A vacina, uma crónica de Fernando Namora
As justificações não a convenceram. E deixou no ar uma frase:
- O meu homem é que não queria tal coisa. Até bateu no rapaz.
O cigano, com efeito, apareceu – e nesse mesmo dia. Era um rufião de patilhas farfalhudas, rosto encardido, orgulhoso da sua condição de pária. Os seus modos belicosos não agoiravam conversa fácil. A ele, a ele ninguém enredaria com essa teia de palavrório obscuro, que era mel venenoso dos senhores médicos. Por mais voltas que dessem, o facto é que, sem o seu consentimento, a visitadora escolar tinha feito ao garoto o que lhe dera na gana. Vai daí, o corpo lançou-se-lhe para a frente, no jeito de chicote brigão, e entrou ligeiro no assunto:
– Foi vossemecê que picou o meu filho? Ninguém lho permitiu.
A visitadora não se acobardou. Fitando-o sem ofensa e sem embaraço, dirigiu-se-lhe de mão aberta, de igual para igual:
– É então o senhor o pai daquele menino chamado Avelino, que eu vacinei há dias? Gosto dele, sim senhor. É um menino atilado e bem simpático.
O cigano ficou perplexo, coçando o unto da cabeça. Já não se via provocação no seu olhar escuro. Apenas espanto. Um espanto que, progressivamente, se transformava no ávido júbilo das reconciliações. Nessa altura, aceitou a mão que lhe era oferecida. Segurou-a mesmo na sua, enquanto disse:
– Foi a senhora a primeira pessoa que chamou “menino” ao meu filho. Acha então que o meu filho também é menino?
– Claro que sim. É tão menino como os outros. Por que não havia de ser?
O cigano, amuadas as palavras na garganta, despediu-se sem mais razões. E, no dia previsto para a nova dose de vacina, o Avelino apareceu escoltado pelo pai. Mas não vinham sós. Por detrás deles, outros rostos morenos e indóceis, os ciganos da súcia de Alcântara, que vinham confiar os seus filhos àquela senhora que lhes chamava “meninos” e sabia defendê-los das moléstias ruins.
Fernando Namora, Um Sino na Montanha (Cadernos de um escritor) 1968
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