Zombies: o passado decomposto

 

A tradução em português do título do primeiro volume da banda desenhada de sucesso de Robert Kirkman é Dias passados, - Days gone by, no original - mas o tradutor francês foi mais criativo e escolheu "Passado decomposto". Parece-me adequado, não? O primeiro número saiu em 2003. A história tornou-se tão conhecida que até eu, que não a li, sei que Rick Grimes, acorda do coma para um mundo diferente, pululado de corpos ambulando pelas ruas, em decomposição, ou seja no centro de um apocalipse zombie, saindo em busca da sua família. Uns anos depois, em 2010, a sua adaptação pela AMC a uma série de televisão seria um sucesso esmagador. Agora que a série caminha para o final, na sua 11ª temporada, os fãs da série Walking Dead podem aguardar uma já prometida trilogia sobre a jornada de Rick Grimes a estrear não se sabe quando no cinema. 

Não sou fã da série. Quando ela começou vi alguns episódios e abandonei porque tinha zombies. Continuamente me diziam que devia dar-lhe uma hipótese: o que era ali importante era a guerra travada entre os vivos, a sua sobrevivência, a sua luta para conseguirem manter viva a sua humanidade quando tudo estava morto ao seu redor,  a civilização em ruínas, mais do que a guerra destes com os zombies. Os zombies eram uma metáfora. Mas é claro: em si mesmos, zurzia eu, qual o interesse dos zombies putrefactos e malcheirosos? Seres humanos apodrecendo e canibalizando-se uns aos outros? Onde está o fascínio? Os zombies nem sequer me causam horror: na verdade tenho uma reação atípica e estúpida quando eles aparecem aos tropeções: observo-os com distanciamento, desinteresse, por vezes perplexidade. Por isso evito filmes e séries com zombies: é frustrante. Nem sequer vi A noite dos mortos-vivos, realizado em 1968 por George Romero, apesar de costumar ver os chamados "clássicos " do cinema. Trata-se um filme de baixo orçamento que lançou o sub-género conhecido como "apocalipse zombie". Nele se conta a história de um grupo de sete pessoas que mal se conhecem e que encontram refúgio numa casa quando os zombies despertam e procuram matar e comer a carne dos vivos. Como as tais pessoas não se conseguem entender isso facilita que os zombies levem a melhor. Apenas uma sobrevive, um negro, que acaba por ser morto pela polícia ao ser confundido com um zombie. Muitas crianças e jovens assistiram à estreia contribuindo para que o filme fosse catalogado como violentíssimo.

A excepção aconteceu no início dos anos 80 quando Michael Jackson lançou o álbum Thriller e para promovê-lo foi lançado um videoclipe que fez história. Ao longo de 14 minutos dirigidos por John Landis, assistíamos, empolgadíssimos, a um mini-filme de terror, com uma deliciosa narração de Vincent Price, o mais icónico e elegante actor de filmes de terror de sempre. Talvez Michael Jackson quisesse ter sido actor num filme de terror e por isso esta ousada aposta numa luxuosa curta-metragem. A novidade de um tal vídeo, a coreografia dançável protagonizada pelo Rei da Pop e pelos zombies, era irresistível e até eu, que já então não gostava de zombies, o vi vezes sem conta. Mas depois disso, nada, Finalmente, em 2004, alguém me convenceu a ver Shaun of the dead, um filme que mistura  terror com humor, e eu até gostei, mais ou menos, da paródia. 

Este ano, todavia, por influência do meu sobrinho - que era fã da série Walking Dead  - vi o filme coreano Train to Busan, que já é de 2016, as duas temporadas da série Kingdom e até o filme Kingdom-Ashin from the north. E, apesar de haver em todos esses títulos muitos zombies, gostei de tudo e até recomendo, em especial, Kingdom. Kingdom tem muitos outros atributos - investimento num argumento repleto de intriga política, crítica social, história e costumes sul-coreanos, cinematografia deslumbrante, guarda-roupa maravilhoso, realização ágil, suspense e mistério, personagens cativantes,  etc, etc - que merecem realmente suportar a presença das criaturas. Além disso, há muitos anos que aprecio o cinema sul-coreano não tendo sido difícil encontrar uma paciência especial para os ver. Depois desta aventura televisiva decidi procurar a origem dos zombies no cinema tendo sido surpreendida com alguns factos...

A origem dos zombies não se encontra em livros, como acontece com a história da criatura amarela criada por Victor Frankenstein, um sucesso que nasceu pelo punho de Mary Shelley. Ou Drácula, outro romance de terror gótico, escrito por Bram Stoker, que popularizou a figura do vampiro. São ambos do séc. XIX e foram adaptados ao cinema inúmeras vezes, já no séc. XX, a partir dos anos 30.

William Buehler Seabrook,  é aceite como o homem que popularizou a palavra "zombie" junto do Ocidente. No seu tempo houve quem dele escarnecesse dizendo que essa palavra tinha sido o seu único contributo para a literatura. Por via de um livro que escreveu, The Magic Island, é que surgiram os primeiros zombies nos argumentos de alguns filmes na década de 30. O livro onde ele relatava a sua viagem ao Caribe, um êxito ao tempo, inspirou o filme White Zombie, realizado pelos irmãos Halperin, protagonizado Madge Bellamy e por Bela Lugosi. Com base em crenças vindas do Haiti e das Antilhas francesas, o filme conta a história de uma mulher que é transformada em zombie por uma poção de um feiticeiro. A recepção não foi grandiosa mas houve lugar a seguimento dentro da mesma linha com o filme Revolt of the Zombies, que obteve péssimas críticas. Ainda assim, os zombies ganharam vida no cinema, passando, desde então, por períodos de total desinteresse e de euforia por parte do público.

De acordo com o relatado por Seabrook, o zombie seria um cadáver humano sem alma, um morto tirado do túmulo e através de feitiçaria dotado de uma aparência mecânica de vida. As pessoas que tinham o poder de fazer isso desenterravam o corpo antes que tivesse tido tempo de apodrecer, galvanizavam-no e faziam dele um servo ou escravo, ocasionalmente para a prática de algum crime, mais sobretudo para a realização de trabalho árduo ao redor da habitação ou da quinta, espancando-os caso se tronassem lentos. Ora, algo correu mal uma vez quando os senhores levaram os zombies a uma festa onde eles provaram sal e se lembraram de quem eram: mortos. Então eles retornaram aos túmulos e os seus familiares mataram quem os tinha mantido escravos.

Se os zombies eram mortos forçados a uma vida de escravidão, Seabrook, que não foi um zombie mas viveu uma vida repleta de estranheza,  dividida pelo gosto por culturas exóticas e práticas incomuns, também acabou por se tornar um escravo da bebida. Entre estados de fervor alcoólico, ressacas, e aventura surreais,  Seabrook infligia-se danos físicos: uma vez meteu as mãos em água a ferver para não conseguir agarrar copos e garrafas. Foi-se internar voluntariamente em diversas instituições porque não conseguia parar de beber. Em 1945, este homem aventureiro, que talvez tenha sido tão fascinante para alguns como repulsivo para outros, suicidou-se com comprimidos para dormir. Porquê? Quem sabe? Talvez para ir a algum lugar novo ou para escapar ao mundo velho conhecido, isto é, à sua escravidão.

Num outro livro, Jungle Ways, centrado nas suas aventuras no continente africano, onde cavalgou o deserto montado em camelos e participou em ritos tribais, ele escreve sobre a que sabe a carne humana: algo parecido com vitela. Só isto bastaria para fazer dele um proscrito no seu tempo e no nosso. Uma consulta rápida à Wikipédia e lá estava: Seabrook, entre outros predicados, ficou célebre como canibal. Um amigo diligente, tão louco quanto ele, conseguiu obter carne humana de um hospital. Seabrook convidou os amigos para um jantar só para se gabar da façanha. Hannibal Lecter é uma personagem de ficção,  que comia as duas vítimas, muito mais conhecida que Seabrook. A realidade não anda longe da ficção e por vezes até as ultrapassa.

Seabrook nasceu em Maryland, foi jornalista, vadeou pela Europa, foi publicitário, prestou serviço na 1ª GG, na Europa, casou e deu cabo do casamento ao envolver-se em práticas sadomasoquistas: adorava amarrar mulheres e ser amarrado. Ainda assim, voltou a casar mais duas vezes. Num jantar que deu havia uma mulher nua servida numa bandeja. As mulheres também podiam estar presas a uma escada com uma coleira, serem fotografadas por Man Ray, que frequentava as suas festas. Sadomasoquismo, magia, bruxaria. Ele achava esses universos fascinantes. Amigo do ocultista Aleister Crowley, que veio a Portugal uma vez para estar com Fernando Pessoa, - isto nada a ver com zombies, mas é curioso saber que o nosso poeta também gostava de astrologia e coisas estranhas, até ajudando Crowley a forjar o seu suicídio! -  Seabrook começou a escrever livros sobre assuntos tabu e, claro, não eram bem recebidos nem pelos verdadeiros escritores e críticos do seu tempo, nem por muito público leitor. Perante as más críticas recebidas, o frustrado autor afundava-se ainda mais em bebida. 

Além das viagens pela Europa, viajou para a Arábia, - e, claro, escreveu um livro de viagens sobre isso -  envolvendo-se na história e costumes locais desse território, preferindo claramente o exótico, o mistério onde era raro o homem branco penetrar. Louve-se a Seabrook o seu perfil de explorador, a sua fome pela novidade, a sua sede de aventura, que o fazia absorver toda a informação sobre o diferente fosse o folclore, o sobrenatural, a magia desses lugares, enfim,  assuntos que intimidariam uns e que muitos apenas desprezariam. Esta sua sua vontade de partir à descoberta talvez atraído pelos mistérios do mundo ou talvez porque, como o António Variações, só estivesse bem onde não estava, permitiu a descoberta do "zombie". Nas suas viagens contactou com  tradições folclóricas da África Ocidental, ou seus relatos, que mais tarde foram importadas para o Caribe durante o comércio colonial de escravos. No vodu haitiano existem vários tipos de zombies como espíritos ou fantasmas que aparecem à noite, ou humanos mortos que foram transformados em animais. Seabrook ficou sobretudo  fascinado com o "morto-vivo". Para os haitianos, descendentes de antepassados trazidos de África para serem escravizados, este zombie inspirava máximo terror. O zombie era um escravo que o feiticeiro decidira dever servir eternamente a um senhor. 

Comecei a escrever sobre livros de banda desenhada e é assim que termino. Quem desejar conhecer a biografia de William Seabrook pode fazê-lo através de um livro de banda desenhada da autoria de um desenhador canadiano,  Joe Ollmann. O livro foi publicado em 2017 e intitula-se O abominável Sr. Seabrook. Abominável: parece-me adequado, não?


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