploração das massas, protagonizado por um Sean Connery de bigodaça e quase despido, uma cabeça flutuante, pagãos e deuses. Logan's run, é outro filme que sempre me ficou na memória. O que resta da humanidade vive numa cidade protegida por uma cúpula, mas quando chegam aos 30 anos têm de morrer. Quem não aceita, torna-se fugitivo e é perseguido. Outros filmes memoráveis foram Superman e - onde Lex Luthor foi interpretado por Gene Hackman! - Star Trek, Mad Max, Close encounters of the third kind, Star Wars. A fechar a década, Soylent green. Na Nova Iorque de 2022, que o crescimento populacional e as mudanças climáticas transformaram em deserto, todos sobrevivem graças ao Soylent Green, uma alimento sintético que não é o que parece. A boy and his dog, com a futura estrela de Miami Vice, que fala telepaticamente com o seu cachorro, numa estranha história onde se troca sexo por comida, enquanto deambulam pelo deserto: os homens sobreviventes vivem no subsolo, são estéreis. The man who fell to Earth, um filme hipnótico onde David Bowie é um extraterrestre em apuros, que busca salvar o seu planeta, mas que acaba por ser seduzido pelos vícios terrenos, e o impressionante Alien, que levou o mundo a descobrir que no espaço ninguém nos ouve gritar. 

"Live without limits."
Westworld, 2016

Muitos anos após a sua estreia, alguns destes filmes continuam a cativar os cinéfilos e a inspirar os criadores a escrever novas histórias ou adaptar as antigas. Quanto mais conhecemos o cinema feito, mais difícil é ser surpreendido. Pior do que falta de originalidade são reformulações ou sequelas sem brilho. Mas creio que a série Westworld pode considerar-se bem sucedida. Note-se que apenas vi a primeira temporada e que esta postagem se refere apenas a ela. Aconselho vivamente o visionamento do filme de 1973 e da série por ele inspirada para apreciarem o resultado. Da animação da abertura, passando pelo elenco e interpretações, ou excelência da recriação visual do seu universo, ou abordagem musical, não faltam boas razões para assistir. Imaginem-se numa sala de cinema no início dessa década, antes da avalanche de novos efeitos especiais. Num anúncio televisivo, que coloca em evidência o poder da televisão na época, o entrevistador consegue a proeza de espicaçar a nossa imaginação sem mostrar um poster sequer do que seja Delos: isto é assim porque a ideia do parque de diversões é absolutamente inovadora. Actualmente esta ideia perdeu a sua frescura - sobretudo depois de Michael Crichton ter escrito Jurassic Park! - ou mesmo a da existência de robots assassinos, mas isso não impediu os criadores da série da HBO de a explorarem, desenvolvendo novos caminhos. A série é cativante tal como foi o filme no seu tempo. Cativante e ambiciosa em tudo o que pretende abordar, e exigente na forma não linear da sua narrativa. Os criadores conseguiram assim oferecer um produto final que parece ser novo sem o ser inteiramente, perfeitamente adaptado às novas audiências, quer visualmente quer em termos de enredo. Westorld não é só entretenimento pois também nos dá a possibilidade de pensar grandes questões, essencialmente o que significa ser humano, ou o significado do que seja ser livre, ou se "viver sem limites" será ético. Por outro lado, também assistimos a um braço de força entre criação/ investigação e exploração/controlo empresarial desse conhecimento, algo que de certa forma já vem do primeiro filme, que também evidenciava a preocupação com o papel crescente da interferência da tecnologia da vida humana, nos anos 70.


Depois de terem sofrido melhorias para apresentarem gestos mais ricos e subtis, tipicamente humanos, uma ideia do seu criador, Robert Ford, um dos fundadores do parque, a par de Arnold, um sócio que morreu precocemente e que tinha ficado obcecado por eles e pela possibilidade de serem capazes de desenvolver um nível de consciência similar aos dos humanos, os andróides/anfitriões acordam todos os dias para uma rotina na cidade de fronteira de Sweetwater. Seguem a narrativa que lhes foi atribuida pelo criador/escritor, com alguma margem para o improviso, a não ser que algum humano os desencaminhe para seu prazer, o que tanto pode significar sexo como morte, e, mais raramente, outra interação mais suave. Ao contrário do que acontece no filme, em Westworld, a série segue a perspectiva dos andróides. Alguns deles têm acesso a memórias que deviam ter sido limpas e linhas de código antigas, ou ouvem vozes dentro das suas cabeças, ou afastam-se radicalmente do programado. E alguns parecem até compreender que o seu mundo não é o que parece.


Na série da HBO, o antigo robô pistoleiro do filme passou a ser um turista/visitante interpretado por Ed Harris. O homem vestido de negro tem um objectivo - encontrar o real propósito de Westworld, um nível mais profundo daaquele jogo, que ele ser-lhe acessivel no centro do labirinto - e com idêntica frieza mata sem qualquer tipo de pejo, ao mesmo tempo que nos dá indícios de um mistério maior que há-de ser revelado. Os robôs do filme foram transformados em andróides, impressos em 3D, demasiado humanos, e só sabemos que o são porque as moscas passeiam pelos seus olhos sem que pestanejem. No filme da década de 70, a pista sobre a sua natureza era-nos dada pelos seus dedos imperfeitos, sendo também célebres os fotogramas que revelam o interior mecânico do pistoleiro quando o seu rosto é separado da cabeça. Na série, a presença dos andróides pioneiros que Arnold criou remetem para o filme, muito notavelmente uma cena em que o Dr. Robert Ford mostra o interior da cabeça do pequeno rapaz, que é ele mesmo, em criança. Antes deste momento, já o pistoleiro que há 30 anos visita o parque, tinha revelado que inicialmente as máquinas eram diferentes, mais bonitas por dentro, mais máquinas, mas que fruto de uma decisão de cariz económico, por ser mais barato, agora são mais "humanas". Tudo isto, uma forma de prestar homenagem ao filme e de o inserir também na narrativa. Num dos episódios é possível observar, num plano recuado e obscuro, um andróide similar ao interpretado por Yul Brynner, supostamente um testemunho de tempos passados, a origem de Westworld.


Há muitas maneiras de ser cativado por Westorld. A sedução visual funciona, logo seguida pela presença de actores veteranos como Ed Harris e Anthony Hopkins, ou mesmo Jeffrey Wright, brilhante como Bernard, talvez o meu favorito de todo o elenco, que a prestigiam. Mas Evan Rachel Wood, um nome relativamente desconhecido, é fenomenal no papel de Dolores: são admiráveis as subtis variações que introduz na sua interpretação, ora parecendo uma máquina ora uma autêntica evocação da heroína dos filmes clássicos americanos. A angelical filha do fazendeiro, que timidamente começa a questionar o seu mundo, é uma das mais antigas unidades ainda em funcionamento. Seguimos a sua rotina diária, acordando, cumprimentando o pai, depois às compras na cidade, deparando-se com o cowboy Teddy, sempre apaixonado por ela, depois regressando a casa, para um pesadelo, esperando que alguém a possa ajudar a salvar sua família. É através de Dolores e da sua jornada de sofrida descoberta e frustração, que vamos aprender como funciona Westworld e desperta a nossa empatia. É ela que irá alterar o destino do parque para sempre: prazeres violentos, têm fins violentos, diz, logo no primeiro episódio. Além de Dolores, Maeve, a atrevida prostituta, com a cabeça cheia de sonhos/pesadelos, que na sua busca por respostas atravessa circunstâncias ora repletas de horror ora de graça, e que acaba por se revelar uma hábil manipuladora, também é inesquecível. A início, a repetição de certas passagens pode parecer fastidiosa ou tornar o visionamento da série algo confuso, mas mais tarde percebemos que se destinou a fazer-nos perceber como é a vida de um "anfitrião" ao longo de três décadas de abusos. Mais intrigas vão sendo desenvolvidas, surgem personagens novas, o que alimenta o nosso interesse mas também a nossa frustração, já que por vezes o esclarecimento parece tardar.


O apuro visual é enorme permitindo-nos uma imersão fácil quer nos dois mundos: o real, futurista, e o recriado, o velho oeste americano da segunda metade do séc. XIX, o parque apenas acessível a uma elite. E por mais implausível que este casamento possa ser, funciona. Alternamos entre a vida em Sweetwater e a rotina de operações ao nível tecnológico, onde os operadores do parque - a equipa comportamental, neurológica, da narrativa, ou da segurança, etc - se esforçam para testar a conformidade das reacções das unidades e fazer ajustes em tablets, controlar as narrativas de todas as personagens criadas, vigiar as que se desviam delas, dar caça aos andróides/anfitriões que fugiram, reparar os "corpos", descartar os que já não interessam, e até mesmo manter o comportamento dos hóspedes debaixo de olho. A transição entre os dois espaços, o solar, poeirento e texturado oeste, e o sombrio, clínico, árido mundo laboratorial, é constante. A cada vez que um andróide deixa a superfície e é interrogado e examinado, ou que um técnico introduz um ajuste, aprendemos um pouco mais sobre Westworld, ou mesmo os seus bastidores. Vale a pena investir a nossa paciência e atenção nisso. Mas quanto mais conhecemos, mais cresce a nossa empatia pelos andróides/anfitriões e mais cruel nos parece o seu destino. À medida que se somam revelações, - algumas de todo inesperadas - somos forçados a rever o que julgavamos saber e então a história ganha compelxidade. São mais profundas as relações que se estabeleceram entre criadores e anfitriões do que os primeiros episódios prenunciavam, e as suas motivações. Westorld é uma série cheia de subtilezas e é fácil que nos escapem, mas a nossa atenção é recompensada. E o último episódio sana qualquer dúvida que ainda pudéssemos ter.

O acompanhamento musical é bem sugestivo, desde logo com a sonoridade dos pianos mecânicos, que nos são apresentados logo na abertura, quer no gabinete de Robert Ford ou no Mariposa, o salloon de Maeve. Importantes peças de música são recreadas e tocadas ao longo da série no piano mecânico, uma metáfora mais do que adequada para os andróides do parque: de Debussy, Clair de Lune, de Chopin, Nocturne No. 14 em C Menor e de Scott Joplin, Weeping Willow Rag. Também versões de canções bem conhecidas dos Rolling Stones ou dos Radiohead, entre outros, além da estupenda música original, de Ramin Djawadi. Mas convido-vos também a ouvir a banda sonora do filme e deixo aqui um dos temas, A perseguição, que é da autoria de Fred Karlin, que, aliás, inspirou o compositor alemão em Nitro Heist e Sweetwater. Outros efeitos sonoros do filme levaram à composição de Freeze all motor functions.


Westworld começa por entreter-nos com a ideia de um parque avançado de diversão onde é possível viver sem limites, povoado por máquinas demasiadamente parecidas connosco. Depois inquieta-nos com a possibilidade dessas máquinas poderem ascender a um nível de consciência que consideramos exclusivo dos humanos, de sentirem, de terem consciência. E depois provoca-nos ao lembrar-nos que, por vezes, calhando demasiadas, somos mais parecidos com essas máquinas do que desejaríamos. O Dr. Robert Ford, o seu criador, que anda a fazer as vezes de Deus, ou talvez de Moros, deus grego do destino, em Westorld, diz que vivemos em ciclos, - isto é, na vida real - tal como os andróides/anfitriões do parque, não questionamos as nossas escolhas tanto quanto devíamos, seguimos com as nossas vidas, a maioria das vezes satisfeitos, aceitando que nos digam o que fazer de seguida. E então damos por nós a pensar que, às tantas, quando estavamos a torcer pelas máquinas, pela esperançosa Dolores e pela voluntariosa Maeve, desejando que conseguissem conhecer a verdade, sabotar o sistema, emancipar-se e libertar-se daquela malha de exploração, também estavamos a torcer por nós...Uma série magnífica para os amantes da ficção científica onde o trabalho dos actores é o grande trunfo a ser apreciado.

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