Militar da GNR em folga resgata jovem do rio Mondego
Se em muitos locais e no comportamento de muita gente se nota desde há meses um afrouxamento no cumprimento das medidas para controlar o contágio, mesmo das mais simples, por vezes até parecendo que a pandemia está praticamente ultrapassada, ali, e, possivelmente, na maioria das instalações destinadas à prestação de cuidados de saúde, ainda não se terão verificado afrouxamentos significativos de medidas e muito menos, tréguas. Na abordagem de todos os doentes, os profissionais de saúde continuam a utilizar equipamentos de proteção individual, máscaras de diversa tipologia, fatos completos de proteção biológica, proteções oculares (viseiras e óculos de proteção lateral), toucas, coberturas de pés, etc. E não esqueçamos todos os outros envolvidos no atendimento de público e pacientes, também eles não enfrentam ainda jornadas de trabalho descontraídas. Isso ainda pertence ao passado.
Como fui diversas vezes ao Hospital quando ainda era IdealMed, à medida que ouvia a descrição ia imaginando o novo ritual no espaço que me era familiar. Agora todas as pessoas admitidas para consultas, exames, tratamentos, etc, passam primeiro por uma triagem central. É-lhes dada uma máscara, creio apenas no caso de não estarem a usar uma cirúrgica, medida a temperatura, recebem uma pulseira de sinalização, uma senha com um número, circulam em áreas devidamente sinalizadas e delimitadas, são atendidas em balcões com separações acrílicas, sobem aos pares em elevadores, - um é usado para subir, outro para descer - e os acompanhantes pura e simplesmente não são admitidos a não ser em casos listados. Devem existir mais procedimentos mas estes foram os que me foram relatados. Fiquei a pensar no tempo que já passou desde que tudo isto começou, na nova rotina a que tiveram de se adaptar, e respeitar diariamente, pois sou das que anda sempre a queixar-se por ter de usar a máscara. É escusado: ela continua a provocar-me desconforto. Por mais que digam e provem que não afecta a respiração, custa-me respirar com ela quando está calor e tenho de me movimentar.
Todos os que ali trabalham, e noutros locais similares, tiveram de se habituar à máscara e a rotinas novas, e fazem-no, aparentemente, com diligência e sem queixumes, que guardam para si ou desabafam mais tarde junto de quem entende. Não tenhamos ilusões: não é fácil. A senhora da triagem, por exemplo, orientava, com "paciência de Jó", cada pessoa que ali chegava. Repetia o mesmo, uma e outra vez. Por exemplo, explicava sobre os acompanhantes que não podiam entrar, mas nem todos compreendiam a regra, querendo impor a sua justificação, a sua regra. Compreensível, pois quando se vai a um hospital quer-se um amparo por perto. Ou quer-se levar três crianças porque não se tem onde as deixar. Ou quer-se acompanhar os pais idosos e debilitados. É certo que há razões atendíveis para isso, só que a estas outras se vieram sobrepor impostas pela pandemia. Não, não está a ser fácil, para ninguém.
"Paciência de Jó". Muita gente diz esta expressão, este nome: Jó. Mas quem foi Jó? Uma personagem bíblica, um homem rico que muito incomodava o Diabo por amar a Deus. Então ele acusa-o de só servir a Deus por tudo ter. Resolve testá-lo pois é sabido que é na provação que se testam as virtudes. Pede a Deus que lhe tire tudo julgando que a sua fé nele irá diminuir. E o homem tudo perde, de cabeças de gado a familiares de sangue. Mas, surpreendentemente, permanece fiel a Deus, que tudo dá, logo tudo pode tirar. Jó tinha perdido tudo mas ainda tinha a sua saúde. Então o ardiloso Diabo pediu a Deus que lhe desse uma doença. E Deus deu-lhe uma doença. Mas a fé de Jó também não esmoreceu, nem mesmo com a pele coberta de feridas: quem aceita o bem que Deus dá, tem de aceitar o mal também. E assim viveu até que um dia questionou Deus sobre a dimensão dos seus males. Deus sentiu-se desafiado, admoestando Jó, que logo pediu perdão, com humildade, remetendo-se ao seu lugar. E então Deus premiou a fé e a fidelidade de Jó concedendo-lhe tudo o que ele tinha perdido em dobro.
Preparando-me para deixar Coimbra, quando estava parada nos semáforos à entrada da Ponte de Santa Clara, passou um carro da polícia, logo seguido por uma viatura dos Bombeiros, ambos com luzes e sirenes ligadas. Ao chegar ao fim da ponte verifiquei que esta última estava estacionada na via e que muita gente espreitava para o rio debruçando-se sobre o gradeamento e fazendo telefotos. O local do sucedido é o da fotografia, que não é de ontem, obviamente, apenas servindo para vos situar. Comecei logo a especular sobre o que teria acontecido: uma tentativa de suicídio, uma queda acidental para o rio? Homem, mulher? Aquilo tinha aspecto de ser um resgate, dada a urgência dos dois veículos e o aparato. Contornada e ultrapassada a viatura, seguimos. Nunca mais me lembrei do sucedido, até porque o regresso a casa foi tardio e hoje o dia bastante ocupado.
Acabo agora de saber o que aconteceu ali, à entrada da ponte: um militar da Guarda Nacional Republicana (GNR) que se encontrava fora de serviço, pertencente à Unidade de Emergência de Proteção e Socorro (UEPS), resgatou um jovem de 20 anos que se encontrava no rio. O rapaz tinha perdido a capacidade de nadar para a margem, por alguma razão que a notícia não adianta, e é possível que sem auxílio ali tivesse perdido a vida. O militar nadou ao encontro dele e trouxe-o de volta para a margem. Os Bombeiros Voluntários de Coimbra e os Bombeiros Sapadores de Coimbra, deram assistência ao resgate, que até foi exigente dado a localização, sendo depois o jovem conduzido a uma unidade hospitalar.
Interroguei-me sobre qual seria o nome deste homem pois não constava na notícia. Talvez "Guilherme" que significa "protector corajoso", em alemão? Seria um bom nome para alguém que salva outrem de uma morte horrível, sem hesitações: o militar ia a passar e ajudou. É mais do que muitas pessoas fazem quando veem alguém cair na rua. Acham que exagero? Falo daquilo a que já assisti. O mundo está cheio de pressa que é para não dizer vazio de coisas mais importantes e necessárias.
Imaginei estas duas vidas doravante unidas por um laço único mercê desta peculiar circunstância. Sim, fiquei a imaginar o seu futuro e como este incidente poderia afectar um e o outro, os dois, ou não. Será que vão ficar amigos no Facebook? Será que se vão encontrar e tomar um café? Será que vão viver como se nada tivesse acontecido mesmo antes do tempo começar a dissolver esta memória? Ou será que o jovem vai dar o nome deste homem ao seu primeiro filho? Ou será que a vida dele se tornará num tal inferno que um dia ele amaldiçoará este herói por tê-lo salvo das águas? Tudo é possível, não acham?
O nome. O nome. Fui ao site da GNR. Encontrei o mesmo texto, o nome do herói ausente das magras linhas, escritas com uma fonte tão minúscula que mal se vê. Ora, um texto sobre uma tão boa acção devia estar pelo menos em tamanho 14! E anonimato? Será que é regra da corporação? Ou terá sido o militar que o pediu por não gostar de atrair as atenções sobre si? Por considerar que apenas fez o que é devido a qualquer ser humano, isto é, ajudar o próximo? Socorrer os aflitos? Que fez o que todos fariam, pensa ele. Mas não é bem assim, eu, por exemplo, nunca poderia ter salvo o rapaz das águas do rio: não sei nadar.
Gostava de ter lido o nome dele, afinal todos os dias lemos nomes de fulanas e sicranos que são notícia por bem menos. O meu mundo é tão pequeno que poucas vezes sei quem são essas personalidades. Mas quando acabo de ler uma dessas notícias, o meu mundo não se torna maior. Agora tudo e todos podem ser notícia num feed que parece uma salada russa. Por isso, a "notícia" da Georgina que mostrou o rabo ao sol, no iate de luxo, aparece facilmente ao lado de um salvamento, competindo pela nossa atenção. Os leitores que escolham. É uma forma colorida de fazer as coisas, misturando mundos de grandeza diversa em páginas de notícias. Mas imaginem que entravamos no supermercado e que a loja tinha misturado tudo, frutas e hortaliças, e que havia batatinhas de pele rosada ao rebolão com limões, pepinos envolvidos com pêssegos macios ou cenouras infiltradas em cachos de bananas. Pouco prático, no mínimo. É o que eu penso dessa moda dos feeds de notícias a preto e branco coloridos de cor-de-rosa. Por causa dessa promiscuidade é que dei por mim a pensar na Georgina do Ronaldo, que nos últimos dias tem "brilhado" no feed ou porque foi a Cannes mostrar um vestido do Gualtier ou porque mostrou o rabo. Hoje, por acaso, ainda não vi o nome da "estrela" em nenhum título. Nem sei como é que estou a aguentar esta expectativa. Já roí as unhas todas, até me engasguei com o verniz! O que irá ela mostrar-nos hoje?.
O mundo anda um pouco irritado. O mundo não, as pessoas. Eu ando irritada. Talvez já se tenham apercebido disso. Pode ser por ainda ter de usar máscara, ou por não saber nadar, ou por não poder meter o meu rabo ao sol num iate de luxo. Mas há quem esteja pior do que eu. Numa dessas portagens na auto-estrada, pequena colmeia de habitáculos envidraçados de onde as pessoas mais pacientes foram a maior parte das vezes substituídas por máquinas, e talvez bem pois é um trabalho de tédio e claustrofobia, ainda que represente um honroso ganha-pão, - nem tudo nesta vida são tarefas glamorosas, agradáveis, mas alguém tem de as fazer, - havia apenas uma máquina de serviço. E então formou-se uma pequena fila, que rapidamente foi crescendo, embora o andamento da mesma me parecesse obedecer à cadência de sempre, nem mais depressa nem mais devagar. Não me apercebi que os condutores estivessem a ter problemas em fazer o pagamento, ou que a máquina estivesse em greve de zelo, mas a dado momento as buzinadelas não paravam. E, de forma quase contagiosa, multiplicavam-se exponencialmente!
A paciência é hoje uma qualidade que já quase ninguém valoriza ou sequer tem interesse em cultivar. É ainda mais rara que os heróis, que, anonimamente operam pequenos e grandes milagres nos hospitais ou nas margens de um rio, ou em qualquer outro recanto do nosso mundo onde as circunstâncias os revelem. Ninguém pode esperar, temos todos muita pressa. Já tinha pago e deixado a portagem e ainda as ouvia, as buzinadelas. Mas, afinal, aonde queriam todos ir com tanta pressa? Salvar alguém de morrer afogado?
P.S. O nome do militar é João Andrade. Notícia do Diário de Coimbra, de 23 de Julho, aqui.
Comentários