Cinema no Netflix: vi Things heard and seen /Sussurros nas trevas


Things heard and seen é uma adaptação do livro All Things Cease to Appear, de Elizabeth Brundage, publicado em 2016. O filme saíu das mãos do casal de autores do excelente American Splendor, obra sobre o cartoonista Harvey Pekar, com um actor de excepção, Paul Giamatti, cujos desempenhos muito aprecio. Em virtude dos nomes Shari Springer Berman e Robert Pulcini figurarem nos créditos da realização deste filme, que estreou no Netflix em Abril, predispus-me a vê-lo embora este tipo de cinema não seja o meu preferido. A minha embirração com filmes "de terror" deriva do facto de raramente as histórias me agradarem independentemente de nos fazerem dar saltos no sofá ou apenas de nos fazerem suspender a respiração. De aterrorizante este filme tem muito pouco, mas abundam presságios e tem um fantasma de serviço que produz as habituais manifestações sobrenaturais. É um thriller sobrenatural, com uma certa atmosfera claustrofóbica, mas algo apático. A história de um casal jovem com uma filha pequena que  troca a citadina Manhattan pelo norte de Nova Iorque, perto do rio Hudson, é sobretudo um drama familiar. Catherine, a mulher, em recuperação de um distúrbio alimentar, cristã, espiritual, é conservadora/restauradora, e o marido, bem-falante, convencido, George Claire, é professor de arte. A sua relação talvez não tivesse nunca sido excepcional, mas a mudança, impulsionada por uma escolha de carreira de George, vai contribuir para que se deteriore rapidamente e expôr o seu irreconciliável destino. Catherine, que passa demasiado tempo só, confronta-se com uma presença sobrenatural na casa escolhida pelo marido, que, de forma intrigante, apesar de assustar a sua filha, a reconforta. Outras personagens só contribuem para nos distrair um pouco da queda livre em que este matrimónio sempre se encontrou: era o final da relação que se adivinhava ao primeiro pingo de sangue. ( Há spoilers adiante!)

Por vezes um filme pode conter motivos que nos causam um agrado peculiar  - neste, o facto de reconhecer, passados 30 anos, o sorriso inalterado de Karen Allen, a Marion dos Salteadores da Arca Perdida!  - e outros capazes de despertarem o nosso interesse mesmo sem ser extraordinário. No caso último  foram as referências culturais a autores e pintores - com excepção de Caravaggio, cujo percurso e obra conheço bem - que me cativaram, pelo que fiz algumas leituras, aproveitando para partilhar aqui as minhas notas. 

O filme abre com uma citação de Emanuel Swedenborg: "This I can declare... things that are in heaven are more real than things that are in the world." Swedenborg, é (também) considerado um percursor das ideias espíritas - eu só tinha ouvido falar de Allan Kardec -  e fornece o material fundador desta história. Nunca tinha ouvido falar deste nobre sueco e fiquei surpreendida com a sua estatura intelectual. Ele foi, primeiro, um homem do saber, um cientista, e depois um grande estudioso da Bíblia, um mistico cristão. Avaliando pelo que li, Swedenborg foi sempre capaz de separar as duas esferas, a espiritual e a científica. O seu valor intelectual nunca foi questionado ou sequer diminuido. É possível que as suas ideias sobre o mundo espiritual também tenham sido mais consideradas em virtude desta sua sólida reputação. 

Swedenborg impressiona quando se lê o seu percurso de vida. Hoje um estudioso dedica-se a uma só área de saber, especializa-se. Mas Sewdenborg estudou ciências naturais, química, matemática, economia, mecânica, astronomia, geologia, paleontologia, sabia várias línguas clássicas e modernas, bem, o seu interesse pelo conhecimento não tinha fronteiras. Criou o primeiro jornal científico sueco, escreveu poemas em latim, dedicou-se ao aperfeiçoamento dos processos de mineração além de cogitar planos de submarinos e aeroplanos. De certa forma, ao ler sobre ele, lembrei-me de Leonardo da Vinci. 

Dedicou-se depois a objectivos mais delicados como, por exemplo, a comprovar cientificamente a existência da alma para o que estudou o corpo humano e o cérebro em detalhe a partir da recolha de dados de terceiros, para daí deduzir que a alma seria imortal e estaria localizada no cérebro! Após uma visão e um chamamento, Swedenborg abandonou o estudo "científico" e passou a dedicar-se apenas ao estudo teológico, a interpretação da Bíblia, que fazia com objectividade, embora o considerasse uma "revelação". On Heaven and its Wonders and Hell (from Things Heard and Seen), o livro citado no filme, em 1758, já é escrito nesta fase. Eis um excerto retirado do mesmo que encontrei no site da Swedenborg Foundation: "Heaven and Hell é uma descrição detalhada da vida após a morte com base nas próprias experiências espirituais de Swedenborg. O livro está dividido em três partes. A primeira e mais longa parte é sobre o céu, incluindo tudo, desde a estrutura do céu até detalhes sobre como ele é, como é a vida para os anjos que lá vivem e que tipo de trabalho eles fazem. A segunda parte, “O Mundo dos Espíritos”, começa com uma descrição da transição do mundo dos vivos para a vida após a morte e explica como as almas passam por um processo de educação e autodescoberta que revela seu verdadeiro eu. Se seu eu interior for fundamentalmente bom, eles irão para o céu. No entanto, se seu eu interior estiver focado na autogratificação e não tiver amor pelos outros, eles serão atraídos para o inferno. Na seção final do livro, que é sobre o próprio inferno, Swedenborg descreve os tipos de pessoas que acabam lá e compara a sociedade infernal com a sociedade celestial. Ele tem o cuidado de enfatizar que para aqueles que são maus, o inferno é o lugar onde eles se sentem mais felizes e em casa. Portanto, não é uma punição; em vez disso, é a maneira mais amorosa de Deus manter as pessoas más separadas daquelas que são boas, para que não façam mal aos outros."

Algumas das suas ideias, a crença numa morada espiritual, a existência de patamares na espiritualidade, a possibilidade de interação com os que partiram, a relação entre os dois mundos, o material e o espiritual, o exterior e o interior, etc, a afirmação de que contactava com os espíritos e que tinha visões, - que ele desincentivava terceiros de tentar pelo prejuizo que poderiam ter - tornaram-no alvo do ridículo, mas para muitos era um visionário que inspirou a criação de sociedades após a sua morte e a tradução da sua obra, volumosa, que escrevera apenas em latim. O seu pensamento teve impacto em espiritistas mas também em filósofos e até escritores: Arthur Conan Doyle referiu-se-lhe como "a maior e mais alta inteligência humana". Baudelaire, Yeats, Strindberg, William Blake, entre outros, foram inluenciados pelas suas ideias. 

Não me alonguei a ler sobre a filosofia de Swedenborg que no filme surge reduzida à ideia de que tudo o que existe no mundo natural tem correspondência no mundo espiritual, ou que a morte não é um fim mas um princípio, ou que os espíritos maus são atraídos pelas más pessoas e os bons pelas boas. Na casa para a qual Catherine se muda com o marido, duas mulheres antes dela foram assassinadas pelos seus cônjuges. A primeira foi a Sra. Smit, que o marido calvinista marcara na Bíblia como "amaldiçoada". A segunda, Ella Vayle, a mãe de dois jovens que se oferecem para auxiliar Catherine com tarefas do dia-a-dia, também foi morta pelo marido em circunstâncias bizarras. O espírito de Smit avisou Ella e o de Ella tenta avisar Catherine do perigo que corre. Mas George atrai o espírito mau de Calvin Vayle, que o encoraja a praticar o mal. Pois é, em tempos vi um filme que se chamava A casa dos espíritos. Era um título que servia melhor este filme do que "Sussurros nas trevas". É o espírito de Catherine que sussurra a Justine - sua colega na Universidade e amiga da mulher, que George persegue de carro  provocando-lhe um despiste que a deixa em coma - quando ela desperta no hospital, que o bem sempre triunfa, se não neste mundo, no próximo, e que é tempo de agir. 

Acaba por ser curioso perceber que o anel com a figura de duas mulheres esculpidas, que Catherine encontra na cozinha e que transitou de mão em mão, de época em época, de mundo em mundo, é uma espécie de símbolo da "irmandade" que passou pela casa e que ali sofreu. Duas mulheres morreram à mão dos homens sem que justiça fosse feita, mas agora Justine vai por fim ao ciclo quando contar ao xerife que George Claire é mais do que um péssimo marido: é um trapaceiro, um assassino, é, até um ladrão, um indivíduo sem qualquer escrúpulos. E é sobretudo a partir deste momento que o filme se torna mais débil talvez porque a justiça não se chega a materializar: ver George embarcar no barquinho do primo gay afogado jovem, - a quem ele roubara o diário e os seus promissores quadros, exibindo-os como seus desde sempre - e sair para um rio que progressivamente se encapela e ganha cores de tormenta não é o ajuste de contas que desejávamos, ou eu desejava. Ouvimos uma voz dizer que os portões do inferno são apenas visíveis para aqueles que estão prestes a entrar nele. 

Antes deste epílogo, aquando da visita de estudo ao The Metropolitan Museum of Art , uma das alunas de George tinha-lhe perguntado sobre uma pintura de Thomas Cole, "Voyage of Life: Manhood", uma onde um marinheiro está de pé num barco. George explica que a pintura retrata a crença do artista de que o marinheiro perdeu "a confiança da juventude", acrescentando: "Vai verificar as mãos do marinheiro. Eles não seguram o leme". Tal como o marujo,  George não consegue mais ter mão no leme do seu destino. O barco chama-se, adequadamente, "Lost Horizont", Horizonte Perdido. O fogo consome a vela do barco enquanto uma cruz invertida assinala a perdição de George. O horizonte escurece e quando a camera se afasta vemos que o céu, o rio e o barco se transformaram numa pintura e a tela até ganhou uma moldura. A arte percorre este filme do princípio ao fim. 

"Os portões do inferno são apenas visíveis para aqueles que estão prestes a entrar nele."

A pintura abre o filme e encerra-o, contribuindo para estabelecer quer a geografia onde a acção se desenrola, quer uma certa atmosfera, ou então acrescentando à história pistas de forma simbólica. A influência de Swedenborg na pintura paisagista de George Inness, cuja reprodução de  The Valley of the Shadow of Death se encontra na capa do livro ofertado pelo Diretor de Departamento da Universidade a George Claire, e que, segundo ele, mostra a partida de uma alma para o céu, é objecto de especial realce.

Thomas Cole, que gostava de pintar a natureza tempestuosa e monumental, é outro pintor citado em várias ocasiões ao longo do filme, tendo George feito uma tese sobre o mesmo. Cole é o fundador da Hudson River School, uma escola americana de pintores radicados em Nova Iorque, centrada na exaltação dos valores da paisagem natural americana e na cisão com a escola europeia de pintura. Surgiu por volta de 1850. A maioria destes pintores pertencia à Academia Nacional, muitos deles até trabalhavam no mesmo endereço, o Studio Building, na West Denth Street, o primeiro espaço de trabalho de artistas intencionalmente construído no cidade. Vários dos artistas construíram casas perto do rio Hudson e alguns pintaram cenas da zona a norte de Nova Iorque, atravessada pelo rio. Uma pintura de Frederic Edwin Church  também aparece no filme. Também ele faz parte desta escola mas a sua temática não se enquadra bem na natureza da pintura por ela prosseguida. George Inness também começou nesta escola, frequentou uma igreja de culto do teólogo sueco, que é similar ao protestante, e seguia um sistema de correspondências de cor por ele criado.

É também curioso que no meio de pinturas e pintores que exaltam a Natureza surjam de relance as reproduções de Caravaggio num livro que uma rapariga - com quem George se vai envolver de forma breve - consulta numa biblioteca quando procurava ideias para fazer tshirts. Opostamente àqueles, há pouca paisagem em Caravaggio, pouco acontece ao ar livre, seja quotidiano ou mitológico ou religioso. A sua pintura surge sobretudo no escuro e muitas das suas brilhantes encenações inspiradas em pessoas reais suas contemporaneas, nada celestiais, bastante corpóreas e pecadoras, está escondido nas sombras, tem de ser adivinhado. É, afinal, também um artista que abordou o divino e o mundano, unindo dois universos opostos. Na vida de Caravaggio há choque e violência, na tela e fora dela. É isso que George Claire encontra para dizer à jovem, com quem quer meter conversa: Caravaggio matou um homem. O seu temperamento era explosivo, a sua conduta desafiadora, de tal forma que viveu como um fugitivo parte da sua vida, negociando o seu perdão até ao fim. Nem o seu talento lhe conferiu protecção, nem um anjo da guarda ou um fantasma teve que o avisasse do perigo, talvez sempre tenha sido desafiado para o mal por algum espírito briguento: Caravaggio parece ter sido um génio fadado à autodestruição. O grande artista morreu de infecção, provavelmente provocada por ferimento de alguma briga, coroado de fama e infâmia em partes talvez iguais. É um dos meus pintores predilectos e pude ver as suas obras de perto, numa esmagadora exposição em Paris, ao contrário destas que deixo abaixo, as do filme, menos extraordinárias mas ainda assim bem interessantes! 


Thomas Cole - Voyage of Life: Manhood,1842



Frederic Edwin Church - Aurora Borealis, 1865



George Inness - Approaching Storm, 1875



Thomas Cole, The Oxbow, 1836



Thomas Cole, Kaaterskill Falls, 1826


The Valley of the Shadow of Death - George Inness,1867


Para leitura:


Emanuel von Swedenborg, a biografia

Swedenborg Foundation: a relevância de Swedenborg para o filme

Comentários