A trilogia do verão


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Qual é a vossa trilogia do Verão? As 50 sombras de Grey? A Baztán? A trilogia original da Guerra das Estrelas? A sensível trilogia das cores de Kieślowski? Ou a Millenium? Entre livros e filmes o que não faltam são trilogias para desfrutar do tempo livre à sombra do chapéu de sol ou pela noite dentro, depois do regresso da passeata pela marginal da praia. Vá lá. Confessem. Aposto que a vossa trilogia do Verão é uma "ménage à trois". Ah, não? Ah, sim! Sim! Sim! Cerveja com tremoços e amendoins! Mas pensavam que eu estava a referir-me a quê? Também é a minha trilogia, uma que não dispenso sempre que me sento numa esplanada à sombra do guarda-sol. Por vezes, para meu grande desapontamento, o estaminé escolhido ao calhas não tem amendoins ou tremoços. Mas nunca me aconteceu não haver cerveja. A cerveja corre em Portugal como um rio. Mas um rio com muitos afluentes. A cerveja chega a todo o lado. Ininterruptamente. Por agora basta de divagações alcoólicas. Voltando aos sólidos, o que é costume fazer-se naquelas ingratas ocasiões em que ouvimos um "não temos" é que um dos presentes dê um salto a uma das vendas ambulantes que tradicionalmente ocupam pontos estratégicos nas imediações para aí se abastecer do que falta na mesa. Depois chama-se o empregado e se o dono do estabelecimento for dos que reconhecem a importância mitológica da trilogia do Verão, lá chegam uns pratos com um sorriso para acomodar as cascas. E agora sim, o convívio pode começar. 

Com o mês de Agosto terminado e a noite a encerrar os dias cada vez mais cedo, já se desenha um fio de melancolia no meu horizonte. E então ocorre-me o pregão do vendedor que calcorreia o areal: " Bolas! Bolas de Berlim! Já só há três! Aldrabão." Ora, aconteceu que num destes fins de semana que já começam a lembrar-nos que o Verão não dura para sempre, por mais que me tente iludir, me encontrei com um velho amigo, e duas amigas dele, que eu não conhecia, numa das esplanadas com vista para o mar que abundam nas nossas abençoadas marginais de praia. O estabelecimento tinha tudo a meu contento mas o que eu não esperava era um inflamado debate entre as duas cachopas, esqueci-me de dizer muito "instagramáveis", que quase estragou o clima perfeito. 

A amiga do amigo delas, mais velha, de cabelo caótico, no seu despojado e prático traje de praia, apareceu disponível para o convívio, desde que breve e não penalizador em demasia do mergulho mal a ocasião se tornasse propícia. Com a água invulgarmente aprazível era preciso aproveitar que o tempo de Verão começa a fugir. Só se a conversa se tornasse muito, muito agradável é que ficaria por ali até ao por do sol. As jovens não demoraram a dar-me incentivos para abandonar o barco já que pareciam apostadas em estragar-me  - ou estragar-nos  - a degustação daquele final de tarde! A gota de água que acendeu o desafio verbal mal a empregada de mesa se aproximou de nós foi a cerveja que eu pedi. Uma delas insistia, dirigindo-se-me, que a cerveja não era uma boa opção, que engordava muito! (Mas alguém lhe tinha pedido uma opinião? Acaso estava a chamar-me gorda?!) Para ela, " a barriguinha de cerveja" era o fantasma de serviço à mesa de qualquer esplanada de Verão. A outra, pelo contrário, afirmava que isso era um mito enquanto dedilhava o telemóvel, que parecia absorvê-la bem mais do que conhecer-me melhor, ou mesmo fingir estreitar laços ou apenas aturar a amiga do seu amigo, por atenção a este, acabada de conhecer. 

Às tantas eu tornei-me invisível porque as duas percorriam avidamente o telemóvel com os olhos, segurando-o com a mestria de quem domina a máquina, fazendo do seu manejo um modo de vida. Usavam apenas uma mão para a função de pesquisa enquanto a outra caracoleava pelo ar, a bolsa no regaço, e nem as unhas longas e manicuradas atrapalhavam na busca.  Percebi depois que procuravam evidências, fundamentação para o que diziam, talvez os estudos científicos que proliferam a propósito de tudo na internet. Fiquei - ficámos, eu e o meu amigo, que tinha pedido uma água das Pedras -  então a saber por uma delas, a mais loura, de cabelos tão escorridos que pareciam ter sido passados a ferro, que a cerveja diminui o risco de pedras nos rins em virtude da água e do álcool nela presentes, que também aumenta a excreção de cálcio. Ou o risco de sofrer um AVC porque contribui para melhorar o fluxo sanguíneo... Ou que fortalece os ossos por ter elevados níveis de silício. (Ou seria cálcio? Já não sei. ) Mas porque não colocam isto nos rótulos, já me perguntava eu, enquanto lambia a espuma que se agarrara ao meu lábio.  Tal como fizeram com o leite - que faz bem aos ossos - ou com os iogurtes - que melhoram a flora intestinal. A outra, menos loura natural, mais pedida emprestada a madeixas, mas também de cabelos longos se bem que ondulados, preferia os números e debitava calorias e percentagens como um papagaio. Os telemóveis deviam ser proibidos nas esplanadas, mas nem nem sequer havia um daqueles cartazes por perto que dizem: "We don't have wi-fi. Talk to each other. Pretend it's the 90's." Era de aguentar, pelo menos até a cerveja acabar.

Aquela troca verbal já parecia um debate político de fraca qualidade. Eu, desejando ver encerrado o amargo assunto mais do que contribuir para o diálogo, gracejei que o melhor teste era experimentarmos todos uma alimentação rica em cerveja por um mês, ou seja, exclusivamente líquida,  e ver se nos aparecia uma "barriguinha de cerveja". Nem eu nem o meu amigo evidenciamos esse sinal exterior de gordura embora já nos tenhamos sentado à mesa pelo menos três vezes mais vezes do que as duas meninas ao longo da nossa vida de comensais. E as duas instagramáveis nem esse sinal nem outros: eram "linha zero", sem dúvida alguma. Talvez não intolerantes ao glúten mas, muito simplesmente, a tudo o que engorda. Ou então apenas ainda protegidas pela juventude dos seus organismos. 

Obviamente, ou não, a jovem loura não achou qualquer piada à ironia da minha  sugestão. Adivinhei-lhe olhares  criminosos na direção do meu copo coroado com um triunfante colarinho branco de espuma, ou talvez na minha mesmo, por detrás das lentes espelhadas e do queixo mascarado atirado para a frente com desdém. Bem sabia que tinha sugerido um teste absurdo mas com um resultado que se adivinhava sem qualquer consulta ao Google...Se os meus olhos falassem implorariam por alguma piedade pla loura, não a moça, a outra, a ancestral mistura de água, lúpulo e malte. A pobre cerveja, que até é livre de açucar, tem uma fama pior que o vinho do Porto, que é um doce de bebida. Mas, pensando melhor, para com os meus botões, tem fama e proveito, porque eu nunca vi ninguém beber uma garrafa de vinho do Porto de uma vez só mas já vi beberem muita garrafa de cerveja à litrada, ah, pois é. Deixei a minha mente voar até ao horizonte, ajustei o meu chapéu de palha e recostei-me na cadeira depois de beber mais um golo de cerveja fresca. Atrás de mim, um zumbido a fugir, era a canção do Toy,  "Tira a cerveja do congelador e vem fazer amor. Rapapapa." a tocar ao léu na rádio de algum carrito a passar na avenida. Ah, grande LOLada: era a banda sonora que faltava àquela campanha! 

Pela minha cabeça nunca passam esses dramas. As palavras "cerveja" e "calorias" nunca as junto na mesma frase talvez porque eu nunca  fui de empurrar batatinhas fritas de sabores exóticos ou salgadinhos traiçoeiros com cerveja fresquinha. Muito religiosamente faço sempre questão de a bem casar com amendoins e tremoço. É um casamento poligâmico, bem sei, mas muito feliz ainda que de curta duração. Dura enquanto dura o Verão.  Na minha moderação não há lugar a dramas. Quanto aos amendoins, ricos em óleos e proteínas, e de fácil digestão, nem sei como é que a miúda não implicou também com eles: afinal são até alergénicos em potência! Ah, já sei: não o fez porque ainda não inventaram o mito da "barriga de amendoim". Mas é dar-lhes mais um Verão ou dois que elas conseguem inventá-lo e "Instagramá-lo". 

E quanto ao belo marisco dos pobres, o tremocinho? Uma riqueza em proteínas e fibras, e ainda mais se comido com casca, embora comidos assim  possam provocar indesejáveis gases! E cuidado também com o sal abundante da salmoura em que são conservados. A gente sabe  estas coisas, claro, mas não vai destilar estes conhecimentos desagradáveis para cima de uma mesa de estranhos, não é? Faz-se conta que não se veem os indícios do crime alimentar, honra-se o convívio social, por muito que se deseje lembrar um banho em água corrente ou uma demolha prolongada aos amarelinhos em nome da saúde dos convivas! Salve-se o momento porque viver bem não é viver para sempre.  Viver bem é viver com pressão alta e gases, mas de papo cheio de tremocinhos gostosos bem regados a cerveja.

Há sempre coisas muito mais giras para trazer à mesa, mesmo que sejam menos oportunas, ou úteis. Também sei ir ao Google. Querem ver? Por exemplo, o nome "tremoço" deriva do grego "thérmos", "quente", e do árabe "turmûs".  Mas "quente" porquê? Não sei. O tremoceiro-comum - a semente amarela do seu fruto é o tremoço -  ou Lupinus albus, que em latim significa "parecido com o lobo", pois os tremoceiros cresciam em terreno infértil para a maioria, afastados das outras plantas, alimentaram bestas e homens desde a antiguidade, sendo também utilizados como fertilizante. Os demasiados alcaloides - autêntico veneno, embora somente letais se consumidos em enorme quantidade - neles presentes só são eliminados depois de cozidos e cobertos os tremocinhos com água  mudada com frequência durante vários dias até perderem o seu amargo original. Ah, e a sua flor é linda. Devia era ter-me juntado a elas...já que não as podia vencer!

As duas louras dedilhavam nos ecrãs e discutiam entre elas, ignorando-me e, estranhamente, também ao meu amigo, que se chama José, já não estavam ocupadas com o mito da barriga de cerveja, agora era outra história que alguém publicara. Por fim calaram-se e pediram ambas um café, que aviaram em gole e meio, sem açucar, uma delas queixando-se de ter queimado a língua, retirando a máscara e voltando a colocá-la rapidamente, não sei se por temerem o corona ou eventuais salpicos contaminantes da parente portuguesa das "Coronas", a Sagres, que contra todos os argumentos ainda alegrava a mesa de amarelo fresco. Depois disso mergulharam os olhos nas ondas e assim ficaram, como coelhinhas a quem se tivesse acabado as pilhas, esgotado o debate de prós e contrar e sem conclusão, pelo que me quis parecer. 

Quando acabei a segunda cerveja, saí "à francesa" ou a modos que, apertando o ombro do meu amigo em sinal de coragem. Alguns dias depois telefonei-lhe para lhe pedir uma boleia e aproveitei para me desculpar pela minha evasão súbita. Para meu espanto descobri que ele não conhecia nem muito nem pouco as duas companhias "instagramáveis" do nosso convívio de fim de tarde em frente ao Atlântico: apenas lhes dera boleia, colhido de surpresa ao volante pelo pedido insistente das jovens louras num sinal vermelho da passagem de peões próxima do Parque de Campismo, pouco antes nos termos encontrado. 
- Mas, afinal, o que é que elas queriam? - perguntei.
- Não era cerveja, tremoço e amendoim, não... - riu de maroto o José, logo mudando de assunto.


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