Relembrando Michael K. Williams em The night of. Série HBO

Michael K. Williams começou a carreira a dançar com Madonna e George Michael, depois subiu aos palcos para fazer teatro. Alguém fez-lhe uma cicatriz na cara com uma navalha no seu 25º aniversário  e isso valeu-lhe o papel de Omar Little em The Wire, por ser adequado à personagem de bandido em causa. Não o vi em The wire, referência por que parece ser mais conhecido. Ainda ontem pensava que até ao Covid se ter espalhado e forçado a alterações de rotina de produção e exibição de filmes quase tinha desistido de ver séries de televisão. Os filmes, meus preferidos, vinham sempre primeiro e depois disso já não tinha tempo para séries. E nos filmes Michael K. Williams também estava presente. Do que li, o sucesso de The Wire parece ter sido surpreendente e difícil de lidar para Williams. Por essa ocasião - segunda temporada - o actor tinha voltado a beber, tomava drogas e tinha consciência de que andava a "brincar com o fogo", confessando que poderia até ir parar à prisão e ser libertado da série onde triunfava. Passaram-se muitos anos sobre essa afirmação. Morreu no apartamento onde morava, em Brooklyn, em Nova York, no dia 6 de Setembro, devido a uma overdose. Tinha 54 anos e certamente muitas oportunidades o aguardariam ainda não fosse este infeliz desfecho.

Por regra não costumo escrever sobre a morte dos artistas. Para quê? Não falta quem o faça, uns por obrigação profissional, outros por devoção ao seu ídolo desaparecido. Em qualquer canto da internet será demasiado fácil ler sobre a sua vida profissional em retrospectiva, os prémios recebidos, talvez os escândalos, se os houve, as citações sobre o vazio que fica junto de quem os conhece, a decepção do seu público por já não poderem dar vida a novas personagens. Mas desta vez aqui estou a escrever sobre Williams. Porquê? Porque ainda não há uma semana acabei de ver The Night Of. Cheguei até essa série por indicação da Mafalda. Vi que Riz Ahamed - o Ruben Stone, no aclamado Sounds of Metal, ainda presente na minha memória - e John Turturro - vi a maioria dos filmes onde entrou desde o tempo dos Cohen - entravam nela e por isso decidi ver. Das várias interacções entre personagens, a de Freddie Knight - interpretado por Williams  - e Nasir - interpretado por Ahmed - é das mais intrigantes.

Nesta série da HBO, por caso também escrita por Richard Price, que tinha escrito episódios para The Wire, Michael K. Williams interpreta um recluso de Rikers Island de nome Freddy Knight. Ex- boxeur e homicida, poderoso, ele controla tranquilamente a prisão e até o que se passa em Queens, bastando para isso estalar dois dedos. Freddy tem um diploma na parede, de que se orgulha, e parece grato por lhe ter caído no colo um estudante paquistanês, assustado, ingénuo e frágil, com quem pode finalmente ter uma boa conversa e até jogar xadrez. Mas inteligência é pouca moeda de troca no meio prisional. Se quer  protecção e uma cela privada, Nasir é rapidamente chamado a colaborações mais exigentes, como ser mula de droga. Esta serve para consumo de Freddy e dos seus próximos, e para negócio, é assim que faz dinheiro e reforça o seu poder. Apadrinhado e orientado por Freddie, Nasir Khan é formatado para se tornar um recluso a sério, o que implica também mudar a sua aparência. Abundam clichês, - e como eu detesto essa palavra -, pois ele começa a cobrir-se de tatuagens, (nos dedos de cada mão lemos Sin-Bad, há uma coroa no seu pescoço) rapa o cabelo e faz exercício para ser capaz de usar os punhos e não apenas para se defender. Até o seu andar se transforma. Se, inicialmente, talvez até tenha acreditado em Freddie, mais tarde questiona que ele se importe com ele. Freddie justifica, ao contrário dos outros prisioneiros, que ele "cheira a inocência". Nas e Freddie, as suas cenas, têm uma química incomum, não apenas pela auntenticidade interpretativa mas também pela sua ambivalência. Talvez Freddie estivesse realmente viciado em Nas - o seu "unicórnio" -  tanto quanto na droga que ele ajudava a entrar na sua cela. Infelizmente, quando Nas sai da prisão, a mentoria de Freddie tinha sido tão bem sucedida que até a sua natureza se tinha alterado: estava agora mais habilitado a sobreviver entre quatro paredes do que em liberdade. De volta a casa,  olhado com suspeita por todos no espaço público, estranhos e amigos, e desconfiando de todos, até da sua mãe, Nasir compra droga nas ruas e vai fumar à beira rio, só, no mesmo local onde partilhara drogas com Andrea.


The night of não mostra algo diferente, não é original, mas ainda assim ficamos até ao último episódio, apreciando a sua abertura em tons negros, a fotografia pesada, escura, e os ângulos claustrofóbicos, os close-ups. Fruto de um acaso, um rapaz e uma rapariga passam a noite juntos, há drogas e álcool, ela aparece morta em circunstâncias brutais, ele diz que não se lembra do que aconteceu, não tem alibi. O dinheiro não existe para pagar uma boa defesa, na polícia e na justiça há discriminação racial, a prisão é um inferno, o preconceito conduz a retaliação na comunidade, na advocacia e na promotoria jogam-se interesses vários, etc. As vizinhanças da multicultural Jackson Heights, Queens, onde Naz vive com os pais, Manhattan e o requintado Upper West Side, onde vive Andrea, jovem oriunda de uma classe privilegiada, já foram filmados muitas vezes, mas ainda assim parece a primeira vez de tão bem.

Talvez o invulgarmente longo, lento, tenso e meticuloso primeiro episódio seja decisivo para nos envolvermos na descida de Nasir ao inferno. Bem sei, é um clichê usar esta expressão, assim como o é também a história de Nasir na prisão. Ou talvez então seja antes por John Stone, - interpretado por John Turturro - um advogado com ar desleixado, gabardine à Columbo e sandálias abertas, de turista, que sobrevive a fazer acordos para a pequena criminalidade. Subitamente ei-lo com um caso de homicídio nas mãos, um que lhe poderá valer mais dinheiro do que ganha num ano, e reconhecimento, mas até a sua mulher questiona se tem competência para tal. Talvez, de facto, ele tenha visto a inocência nos olhos de Nasir. Mas, mais provavelmente, ele apenas está a tentar ganhar dinheiro: até Hitler tem direito à melhor defesa, diz, em visita à escola do filho, onde também é desrespeitado. 

Stone há muitos anos que é menosprezado profissionalmente e ostracizado em virtude da sua doença: idealmente alguém que faz discursos em público não deveria ter má aparência, pés feridos envoltos em plástico e pele lesionada. Padecendo de asma e de eczema, o seu quotidiano sofrido, tanto física como psicologicamente, envolve visitas a grupos de apoio, médicos, tradicionais e alternativos, e farmácias. Tenta corticosteróides, pós triturados misturados em água, banhos de lixívia e lâmpadas UV, e abusa de pausinhos chineses para aliviar coceiras nos pés, não se coibindo de o fazer aos olhos de todos, no metro ou na sala de espera do tribunal. Apesar disso, contra tudo o que é bom senso, ainda resolve adoptar o gato de Andrea que lhe causa alergias! É uma personagem trágica e no último episódio leva o nosso coração com ele, quando faz as alegações finais no tribunal. (Um grande actor é um grande actor.) Talvez seja, quem sabe, por causa do gato que ficamos até ao último episódio: será que Stone lhe consegue encontrar um dono? Ou será porque acreditamos que o detective Box, a "besta subtil", que em cada fala carrega o cansaço de uma carreira longa e difícil, não conseguirá reformar-se e deixar a secretária sem esclarecer a dúvida sobre a autoria do crime, dúvida  que, às tantas, existia nele desde o início, apesar de ter dado andamento à acusação de Nasir? 

A dúvida sobre o que aconteceu na noite do crime é legítima: nem Nasir sabe o que aconteceu, tantas as drogas e álcool que circulavam no seu sangue. Para mim, a série sempre foi sobre um inocente apanhado pela circunstância e não sobre um lobo com pele de cordeiro, mesmo se nos dão motivos para desconfiar. Quando The Night of termina, naquilo que pode ser um final decepcionante, sem vencedores e vencidos evidentes, parece ser claro que o objectivo desta história era sobretudo mostrar como uma pessoa pode ser facilmente transformada numa versão deturpada de si mesma quando um sistema de justiça não oferece garantias de um julgamento imparcial. Mais uma vez, nada de muito original, mas pertinente e assustador porque acontece.

Em Call of the Wild, o livro que Freddie dá a Nasir quando este deixa Rikers, um livro que ali dentro é considerado um manual de sobrevivência, Buke, o cão doméstico, habituado a uma boa vida, depois de ser roubado e vendido, e de passar por diversas injustiças, encontra refúgio com um grupo de cães de trenó no Alaska, adapta-se, descobre um outro Buke quando vem ao de cima o seu instinto primordial. Buke transforma-se e acaba a comandar lobos. O que me deixou a pensar: se houvesse um segunda temporada para The nigh of..., que futuro seria escrito para Nasir?


Michael K. Williams 1966-2021

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