Da arte xávega no Pedrogão e de como identificar os golfinhos


No dia 24 de Agosto estava despreocupadamente esticada ao sol na praia do Pedrogão e não me apercebi de que a alguns metros de mim os pescadores da arte xávega, nadadores salvadores e banhistas, lutavam para libertar 5 ou 8 golfinhos das redes acabadas de puxar do mar. No dia seguinte vi os vídeos do sucedido e não pude evitar ser tomada por alguma angústia ao ver os animais agitados a tentar libertar-se da malha enquanto pessoas diversas os resgatavam o mais rápido que conseguiam e outras os encaminhavam de volta ao mar. Um acabou, mais tarde, por arrojar, morto. No fim de semana seguinte o mesmo sucedeu na Praia da Vieira, e daí a um par de semanas na Praia de Mira. Quando o animal fica preso em redes e linhas de pesca pode sufocar ou sofrer lesões sérias enquanto se debate para se soltar, perdendo as barbatanas nadadeiras ou mesmo quebrando ossos, o que pode acabar por ditar a sua morte. A nossa costa é muito rica em vida marinha, mais do que a maioria das pessoas imagina, e quanto melhor a conhecermos melhor a podemos proteger. ( A lista de cetáceos no final não é exaustiva.)

A xávega é uma arte de pesca com rede envolvente-arrastante de alar (puxar) para a praia. Os pescadores usam uma rede que é um saco na região central prolongado por duas longas asas nos extremos das quais estão presos os cabos de alagem. Quem frequenta estas praias já decerto viu as enormes redes esticadas na areia. A partir da praia, a rede, fixa a um cabo no areal, é transportada para o mar na embarcação, a aiola que, num movimento semicircular, a larga a várias dezenas de metros da costa, fazendo um cerco, voltando para terra com a ponta do outro cabo. A rede é alada para a praia com a utilização de aladores adaptados a tractores. Os dois  cabos são puxados e o saco de peixe aproxima-se lentamente da costa cheio de pequenos peixes como a cavala, a sardinha e o carapau. Desde Fevereiro de 2017 que a arte xávega faz parte do Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial.

Perante o sucedido algumas pessoas logo trataram de demonizar este tipo de pesca e os seus pescadores nas redes (sociais) como se a maioria delas não comesse peixe, ou a pesca não fosse uma actividade com tradições e relevância económica no nosso país. Houve até quem comparasse esta tradição com a tourada! Sem dúvida que alguma mortalidade dos animais é devida à pesca artesanal próxima da nossa costa e até à pesca ilegal e desregulada. Acidentalmente os golfinhos podem, pois, ser  traiçoeiramente apanhados nas redes e alguns poderão não sobreviver. A esta somam-se ainda outras causas de morte, por exemplo as redes à deriva nos oceanos, outro enorme perigo para os cetáceos, além da poluição, e eventualmente alterações do seu ecossistema e até climáticas. Escusado é dizer que é injusto comparar o pescador da arte xávega ao toureiro. Duvido que algum deles não fique desolado ao ver os animais presos, não só por eles serem belos mas também porque para os libertar têm de por vezes prescindir do peixe que veio na rede, ou seja, os golfinhos além de não significarem rendimento para o pescador, causam prejuízo. 

Uma forma de minorar o problema da captura acidental de golfinhos é o uso de pingers nas redes, uns equipamentos que emitem um som numa frequência audível pelos golfinhos que os faz manter a distância. Se mais pessoas estiverem cientes deste problema, pescadores ou não, e se interessarem em promover a segurança dos golfinhos, talvez seja mais fácil protegê-los e ao mesmo tempo salvaguardar as artes da pesca. Como frequentadora das praias tanto me entristece saber que os golfinhos ficam presos nas redes como saber que a arte xávega tem os dias contados. Mas será que o uso de pingers resolve mesmo a situação?

Banana Pinger - o dissuasor acústico de baleias, golfinhos e botos. Duração, pelo menos 5 anos, com custo de bateria -  pilha alcalina C2 padrão - na ordem dos 4,5 euros por km de rede.

Existe apenas um barco dedicado à arte xávega na Praia do Pedrógão, em Leiria, - chama-se Flor da Praia Azul, em forma de meia lua, de fundo chato, e de proa elevada, com a bandeira nacional no topo. "Xávega" é um vocábulo árabe, "xábaka", que significa redes. Os barcos pontiagudos entram nas ondas de frente, em cheio na rebentação, - a "cabeça do mar" - o que  parece uma ousadia, sendo empurrados para elas com a ajuda do tractor. Depois aguardam por uma rasa, para sair do mar, arribar. Hoje, o motor ajuda, mas antigamente era à força de braços e remos que esta barreira era ultrapassada, e, depois homens e mulheres,  e juntas de bois, ajudavam a puxar redes e barco para o seco. 

A faina num modo que remonta ao séc XVII ainda ocupa um grupo de 15-20 homens nas areias e mar do Pedrogão. Além desta actividade, que o mestre André Antunes mantém viva há 14 anos, todos eles têm outros empregos pois a arte não dá sustento. Mas li que sem algum apoio o Flor da Praia Azul poderá não voltar ao mar no próximo ano. Invariavelmente, uma pequena multidão assiste à faina, de manhã e de tarde, crianças, jovens e adultos. 

À entrada da praia do Pedrogão, a saudar quem chega, está uma embarcação tradicional similar que pertenceu a Armando Botas, o homem que agora, com 80 anos e depois de um acidente, é visto no areal a remendar as redes. Até que ponto será impossível apoiar e viabilizar a compra e utilização de pingers por este grupo de pescadores que fazem por perpetuar a tradicional forma de pesca, que se constitui como um dos atractivos da praia? Fiz alguns contactos para me inteirar disso e estou a aguardar ser elucidada sobre esta situação, se de facto os pingers são a solução ou não, se são fáceis de usar, se o problema é mais difícil de solucionar do que o a publiciade ao uso desses aparelhos sugere.

Em alguns países a caça ao golfinho apesar de ilegal, continua. É o caso do Perú onde a carne do golfinho se vende nos mercados - chamam-lhe "porco do mar". A regulamentação é menos forte que a consciência ambiental. Mesmo com uma lei que proibiu a caça, comercialização e o consumo, estabelecendo pena de prisão, o cetáceo continua a ser caçado para consumo e isco. Noutros casos, a sua captura não é considerada ilegal. É o caso nas ilhas Faroé, na Dinamarca, onde uma tradição permite que sejam arrastados para a praia, mortos, e a sua carne distribuída pelos habitantes, ao abrigo de uma tradição secular. Considerada uma melhor prática do que manter animais (porcos ou vacas) presos para consumo humano, o excessivo abate acaba de deixar chocada a população e os ambientalistas. Também o Japão admite a captura de golfinhos para venda da sua carne em substituição da de baleia, cada vez mais rara, ou abastecimento de parques aquáticos marinhos e delfinários, maioritariamente no Japão e na China, mas também Coreia do Sul ou Emirados Árabes. A temporada de caça abre a 1 de Setembro. Taiji é a cidade que mais golfinhos caça. Desde que The cove, um documentário, foi premiado com um Oscar em 2010, que Taiji, no Japão, se tornou um símbolo do massacre aos golfinhos e baleias. Outros países que capturam cetáceos são a Noruega e a Rússia, que anunciou este ano uma iniciativa legal para proibir a sua pesca. Talvez ainda se recordem dos animais retidos na Baía de Srednyaya, no extremo oriente da Rússia. Em 2018 um drone captou imagens aéreas das instalações que mostravam cerca de 100 animais cativos, orcas e belugas, destinados a serem exportados ilegalmente para a China. Foram resgatados devido à pressão internacional, embora este processo não tenha sido o mais adequado para defender o bem-estar dos animais. As empresas envolvidas multadas.

Como identificar cetáceos?

Os golfinhos e as baleias fazem parte da ordem Cetacea que é dividida em duas grandes e distintas subordens: odontocetes que apresentam dentes nas maxilas superior e inferior, crânio assimétrico, um orifício respiratório no topo da cabeça, por exemplo, botos, golfinhos, orcas, cachalotes, belugas e narvais. Os misticetes não têm dentes e antes cerdas de material queratinoso na maxila superior (barbas) que auxiliam na filtração e retenção do alimento. Têm dois orifícios respiratórios e um crânio simétrico.

Nas águas portuguesas encontram-se várias espécies de golfinhos e baleias. Os pescadores têm afirmado que nos últimos anos, desde 2017, avistam cada vez mais cetáceos. As razões para a presença de animais em grande quantidade, desde golfinhos a orcas, não são ainda claras. Outros animais como atuns-rabilhos e tubarões de profundidade - como lixas ou cações - também são apanhados nas redes com frequência. Há quem fale no aumento do número de sardinha e outros pequenos peixes que constituem o seu alimento, ou melhoria da qualidade das águas. Já os muitos avistamentos de golfinhos e orcas a sul são explicados também pelo grande número de embarcações que se dedicam aos passeios turísticos. 

Ora, se os animais andam mais perto da costa, há uma boa hipótese de quem se dedicar à pesca ou à vela, ou até quem goste de passear junto à costa, ou nos estuários, poder, pois avistar um destes animais. Embora o Verão já esteja quase no fim, lembrei-me de listar os seus traços mais identificativos, os que permitem identificá-los junto à superfície, o que decerto tornará o avistamento mais empolgante. 

O golfinho-comum (Delphinus delphis) é espécie mais observada na proximidade da costa nacional, de Norte a Sul. Têm dorso negro e esta mancha negra forma um triângulo invertido imediatamente abaixo da barbatana dorsal que é alta. Os machos são ligeiramente maiores do que as fêmeas podendo medir até 2,3 m de comprimento. Os golfinhos que foram apanhados nas redes, em Pedrogão, eram desta espécie.

O golfinho-riscado (Stenella coeruleoalba) vive em águas mais profundas mas também é frequente. Tem uma coloração escura no dorso e bastante clara no ventre. Lateralmente apresenta uma risca escura que vai desde o olho até à região anal e outra mais pequena que vai desde o olho até à barbatana peitoral. Os adultos medem cerca de 2,5 m.

O roaz (Tursiops truncatus) apresenta uma coloração predominantemente cinzenta. Apesar do dorso ser ligeiramente mais escuro não é visível uma delimitação de cor evidente em nenhuma zona. Existe uma população residente no estuário do Sado. São frequentes na zona das Berlengas e canhão da Nazaré e estão distribuídos um pouco por toda a costa portuguesa, podendo atingir os 3,8 m de comprimento.

O boto (Phocoena phocoena), é uma espécie ameaçada, a população está em regressão em toda a Europa, mas o problema é particularmente grave na costa portuguesa e galega. Os adultos não excedem 1,5 m. A coloração do boto pode ser variável mas normalmente é cinzento escuro no dorso, clareando até à zona ventral que é branca. Em alguns animais podem notar-se linhas escuras entre a boca e as barbatanas peitorais. Apresenta um focinho curto sem bico perceptível. Tem as barbatanas escuras sendo a barbatana dorsal pequena e nitidamente triangular. É uma espécie costeira observada em zonas de profundidade inferior a 200 m, estuários e baías. Em Portugal, distribui-se ao longo de toda a costa embora seja mais frequente na zona norte, entre o Porto e a Nazaré e na zona da Arrábida e Costa da Galé em zonas bastante próximas da costa. Uma terceira zona de maior ocorrência é a região algarvia entre Sagres e Albufeira.

O grampo (Grampus griseus) , tem um corpo robusto e uma cabeça proeminente e bulbosa com um bico muito curto, quase imperceptível. Mede entre 3 e 4 metros. A fronte não é muito pronunciada e apresenta uma depressão na parte central. Tem uma barbatana dorsal alta e peitorais longas e pontiagudas. Apresenta uma coloração cinzenta com mancha branca no ventre e os animais mais velhos apresentam várias cicatrizes que lhes conferem um aspecto riscado e quase totalmente branco. Em Portugal a espécie ocorre ao longo de toda a plataforma continental, podendo ser avistada em zonas de menor profundidade e mais perto da costa onde a plataforma é mais estreita.

A baleia comum (Balaenoptera physalus) apresenta uma coloração cinzenta escura no dorso e branca no ventre. É característica a sua assimetria de coloração na cabeça, onde o maxilar inferior esquerdo é negro e o direito é branco. A barbatana dorsal, posicionada no terço posterior do corpo, é falciforme e curvada para trás. A cabeça é achatada e representa cerca de 1/5 do comprimento total. Possui uma crista que vai desde a ponta da cabeça até aos orifícios respiratórios. Apresenta pregas ventrais e 350 a 400 barbas que também apresentam assimetria de coloração, tal como as mandíbulas (negras do lado esquerdo e brancas no lado direito). É uma espécie oceânica, amplamente distribuída em todos os oceanos. As fêmeas medem cerca de 19 m e os machos 20 m, podendo atingir máximos de 23 m. Ao longo das costas europeias, parte da sua população efectua migrações ao longo da plataforma continental em direcção ao Norte na Primavera, e para Sul no Outono. Alguns indivíduos efectuam migrações de menor amplitude e outros são, muito provavelmente, residentes, ocorrendo durante todo o ano a Oeste da Península Ibérica.

A baleia anã (Balaenoptera acutorostrata) tem um corpo alongado e cabeça pontiaguda onde se observa uma crista rostral desde o espiráculo até à boca. Apresenta uma coloração cinzento-escura na zona dorsal e branca na zona ventral e parte dos flancos. As barbatanas peitorais apresentam uma mancha branca característica. Possui pregas na zona ventral e cerca de 300 barbas brancas ou amareladas. Os adultos atingem cerca de 10 metros de comprimento. Tem uma barbatana dorsal alta, pontiaguda e curva localizada a cerca de dois terços do comprimento total. O sopro é baixo e quase imperceptível. Quando emerge é possível observar o espiráculo e a barbatana dorsal ao mesmo tempo. Podem encontrar-se na zona da plataforma continental em profundidades inferiores a 200 m. Em Portugal, a baleia-anã é vista regularmente ao longo de todo o ano.

A baleia piloto (Globicephala melas), apresenta uma cabeça proeminente e bulbosa com um bico muito curto, quase imperceptível. Apresenta uma coloração cinza-escura, quase negra, com uma zona ligeiramente mais clara atrás da barbatana dorsal. Na região ventral apresenta uma marca acinzentada em forma de âncora que se estende da garganta até à zona genital. A barbatana dorsal tem uma base larga e inclinada para trás. As barbatanas peitorais são muito compridas, estreitas e pontiagudas. É uma espécie predominantemente oceânica, ainda que possa aproximar-se de zonas costeiras, principalmente devido ao movimento de presas. Os machos podem atingir os 6 m de comprimento enquanto as fêmeas atingem apenas 5 m. Em Portugal desconhece-se se a espécie é residente ou visitante, embora seja vista com mais frequência na zona norte de Portugal na margem da plataforma continental.

Outras espécies não referidas no guia do LIFE+ MarPro (LIFE09 NAT/PT/000038) que consultei
:

Orca (Orcinus orca): mamífero inconfundível, habitualmente descrita uma única espécie, a mesma apresenta diversos tipos distintos. Os mais estudados são aqueles que ocorrem nas águas do pacifico norte que são as residentes, as transientes e offshore, no atlântico norte é descrito os ecótipos tipo 1 e tipo 2 e na antártica as orcas tipo A, tipo B, tipo C e tipo D. Seu dorso é preto e a parte inferior e próxima dos olhos na cor branca. Além disso, toda orca tem uma mancha branca atrás da nadadeira dorsal, permitindo a identificação de cada indivíduo. A orca  o maior representante da família Delphinidae, podendo atingir 8 m de comprimento e dentre os cetáceos é o mais cosmopolita de todos, ocorrendo em todos os mares e oceanos e sendo conhecida por avistamentos ocasionais em rios de água doce. Ela apresenta uma nadadeira bastante alta no dorso, que pode ter 2 m nos machos. Nos machos, as nadadeiras são triangulares e alta, já nas fêmeas elas são curvadas. As fêmeas adultas crescem até aos 8.5m enquanto os machos adultos crescem até aos 9.8m.  As orcas têm a cabeça redonda com bicos pouco definidos ou inexistentes. As orcas residentes vivem em grupos maiores (cerca de 55 indivíduos), enquanto as orcas transientes parecem formar grupos mais pequenos (cerca de 10 indivíduos). 

O cachalote (Physeter macrocephalus), igualmente inconfundível, é uma espécie com estatuto de conservação de Vulnerável, e foi caçado na Madeira e nos Açores, até à década de 1980. A cabeça grande (cerca de 1/3 a 1/4 do comprimento do animal) tem forma rectangular. A sua pele é lisa mas a da parte posterior do corpo é enrugada. De cor escura e uniforme, indo do cinza ao marrom, tem nadadeiras peitorais em forma de remo. A barbatana dorsal é pouco desenvolvida, uma pequena protuberância apenas, seguida de pequenas cristas, e a barbatana caudal é larga e triangular.

O zífio (Ziphius cavirostris) tem um corpo robusto, em geral de cor cinza-escuro ou castanho-ferrugem, mais escuro no dorso e mais claro no ventre. Os machos adultos possuem a cabeça branca e esta coloração mais clara pode expandir-se até ao dorso. Nas fêmeas esta coloração é menos pronunciada. Possuem uma área mais escura em redor dos olhos. Os adultos são fortemente cicatrizados, principalmente os machos. Os bicos são mais curtos que as outras baleias de bico. Nos machos adultos podem ver-se dois dentes na ponta do maxilar inferior que estão orientados para a frente. Estes dentes são visíveis, mesmo com a boca fechada. A barbatana dorsal é pequena, e localizada posteriormente, a cerca de dois terços entre o bico e a cauda.

Fontes: 

O projecto LIFE+ MarPro (LIFE09 NAT/PT/000038) . Conservação de espécies marinhas protegidas em Portugal continental . Guia ilustrado

Espasso Talassa - A base de observação de cetáceos dos Açores, aqui ( Consultar para verem as ilustrações referentes a cada um dos animais descritos.)

Omare - Observatório  Marinho de Esposende, aqui

Pescadores nunca viram tantos golfinhos, orcas, baleias e atuns de 200 quilos na nossa costa, aqui

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