Em EVIL, série de TV, há sons que apenas os jovens conseguem ouvir


Há uns tempos vi a primeira temporada de uma série transmitida originalmente pelo canal CBS, focada no sobrenatural de nome Evil. Apesar de razoável nem todos os episódios me pareceram igualmente satisfatórios. A série, feita para TV, não podendo ser muito explícita em termos de terror, consegue explorar situações capazes de nos causar no mínimo desconforto e estranheza, e joga bem com a ambiguidade necessária para alimentar a dúvida sobre os casos que vão surgindo. A actriz  protagonista Katja Herbers tem um desempenho cativante como Kristen Bouchard, sendo, na minha opinião, claro, uma das melhores razões para ver a série. 

Abordando mistérios diversificados, Evil examina as origens do mal em manifestações que se situam numa zona cinza capaz de envolver a ciência e a religião e que desafiam o consenso. Uma psicóloga forense não crente, que busca explicações apenas lógicas e científicas, mãe de quatro miúdas e com o marido ausente, uma vez afastada das suas funções em tribunal alia-se a um padre em formação que a contrata para legitimar os seus achados. Em conjunto com um técnico que os assiste o duo em necessidades informáticas e electrónicas, muçulmano, investigam dossiers ​​da Igreja, incluindo supostos milagres, possessões demoníacas e assombrações, já que o Vaticano quer tudo esclarecido. Caso a caso, têm de avaliar se há uma explicação lógica ou algo sobrenatural a justificar os fenómenos. Além deles existe Leland, um psicólogo forense que se vendeu ao diabo e que parece ser a prova mais evidente de uma história maior que percorre a série, uma grande conspiração assente numa vasta rede do mal que as novas teconologias e redes sociais permitem agilizar, convergir e organizar-se agora muito mais facilmente do que em tempos passados.

Engracei com um episódio que aborda uma estranha epidemia de canto. Os alunos de uma escola não conseguem tirar uma melodia cativante da cabeça. Eles apenas trauteiam a melodia, não conhecem a letra, não sabem onde a ouviram: apenas cantam sem conseguir parar. Lembrei-me de Baby Shark! "Baby Shark, doo doo doo doo doo doo doo doo". Parece que uma vez ouvida também nunca mais sai da cabeça das crianças! Foi composta pelos educadores norte-americanos Shawnee Lamb e Robin Davies na década de noventa mas em 2015, Pinkfong, uma marca sul-coreana de brinquedos e produtos educativos, fez uma animação com uma família de tubarões coloridos para a canção que se tornou viral no YouTube. Só fiquei a conhecer a musiquinha uns tempos depois quando estourou uma polémica: três funcionários de uma prisão em Oklahoma, nos Estados Unidos, foram acusados de usá-la para punir presidiários que, algemados, foram forçados a ouvi-la por duas horas! Nas prisões do Afeganistão e no Iraque, os americanos usaram canções para torturar prisioneiros por via do sofrimento emocional, rap, heavy metal e canções patrióticas. Que uma canção infantil possa ser uma tortura já não será novidade para alguns pais...!

Retomando a série Evil, Kristen acha que é algum tipo de transtorno obsessivo compulsivo, de cariz auditivo, chamado earworm  ou "Síndrome da música cativa" e graças à sua filha mais velha, ela descobre que a música é de um vídeo online. Evil brinda-nos então com uma engraçada animação chamada "Pudsy's Christmas", elaborada para a melodia cativante escrita por Jonathan Coulton e onde o  Pai Natal  prova um ursinho de goma e fica high.  Na escola a música, como um vírus, contagiou outras alunas.  Kristen sugere várias hipóteses conhecidas: a epidemia de risos em Tanganica (actual Tanzânia) de 1962, que foi um surto de histeria em massa, ou doença psicogénica, num internato de meninas. Durou 15 dias nos casos extremos, afectando 80% das crianças. Em 1518, a praga da dança, em Estraburgo, começou com uma mulher a dançar na rua. Um mês depois, o número chegou a 400 pessoas. E nada fazia com que elas parassem de dançar, nem mesmo a morte de algumas por exaustão ou ataques do coração. O surto, ou "contágio cultural",  acabou passados quatro meses.

Head Gear Animation, ver aqui

Mais adiante a psicóloga encontra "Pudsy's Christmas" no vídeo de uma influencer, Malindaz, intitulado "Malindaz's Challenge", com 90 minutos de duração. No final, quem disser "Desafio de Malindaz" três vezes, ficará louco. Ela assiste e as quatro garotas suas filhas ouvem a música chegar ao seu quarto, e começam a ficar loucas, sim, mas porque além da música, elas também podem ouvir a voz de um homem assustador que fala. Uma delas tenta furar o tímpano, chorando porque não consegue tirar a voz do homem da sua cabeça. A voz está numa frequência de 17.000 hertz que apenas crianças de 16 anos podem ouvir e as encoraja a matarem-se, além de lhes pedir para fazerem parte de seu exército.

Ora foi assim que me lembrei do Mosquito! O dispositivo emite um som pulsante de alta frequência que pode ser ouvido pela maioria das pessoas com menos de 20 anos e quase ninguém com mais de 30, o que se explica pela presbiacusia - perda de audição motivada pelo avanço a idade. O som é projetado para irritar tanto os jovens que, após alguns minutos, eles não aguentam mais estar por perto do seu alcance e vão embora. A exposição ao som torna-se irritante após 5-10 minutos. Em teoria, o alcance da audição humana é de 20 hertz a 20 quilohertz, mas para a maioria é muito mais limitado. À medida que envelhecemos, tendemos a perder a faixa superior da nossa audição. O Mosquito emite um som que se modula entre 17,5 e 18,5 kHz, uma faixa de frequência que a maioria das pessoas com mais de 25 anos não consegue mais ouvir. O que torna o som do Mosquito tão incómodo é o facto de não ser uma canção, algo passível de explicação, é apenas um ruido que parece nascer dentro da cabeça.


Faça o teste de audição Mosquito, aqui

Em 2005, no Reino Unido, alguns lojistas e instituições públicas instalaram um poderoso dissuasor sónico chamado Mosquito que fazia com que os mais jovens se sentissem incomodados. Perdemos progressivamente a audição para altas frequências, assim como deixamos de ver com a mesma capacidade à medida que envelhecemos, um fenómeno fisiológico conhecido como presbiacusia. Howard Stapleton, o inventor do Mosquito, era menino quando se sentiu incomodado pelo ruido de uma máquina de solda ultrassónica que usava som de alta frequência para derreter e fundir plásticos, numa fábrica. Mas os operários não ouviam. Eles ficaram intrigados com sua reação já que não tinham ouvido nada. Quando a filha de 15 anos do inventor foi assediada por um grupo de adolescentes junto a uma loja, o pai teve a ideia de desenvolver algo baseado no som para os afugentar a assim surgiu o Mosquito,  um convite a que os jovens abandonassem a frequência de certo espaço.

De acordo com estudos encomendados o Mosquito era incapaz de causar danos auditivos de longo prazo ou outras lesões físicas. Mas além da dor ser algo subjetiva, o aparelho criou tensões entre grupos sociais,  jovens e adultos, sendo motivo de muita crítica.

O Mosquito foi testado primeiro na entrada de uma loja, em Newport, numa cidade no sul do País de Gales, para afastar das entradas das lajas os adolescentes que, de plantão, por ali ficavam a fumar, a beber, a gritar palavrões para os clientes e que por vezes entravam nas mesmas lojas em grupos ameaçadores para simplesmente perturbar ou até roubar. 

Stapleton, um consultor de segurança cuja experiência na instalação de alarmes de lojas e similares foi sensível a esta situação, encontrou a solução para afastar os indesejáveis. Já havia soluções. Algumas lojas, por exemplo, usavam "lâmpadas de acne" capazes de iluminar uma luz azul na pele o que acentuava quaisquer espinhas e outras manchas. Isso deixava os jovens desconfortáveis e acabavam por sair. 

Usando seus filhos como cobaias, Stapleton experimentou vários níveis diferentes de ruído e frequência, primeiro com tom único, depois um tom pulsante, segundo ele, mais insuportável e que pode ser transmitido a 75 decibéis, dentro dos limites de segurança auditiva, pois não queria causar dor, apenas importunar. O Mosquito foi colocado no mercado em 2006 e foi instalado em mais de 3.500 locais em todo o Reino Unido.



Uma empresa começou a ganhar dinheiro vendendo o mesmo ruído como toque de telemóvel que os adolescentes começaram a usar nas salas de aula para serem alertados da chegada de uma mensagem de texto sem que o professor da aula se apercebesse. Espalhou-se rapidamente pelas salas de aula britânicas. Quando a filha adolescente de Stapleton voltou para casa com o toque no telefone, ele percebeu que era uma oportunidade de fazer mais dinheiro e criou o toque oficial. O TeenBuzz, também conhecido como Mosquitotone ou Zumbitone, tornou-se um popular ringtone.

O "Dispositivo de dispersão de som de alta frequência para adolescentes" não foi totalmente bem recebido. Um relatório do Comitê de cultura, ciência e educação do Conselho da Europa pediu a proibição do aparelho, afirmando que era altamente ofensivo, que podia violar os direitos humanos, além de ser potencialmente discriminatório. Por tratar os jovens como se fossem pragas indesejadas podia constituir um tratamento degradante. Membros do Parlamento Juvenil do Reino Unido de todo o país também promoveram uma campanha chamada "Bite Back", para o banir. O UK Health and Safety Executive concluiu que, embora alguns efeitos subjetivos de curto prazo fossem possíveis com a exposição prolongada ao ruído, parecia haver pouca probabilidade de as pessoas sofrerem de problemas de saúde a longo prazo. Outra campanha chamada "Buzz off", liderada pelo comissário das crianças da Inglaterra e apoiada por grupos, incluindo o grupo de liberdades civis Liberty, pediu que fosse proibido e conseguiu que fosse banido no condado de Kent. 


As organizações destacavam a forma negativa como as crianças e os jovens estavam a ser perspectivados: eram medidas que as demonizavam, criando uma divisão perigosa e cada vez maior entre jovens e velhos. Além disso, o Mosquito não abordava a causa na raiz do comportamento anti-social e não diferenciava entre jovens desordeiros e jovens pacíficos. Os seus defensores argumentavam que o dispositivo era apenas usado como último recurso em situações em que após  funcionários e clientes serem intimidados por jovens anti-sociais, e estes instados a terminar com tal comportamento, persistissem na conduta. Estes jovens tinham de ser responsabilizados pelas suas acções de alguma forma e o aparelho revelava-se útil. 

Fazendo uma busca, encontram-se notícias relativamente recentes de polémica envolvendo o aparelho que é usado um pouco no mundo inteiro: em 2017, Inventor of the Mosquito "anti-teenager" device defends its use at Great Yarmouth McDonald’s restaurant. Em Norfolk, os adolescentes queixaram-se de dores de cabeça, mas a loja disse que o aparelho está instalado há muitos anos e só é usado como último recurso. A polícia lançou uma iniciativa de nome Respect. Give respect. Get respect. - que convida os adolescentes a não usar palavreado ofensivo, a intimidar, a deitar lixo ou a cuspir no chão, na esperança de que isso faça com que pensem duas vezes sobre as suas ações, além de ter aumentando as patrulhas a pé e de veículos na área.

O Mosquito não é o único dispositivo pensado para alterar o comportamento humano, nomeadamente o dos jovens, por via do som. A música clássica, sobretudo a barroca, sabe-se lá por que razão, tem sido usada para dispersar jovens e dissuadir o vandalismo no espaço privado ou público, de parques de estacionamento, - Mozart e Beethoven, em 1985, no Canadá -  a estações de metro - em Londres, em 2005 - , ou lojas, e até para tentar evitar que sem-abrigo pernoitem em certas áreas. Não há estudos sérios sobre o assunto, mas  instituições e empresas começaram a colocar música clássica em espaços públicos e privados para afastar os jovens e a dizer que resultou. Supostamente os jovens não simpatizariam com esse tipo de música, que é "old school", coisa de gerações anteriores, essas indiferentes ou agradadas com o som, fazendo com que os mais novos abandonassem o espaço por não se identificarem com ela. Não sei até que ponto isso é mesmo eficaz mas alguma música que é tocada em lojas já me levou a comprar mais depressa, sair mais depressa...Só que o gosto musical é algo de muito subjectivo.

Todavia, o "muzak", - termo usado para definir a "música de fundo" nos EUA - o tipo de música de fundo comumente ouvida em shoppings, aeroportos e hotéis, centrais telefónicas, salas de espera, etc, com o objectivo de relaxar - é um negócio de anos, e existe porque todos sabemos que a música nos afecta. O que faz a música, afinal? Se alguém ouve uma música que lhe agrada, há produção de dopamina  - um neurotransmissor que regula as emoções, promove sentimentos de prazer, motivação e recompensa. Por isso a música é utilizada pelo marketing ou em filmes para induzir estados de humor. O que não deixa de ser estranho é a associação da música clássica a vilões e sociopatas no cinema. O primeiro exemplo que me lembro é do filme Apocalypse Now, o tenente-coronel Kilgore tocava A Cavalgada das Valquírias, de Wagner, para incutir medo no adversário escondido na selva. Em "A Clockwork Orange", o protagonista Alex De Large, líder de um gangue juvenil, tem uma obsessão pela Nona Sinfonia de Beethoven e os seus crimes são cometidos ao som da música. No "O Silêncio dos Inocentes", Hannibal Lecter ouve as Variações Goldberg de Bach depois de agredir polícias. E outros exemplos devem existir.


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