O poder da música em Big Little Lies (Série HBO)


Entre 2004 e 2012, uma das séries mais populares de Hollywood era Donas de casa desesperadas, mistura de comédia e drama, evidentemente protagonizada por diversas mulheres dos subúrbios. Quando foi anunciada recordo ter detestado o título. Apesar de gostar de pintura e colagem, também não gostava da sequência de abertura, nem sequer da sua música. E depois de ver alguns episódios abandonei a série sobre o mistério da morte da Mary Alice, uma mulher que levava uma vida aparentemente perfeita de tarefas e rotinas previsíveis até ao momento em que recebe uma carta ameaçadora e se resolve matar, sendo, acto imediato, roubada pela vizinha que ao descobri-la naquele estado se aproveita para se apropriar de um electrodoméstico - que tinha o nome da "dona de casa" escrito numa etiqueta, o que achei muito estranho e ainda acho!  E é desta forma, isto é, entre o drama e a comédia, que se desenrola a história das mulheres de Wisteria Lane, cada uma com os seus dilemas e segredos. Marc Cherry, que foi o seu criador e também argumentista, estreou há pouco uma outra série igualmente protagonizada por mulheres. Trata-se de Why women kill,  uma comédia negra que acompanha três mulheres em décadas diferentes, mas todas vivendo na mesma casa, ao que parece pretendendo colocar em evidência o papel do tempo nos seus comportamentos e reacções da sociedade. 

Desde as "Donas de casa" que tenho para mim que séries com muitas mulheres juntas não me agradam. Antes disso eu tinha gostado de ver  "Os anjos de Charlie", mas era outro tempo! Os "anjos" eram um trio de personagens femininas interpretadas por Farrah Fawcet, Kate Jackson e Jaclyn Smith, que investigavam crimes às ordens de Charles "Charlie" Townsend, o misterioso dono da agência de detectives.  Quando uma amiga me sugeriu Big Little Lies, dizendo-me que era sobre quatro mulheres muito ricas que vivem em Monterey e um crime, lembrei-me logo da Mary Alice, e da Bree e companhia, e mostrei desinteresse. Estava mais inclinada a ver Sharp Objects, que, por acaso, é do mesmo realizador, Jean-Marc Vallée. Mas a minha amiga insistiu: "8 Emmys, 4 Globos de Ouro! E já viste o elenco?"


Nem sempre os muitos prémios me convencem, ou a popularidade. Já o elenco era tão luxuoso como as mansões na orla costeira onde quase todas as protagonistas vivem. Continuava meio indecisa e ela mostrou-me a sequência de abertura no telemóvel:



Foi a primeira vez que fui convencida a ver uma série pela sua sequência de abertura mas talvez não devesse surpreender-me:  diz-se que uma imagem vale mais do que mil palavras. Qual o valor de uma canção bem escolhida, ou de uma música, quando assistimos a um filme ou uma série? Pergunta totalmente descabida, claro.Tal como as palavras, a música pode ser usada para comunicar quase tudo e com a enorme vantagem de ser uma linguagem universal. A música estimula o nosso cérebro de diferentes maneiras provocando-nos diversas emoções. Então como não utilizar esta ferramenta para contar uma história? 


Agora que assisti à sequência várias vezes vejo ali traços da história e não apenas imagens bem editadas ao som de uma canção-tema. Mas qual teria sido o gatilho? A alegria e a doçura das crianças dançando? A segurança das mães conduzindo e as crianças no banco traseiro olhando o  mar?As ondas a quebrarem na praia, a sua espuma? A presença de animais marinhos? A paisagem costeira de Monterey? A ponte de Bixby, no Big Sur? As imagens voluptuosas de corpos nus? Ou a canção-tema? Apesar de ser uma sequência simples, feita de imagens comuns, há nela, por um lado, uma grande beleza e serenidade, por outro uma certa inquietação em virtude da presença de um revolver empunhado por uma mão feminina e muitas sombras, conjunto que lança sobre aquele quadro controlado um mistério, que a letra da canção corrobora:

Alguma vez quiseste muito?
Tu quiseste muito?
Ohhh, como
Isto me dilacera
Podemos tentar esconder isto
É tudo igual
Eu tenho-te perdido

Um dia a seguir ao outro
E eu sei
No meu coração, neste coração frio
Eu posso viver ou posso morrer
Acredito que se ao menos eu tentar
Tu acreditarias em ti e eu
Em ti e em mim...

Podia escrever aqui sobre a estupenda realização de Jean-Marc Vallée, - que eu apenas conhecia de Wild, ou Dallas Buyer Club, isto é, de filmes - ou da cinematografia, ou da incrível interpretação do par Kidman - Skarsgård, dos valores da edição, - outra ferramenta muito bem explorada aqui para contar bem a história, com transições tão significativas que ficaria aqui a escrever 100 linhas sobre elas - ou da forma como souberam trabalhar tão bem as partes para compor o todo e assim contar tão bem a história destas mulheres. Mas o meu realce vai para a música na série, o seu uso diegético. Se vos disser que o papel da música em Big Little Lies é tão crucial como a existência de uma personagem, talvez pensem que exagero. A banda sonora não é algo que tenha sido escolhido e colado às imagens para nos fazer sentir uma emoção ou para criar ambiente, ou dar a conhecer os estados de espírito ou traços de carácter das personagens. Nós ouvimos a música, ou as canções, que as personagens escolheram ouvir e estas canções fazem parte da narrativa. Assim nós estamos muito mais perto das personagens, daquilo que lhes vai na mente, do que sentem naquele momento. As canções que aparecem nos episódios, e também nos créditos, ou transitam de episódio para episódio, acompanham-nas, fazendo parte da sua voz. 

A precoce filha de Madeline, Chloe, (Darby Camp) que anda sempre agarrada a um iPod, escolhe canções para consolar a mãe. As viagens de carro e as refeições da família Mackenzie - na gigantesca cozinha com uma lilha central e janelas panorâmicas que dão para o mar- fazem-se sempre ao som de canções escolhidas pela miúda. Grande fã da Polly Jean, imaginem-me a perceber que a menina estava a ouvir The Wind enquanto a mãe a conduzia para o primeiro dia na escola primária...


Fiquei a pensar na música que eu ouvia quando entrei para a escola primária nos anos 70! Não posso fazer comparações. Esta criança é filha do streaming e da playlist! E eu era filha da rádio e do disco de vinil! A Chloe tem mais acesso a música através daquele pequeno aparelho num só dia do que eu tive durante a maior parte da minha vida. Estava a ouvir uma canção da PJ Harvey! Wow! Logo ali, fiquei a pensar que a música teria um papel especial em Big Little Lies, o que se confirmaria. Mas é até provável que eu conheça muito melhor a obra da PJ Harvey do que a Chloe algumas vez conhecerá. Com tanta música nas mãos, como não ser seduzida pela busca incessante de novos artistas, de novos sons?

The wind

Catherine liked high places
High up on the hills
A place for making noises
Noises like the Whales
Here she built a chapel with
Her image on the wall
A place where she could rest and
A place where she could wash
and listen to the wind blow
She dreamt of children's voices
And torture on the wheel
Patron-Saint of nothing
A woman of the hills
She once was a lady
Of pleasure, and high-born
A lady of the city
But now she sits and moans
and listens to the wind blow
I see her in her chapel
High up on a hill
She must be so lonely
Oh Mother, can't we give
A husband to our Catherine?
A handsome one, a dear
A rich one for the lady
Someone to listen with

Chloe, além de precoce nos comentários e no seu gosto musical, tem ainda uma outra habilidade: ela percebeu que a música provoca respostas emocionais, de tal forma que escolhe canções para resolver o problema da amiguinha Amabella e de Ziggy: "River", de Leon Bridges, uma canção sobre o perdão, devia ter servido para fazerem as pazes. A canção também sustem todo um diálogo ede aproximação entre as duas.  A miúda também oferece canções para a mãe ouvir, com o fito de que a aliviem da ansiedade crescente. Noutra ocasião escolhe uma certa e determinada canção para o pai cantar na festa da escola. Chloe é um caso à parte. A sua personagem não apenas consome música avidamente como a distribui pelas outras personagens, pretendendo atingir com isso várias finalidades. 

Já a personagem Jane Chapman (Shailene Woodley) dança e salta para descarregar a sua fúria ao som de "Dance this Mess Around", ou de "Bloody Mother Fucking Asshole" de Martha Wainwright. Lentamente a personagem que conhecemos mais ou menos controlada, vai sendo assaltada pelo seu passado até não mais conseguir esconder de si mesma que é uma vítima. A música cresce de intensidade à medida que Jane corre até à beira do mar e regressa a casa ensopada em suor e raiva, dobrada pelo sofrimento por ter recalcado um facto tão traumático. Quando o filho, Ziggy, dança uma coreografia  de uma canção para ela, - I never got a chance to see him, Never heard nothing but bad things about him, Mama, I'm depending on you to tell me the truth - observamos o diferente impacto que a canção "Papa was a rolling stone" tem nos dois: o menino dança feliz, ela é transportada até ao passado, e angustia-se. Celeste, outra vítima, mas desta vez dos abusos do seu marido, escuta uma evidente "Victim of Love" de Charles Bradley, - I'm a victim of loving you, I'm a victim of loving you...mas, outra mulher, a jovem e zen Bonnie Carlson (Zoe Kravitz, filha do cantor que lhe deu o apelido) canta uma encantadora versão de "Don't" de Elvis Presley, reafirmando o seu amor pelo marido. Bem sei que descrever o que se ouve na série, ou em que circunstância, não surte o mesmo efeito. Pois não. São precisas as imagens. Por isso, não pretendendo ser exaustiva, vou mencionar apenas mais uma canção, a que encerra a lista e a série: "You Can't Always Get What You Want", uma cover de um grande êxito dos Rolling Stones, que acompanha imagens de convívio na praia entre as cinco protagonistas femininas e as crianças. 

Por vezes não obtemos o que desejamos mas o que precisamos. Aparentemente tudo está bem. Mas tal como na abertura da série a sensação que obtemos é idêntica: para lá do momento perfeito que observamos, o que se esconde? O mar, essa presença quase familiar, que acompanha a vida das personagens desde o início, e que Madeleine tantas vezes observa da sua casa privilegiada, é a metáfora perfeita: à superfície, sereno. Mas sob a superfície, que mistérios encerra? Que lutas? O que sabemos deles? O que nos permite conhecer? O mar é o grande desconhecido, diz Madeline. De longe alguém observa com lentes de binóculo a celebração na praia. Sabemos quem é quando ouvimos o clique-tique do isqueiro. Agora não é um revólver apontado no ar que lança ameaça, é antes a suspeita, também ela tão capaz de causar dano como qualquer bala. 

The wind - PJ Harvey
River – Leon Bridges
Bloody Mother Fucking Asshole -  Martha Wainwright
Papa Was A Rolling Stone - The Temptations
Victim of Love - Charles Bradley
Don't - Elvis Presley/ Zoe Kravitz
You Can't Always Get What You Want  - Rolling Stones/ Ituana

Comentários