Séries no Netflix: Unorthodox e Shtisel : a vida dos judeus ultra-ortodoxos na TV


O ano passado vi Unorthodox e gostei muito dessa série. De cada vez que se discutiam séries de TV eu referia essa como uma das minhas predilectas. Todos me diziam que, se tinha gostado assim tanto, devia ver Shtisel. Os meses foram passando e só há um par de semanas é que comecei a ver a 1ª temporada da série que agora terminei. Conforme já aqui escrevi, o Netflix tem tornado possível que telespectadores do mundo inteiro vejam séries centradas em temas e origem bastante diversificados. Depois de ter sido um êxito em Israel, o Netflix disponibilizou  Shtisel em 2018. O foco destas duas séries, é realmente interessante pois trata-se de comunidades cujo modo de vida é desconhecido da maioria, até mesmo dos judeus não ortodoxos. Poderemos sempre questionar se estas séries nos estarão a dar um retrato preciso ou se as liberdades da ficção nos induzirão em ideias distorcidas, mas eu não me preocupei muito com isso.

Na série Unorthodox, o marido de Esty, - interpretada de forma magistral pela actriz Shira Haas, que em Shtiseli é Rucchama  - vem até Berlim à sua procura com um homem da confiança do rabino. Mesmo estando grávida, Esty tomou a decisão de não voltar a casa. Esty também tinha sido retirada à  sua mãe ainda muito criança, e, erradamente, ela julgava ter sido abandonada por ela, e também trocando Brooklyn por Berlim. Essa série desenrola-se sobretudo em Berlim e é uma adaptação livre da autobiografia de Deborah Feldman. O contraste entre esta série e Shtisel nota-se sobretudo ao nível da empatia que a comunidade ultra-ortodoxa suscita em nós:  em Unorthodox é mais ostensivo como uma comunidade fechada é capaz de perseguir quem recusa aderir aos seus códigos para assim garantir a sua própria sobrevivência. Quem quer deixar a comunidade é ostracizado. O facto de Esty ser seguida até Berlim não é apenas um caso de um marido comum que vai atrás da sua mulher. Os papéis dos dois sexos são estritamente definidos, os casamentos obedecem a tradições mantidas intactas há séculos. Casamentos arranjados, serão, por vezes casamentos forçados, e casamentos desejados, tornados impossíveis. Em Shtisel, duas personagens, um homem e uma mulher deixam a comunidade. O primeiro, que regressa, acaba por dizer que só queria um tempo sozinho, a segunda, percebemos que nem precisa de sair da comunidade para se sentir "perseguida". Acaba por deixar o bairro e ir viver para Londres, onde poderá ser "ela mesma". Quando, no último episódio, Esty canta no palco da escola, é um momento comovente por todas as razões, quer pela surpresa, quer pela beleza, e então resulta ainda mais absurdo pensar que existe um meio onde as mulheres são impedidas de cantar pelos homens. Em vez de resolverem eles o problema da volubilidade e da tentação, que a voz feminina supostamente provoca e encerra, impuseram às mulheres que o resolvam de forma caricata e censuradora: podem cantar mas desde que estejam longe dos homens. Haverá alguém que entenda que adultos possam pensar assim e ser considerados normais?

Se em Unorthodox não havia muitas personagens, nem desenvolvimentos, - tratava-se, afinal de uma mini-série de apenas 6 episódios - em Shtisel elas não faltam, cada uma mais interessante que a outra, e até mesmo as secundárias. A acção decorre num bairro de Jerusalém onde Aqiva Shtisel, um jovem solteiro, mora com seu pai, um rabino professor de crianças e viúvo, Shulem Shtisel. Os dois ora convivem bem ora se travam de razões: o jovem segue o coração, o pai quer que ele use a cabeça. Aquiva quer o que todos os jovens ambicionam: ser dono da sua vida, talvez ser artista, embora vá dando aulas como o pai. A sua vida parece ser comandada por outros e outras forças. A tensão entre o querer e o dever é constante.  Shulem quer casar o filho, tendo falado com um rabino casamenteiro para ele marcar os devidos encontros, mas Aqiva, um romântico, apaixonou-se por uma mulher mais velha, mãe de um dos seus alunos, divorciada duas vezes, o que parece constituir um enorme entrave. Além disso, o rapaz leva uma certa vida boémia, que não agrada ao pai que acaba de terminar o luto. 

A filha de Shulem, Giti, é uma mulher forte e determinada, que deseja manter a sua dignidade na comunidade acima de tudo. Além dos problemas conjugais que não quer se tornem conhecidos, um marido que a abandonou, que talvez ande a dar umas voltas com outras mulheres na Argentina - e que até cortou a barba e os caracóis - tem cinco filhos para criar. Zvi Arie, é o filho mais velho, um estudioso dos livros religiosos,- Israel financia os homens que se queiram dedicar ao estudo - conciliador, que por mais que tente não consegue alcançar os seus objectivos, além de não ter uma vida conjugal particularmente feliz. 

Shulem, o patriarca, de cigarro na mão e barbas imponentes, bom, não sei se é mais movido pela solidão, a mulher aparece-lhe em sonhos, se pelo estômago, que se apresenta bem proeminente, já que sempre que possível ele procura pratos quentes confecionados por mulheres divorciadas ou viúvas na vizinhança! Uma grande personagem a tempos cómica e a tempos até vingativa e desagradável, interpretada por um grande actor que esta série nos permite descobrir. Outra personagem bem interessante, embora de relativo pouco relevo, é avó Malka: com os seu 90 anos, está num lar, e desafiando os mandamentos, para grande aborrecimento de Shulem, está completamente seduzida pelas histórias proibidas das séries americanas que vê na sua televisão, até as incluindo nas suas orações . Anna Rieber, com 86 anos, faleceu em 2014 e foi substituída por outra actriz a partir da segunda temporada. Foi uma pena pois gostaria de a ver em mais cenas ao nível da que protagoniza com toda a descendência reunida na festa que a neta lhe organizou.

Em Shtisel, diferentemente do que sucede em Unorthodox, somos levados a empatizar com a  comunidade, apesar da sua identidade muito própria que vai muito além do traje e dos peiots, nome dos caracóis laterais que os homens usam e da constante récita de bençãos. O que ela nos dá a conhecer são histórias de homens e mulheres que se debatem com problemas comuns a quaisquer sociedades. O quotidiano  da ultra-ortodoxa família Shtisel, num bairro de Jerusalém, pode ser tranquilo ou sobressaltado, pois a vida não tem um plano. É a vida de todos os dias, uma pintura que começa num simples esboço e que vai depois sendo precisada nos mais ínfimos detalhes, nas relações que as pessoas estabelecem entre si, nas suas forças e debilidades, que é o foco de Shtisel, não a religião nem os conflitos que inflamam o Médio Oriente e que são, quase sempre, o tema de filmes e séries com foco naquela geografia. É o pulsar do quotidiano, por vezes mais agitado, por vezes lento,  mas sem deixar que a religião e seus ritos diários pesem demasiado na história, que nos vai permitir sentir que os Shtisel são quase como nós, apesar de muito diferentes. De certa forma Shtisel, não deixa de ser uma série intemporal no seu núcleo embora as suas particularidades ainda nos permitam olhá-la com um certo exotismo. 

Acompanhada por uma banda sonora de grande beleza, pautada por diálogos tranquilos, entrecortados com cigarradas, chás, cervejas, e temperados de pratos de comida com nomes ainda não consegui fixar, sem cenas violentas nem sexo ostensivo, com comédia e drama em equilibradas doses, assim é Shitsel. Muito boa ideia para terminar a noite de forma calma e na companhia de personagens encantadoras, ricas, subtis. Talvez por isso o inesperado êxito da série, que já vai em três temporadas. 
 

Ouvir, aqui

Leitura extra muito proveitosa, aqui. É um blogue onde a autora explica algumas coisas que suscitam a curiosidade na série, de ritos religiosos a comportamentos do dia-a-dia.

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