A língua portuguesa não está por um fio


Li que Marcelo Rebelo de Sousa vai a São Paulo - cidade com a maior população de falantes de português do mundo - para a re-inauguração do Museu da Língua Portuguesa. O museu brasileiro esteve encerrado desde o incêndio de Dezembro 2015, que destruiu parte da estrutura do edifício e provocou a morte de um bombeiro. Inaugurado em 2006, foram ali realizadas mais de 30 exposições temporárias, além de cursos, palestras, debates e apresentações artísticas. O Museu da Língua Portuguesa, agora renascido das cinzas, abrirá ao público a 31 de Julho. Instalado na Estação da Luz, foi um dos primeiros a homenagear a língua portuguesa no mundo mediante experiências interactivas, conteúdo audiovisual e ambientes imersivos.

Encontrei uma crónica,  O português está por um fiozinho, de Alexandre Borges, que aqui publiquei, mas que entretanto apaguei. Apesar de aqui ter replicado o texto, não tinha muita simpatia por ele. Assim, quem o quiser ler terá que o googlar. Isso mesmo: googlar. Comecei logo por reagir mal à referência que o autor fez aos "NEE". Era capaz de apostar que os erros ortográficos que aparecem em rodapé nas TV saem das mãos de pessoas sem necessidades especiais. Muito provavelmente tratar-se-ão de pessoas devidamente encanudadas e empossadas em estágios mas muito mal formadas ou então bem distraídas, por culpa não sei bem de quem, talvez delas próprias. Acredito que os deficientes em língua portuguesa são sobretudo pessoas normais, normalíssimas, como eu e o Alexandre. Desnecessário e de muito mau gosto ir buscar um grupo de pessoas que merecem ter o nosso respeito em vez de serem usadas para fins de fraca ironia.

Além disso, não acredito que o Português esteja por um fio, a não ser para efeitos da escrita desse texto que precisava de um isco para nos fazer morder e conseguiu. É como escrever que o "Planeta está por um fio". Não está. O Planeta vai continuar a girar mesmo que a Humanidade se aniquile totalmente por falta de diálogo. Tantos idiomas no mundo - mais de 6000 -  e não nos conseguimos entender. Será esse o problema? Talvez o caminho da paz passasse antes por uma única língua! Como isso não é possível, a paz no mundo será impossível. Foi ironia? Talvez. Mas entre outras coisas que me desgostaram estava mais esta: o Português não teve um parto num dia e hora marcada e por isso dizer que a língua portuguesa tem 800 anos é um pouco inventivo. É uma ideia que fez ninho no ouvido de muita gente mas o que tem 800 anos é o testamento de Afonso II, um documento escrito em "português", dos mais antigos que se conhece, e de que há uns anos se falou bastante a propósito de comemorações da nossa língua. 

O Português é uma das línguas mais faladas no mundo e não morrerá no tempo mais próximo. Mas quem sabe se num futuro intergaláctico não vem a impor-se um chinês vulgar por toda a galáxia, - o dos viajantes e mercadores chineses galácticos, - e o inglês, que no entender de Alexandre Borges colonizou o mundo, finalmente seja abafado. Os Romanos também impuseram o Latim falado pelos soldados e depois pelos colonizadores a toda a Europa conquistada. Os vários dialectos que existiam na Península foram latinizados, os seus habitantes instados a falar "à moda dos Romanos": assim é que nasceu a nossa língua no noroeste da Península, na Galécia Magna. O Português surgiu mercê  de influências do latim, castelhano, árabe, etc. Primeiro latinizados, depois, segundo o Alexandre, "inglesados" fruto da penetração da cultura estadunidense, sabe-se lá o que o futuro nos reservará! Também não gostei que, por este facto, ele entenda retirar valor à língua inglesa, com a qual aparentemente embirra, preferindo o Latim ou mesmo o francês da lingerie. Chamar ao Latim "erudito" foi um lapsus linguae: o que eu acho que ele devia querer dizer era "clássica" porque a língua inglesa pode ser tão erudita quanto o Latim e o Português. As línguas são meras  ferramentas: é o que se faz com elas é que pode ser erudito, tal como as notas musicais que tanto servem para compor sinfonias como canções pop. 

Pois eu cá aprendi a gostar de palavras novas com o Manuel Bandeira, poeta brasileiro, que tem um poema intitulado Neologismo:

Beijo pouco, falo menos ainda
Mas, invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana
Inventei, por exemplo o verbo teadorar
Intransitivo;
Teadoro, Teodora

Não podemos maltratar a língua portuguesa mas também não podemos torná-la prisioneira de um espartilho. A vitalidade de uma língua é demonstrada pela sua elasticidade. Uso "googlar" muitas vezes e assino já uma petição para essa palavrita ganhar uma entrada de dicionário se quiserem. Uma marca comercial estrangeira transformada num verbo! O que vos parece? Chocante ou adequado? Ela já consta desde 2006 no dicionário norte-americano Merriam-Webster onde "googlar" é apresentado como verbo que designa "o uso do motor de pesquisa Google para obter informação na World Wide Web. " As palavras nascem e morrem todos os dias, em especial na área da tecnologia. Há quantos anos apareceu a palavra computador? E estas: exoplaneta, probiótico, prião...E há quantos anos morreram a "tença", a "asinha", a "jorna"? O receio de que uma língua se corrompa pela introdução de palavras novas não tem sentido já que qualquer língua é produto do seu tempo, que evolui com o tempo. É um mero dicionário online, mas reparem nestes dados: "O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa passou a integrar 592 palavras novas, muitas delas associadas à covid-19 ou à área da medicina em geral. Aeromédico, antiescaras, aquarentenar, autoteste, borderline, imunotolerante, oncogenicidade, porta-máscara, salva-orelhas, uranálise ou virtópsia são alguns desses exemplos." Mas o que dizer de ter sido "postigo" a palavra mais pesquisada no primeiro trimestre deste ano no dicionário online Priberam? Talvez que se a língua portuguesa pudesse morrer seria mais depressa por falta de conhecimento dela do que por uso desmedido de anglicismos? Como é possível que tanta gente não soubesse o que é "postigo"?

O capitalismo impôs-nos a globalização e o inglês (americano) tornou-se a língua do mundo negocial. Nisto concordo com o Alexandre: o inglês é o pé de cabra que resolve tudo no mundo da comunicação dos negócios e do lucro. Mas não é a língua mais falada no mundo: antes dela o mandarim e o espanhol. Quantas vezes me revolto ao ver o uso desnecessário de uma língua estrangeira, sim, a língua inglesa, para dar colorido a uma campanha, a um anúncio, para criar uma marca ou nomear um produto. É muita falta de imaginação e muita falta de amor à nossa língua, é isso e mais, talvez muita falta de cultura geral, daquela que nos faz saber o que é um "postigo", ou mesmo de sólida preparação académica. Mas em certos círculos, em especial profissionais, e foi aí que o autor foi pescar a maioria dos termos que amealhou para escrever aquela crónica, o uso do inglês é útil e justificado, e quanto a isso, nada a opor. Se os profissionais se entendem melhor no seu ambiente, mais depressa, se até as equipas são agora tantas vezes multiculturais, o uso dessa língua e desses termos é um recurso expedito. Já não é razoável que esses profissionais, e por extensão os publicitários - que podiam ter até uma intervenção pedagógica a este respeito ao fazer a ponte com o público - ou a comunicação social, o imponham aos demais cidadãos sem procurar saber se existe uma alternativa na língua nativa, e tantas vezes procedendo como se tivéssemos a obrigação de aprender esse "jargão". Não, não temos de saber inglês. O saber não ocupa lugar, mas saber inglês não é uma regra do mundo civilizado, como por vezes até parece. 

O texto é demasiado extenso, repetitivo, - mas quem sou eu para criticar o tamanho quando frequentes vezes me alongo bem mais do que o necessário! Mais não é sinónimo de melhor, aliás, o poder de síntese na escrita é uma habilidade subvalorizada, entendida apenas pelos verdadeiros escritores. Sem dúvida que usar menos palavras para dizer o mesmo pede esforço, conhecimento e habilidade que não estão ao alcance de todos. Não estão também porque muitos duvidam do valor de uma ferramenta essencial que é a edição. Por preguiça ou falta de tempo, há, assim quem passe por inapto. 

E também é uma crónica simplista naquilo que mais facilmente se retém dela. Não nos deixemos levar pelo nacionalismo linguista e tom humorístico do autor. Muitas verdades se podem dizer a coberto de uma grande mentira, e, se essa mentira for suficientemente grande, mais depressa ela nos convence do que as verdades reunidas. E assim é, com este texto: o português não está por um fiozinho, não. É verdade que tem sido, e é, alvo de muitos atentados, mas não vai morrer, nem sequer de pé, como as árvores. Vai, isso sim, continuar a crescer e a florescer, e a dar frutos, se nós, os seus jardineiros, em vez de rirmos com o Alexandre Borges, aprendermos a amar a nossa língua como amou Camões. Não faltam por aí umas ervas daninhas a necessitarem de poda, mas as raízes da língua portuguesa são antigas demais para definhar. Não dar erros ortográficos, por exemplo, é hoje a coisa mais simples do mundo e o mais insignificante dos erros. Todos os editores de texto têm correctores ortográficos. Só dá erros quem é preguiçoso. Mais graves do que esses, e muito mais do que os anglicismos, são os descuidos sintácticos e semânticos. Mas contra tudo isto, um remédio -  promover o bom ensino e aprendizagem da língua portuguesa - e uma vacina - promover amplamente o gosto pela leitura, que não é o mesmo que promover a publicação de quaisquer livros e a sua compra. Tudo o mais serão cantigas de mal dizer.

Como já devem ter reparado, neste blogue, eu não uso o preceituado no Acordo Ortográfico, mas, profissionalmente, sou obrigada redigir dessa forma. O Acordo também foi referido no texto do Alexandre: tem os seus defensores e os seus detratores. Sempre estive do lado dos últimos. O Fernando Pessoa também se recusou a aceitar a reforma ortográfica de 1911! Embora não quisesse ser bota de elástico, quando comecei a ver palavras como "aceção, conceção", que no Brasil mantiveram a grafia antiga, deu-me uma travadinha. Não percebi bem para que servia o Acordo se as grafias continuavam a ser diferentes. As regras básicas do Acordo, para quem já esqueceu ou nunca quis saber, são a supressão das consoantes mudas c e p, mantendo-se quando são articuladas, isto teve vasta implicação; a supressão de alguns acentos, sobretudo nas palavras graves; a clarificação das regras da utilização do hífen; a revisão das regras de utilização das maiúsculas e minúsculas e o regresso das letras k, w e y.

Por ser uma frequente espectadora de espectáculos senti-me especialmente incomodada pela palavra  "espetadora" . Doravante, entre mim e os bandarilheiros não havia grande diferença. Segundo parece, a  letrinha "c" está na palavra para nos ajudar a perceber que o "e" é uma vogal aberta. Mas não é sempre assim: na palavra exactidão o "c" não abre a vogal. " O "e" e outras vogais, podem ser pronunciadas de formas diferentes, a gente sabe isso desde criança. As letrinhas são um precioso auxílio para quem não o souber mas têm excepções. Apesar delas, com o Acordo a muleta deixou de existir e sempre era uma ajuda. Nunca estudei Latim mas sei algumas locuções, mais por curiosidade em virtude de ter estudado o Direito Romano, no 1º ano da Faculdade. Ora o Português deriva maioritariamente do Latim embora se tenha ido enriquecido com outros contributos por séculos. O Acordo motivou uma ceifa na etimologia das palavras e por vezes torna-se difícil perceber qual a sua origem. Muitos criticam-no por isso. Mas isso já aconteceu antes: o meu avô tinha uma pharmacia e  era assim que escrevia, mas os meus pais já não,  e muito menos eu. Esta supressão das consoantes mudas aproxima a fala da escrita e isso parece ser uma óptima ideia, não? Afinal o que é a ortografia senão a busca da simplicidade? Não me vou adiantar sobre um tema que nem domino. O Acordo parece ter vantagens e desvantagens, ma eu nunca me debrucei a fundinho sobre o assunto, o que seria talvez mais importante que enumerar anglicismos. Quando me pedem, escrevo segundo as suas regras, quando não me é pedido, escrevo como aprendi na escola primária, ou, melhor, como a Fátima, de Braga, me ensinou pois quando cheguei à escola já sabia ler e escrever.

Eça de Queirós, que o Alexandre também refere, um escritor que viveu no - e escreveu enquanto lá se encontrava - estrangeiro, em Cuba, nos EUA, em Inglaterra, sofreu ao longo da sua vida a influência anglo-americana, e, além dela, quantas expressões e palavras francesas não utilizou. Chegou a escrever numa das suas cartas (qual e para quem já não sei) que os seus romances eram "franceses"! Do romantismo ao realismo, experimentando, inovando sem receios, ele foi acusado de estropiar a língua portuguesa, de a desnacionalizar. Além disso escrevia sobre coisas imorais. Eça foi duplamente incompreendido quer no uso que fazia da língua, quer na obra produzida, que o Brasil acarinhou logo  com muito mais entusiasmo do que Portugal: o grande Eça, foi também mais um caso de um santo da casa a não fazer milagre! 

Mas Eça foi grande defensor da sua e nossa língua, aliás, foi um seu renovador. E sempre a realidade portuguesa era que estava em foco quando escrevia um livro, mesmo longe de Portugal. Apesar de saber francês e inglês, defendia que devíamos sempre falar mal uma língua estrangeira, orgulhosamente mal, com acento, por ser na língua que reside a nossa nacionalidade. Saber uma língua estrangeira tão bem como a nacional seria sabujice! O poliglota, dizia,  nunca é um patriota pois a língua estrangeira comunica-lhe novos modos de pensar e de sentir e dessa forma apaga-se a individualidade nacional. E um homem não pode ser assim, como um pobre que veste qualquer roupa que lhe sirva... 


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