O assédio no espaço público e em contexto laboral




A primeira forma de assédio sexual que a mulher conhece é o assédio na rua. Ou no autocarro. Ou no metro. Quem nunca foi assediada no espaço público que se chegue à frente. Sem exageros fundamentalistas, sem querer fazer de toda a mulher vítima, quem nunca? Começa à porta das escolas, ao passar junto de prédios em obras, ou junto de cafés,  esplanadas, ou em qualquer lugar. Homens mais ou menos novos, maduros, velhos, sós, aos pares ou em grupo, desconhecidos, fazem disso o seu passatempo, importunando desde jovens a mulheres feitas. Todas crescemos a suportar olhares insistentes que incomodam, a ouvir assobios e comentários sexualizados, algumas a responder, a maioria a fingir que não era com elas, - "mulher séria não tem ouvidos" - também, mas não só, porque nos ensinaram que os homens são mesmo assim, ou que dar troco pode ser pior. Nunca demos autorização a esses homens para nos enxovalhar, nem sequer tácita, mas eles sempre acharam que podiam. Não viam onde estava o desrespeito, o incómodo, muito menos a ofensa. Éramos um alvo fácil de diversão e gozo. A culpa era nossa porque passávamos por ali, usávamos uma mini-saia, um decote, umas jeans justas; ou éramos gordas, desajeitadas, ou feias. Tanto fazia. Os machos não conseguiriam perceber a dimensão do problema, nem que lhes fizessemos um desenho. O nosso desconforto era o seu prémio. A sua satisfação ordinária, uma glória de macho triunfante. Mas se algum gay lhes dirigisse um olhar mais malicioso, que afronta: sentiam-se imediatamente violados na sua masculinidade reajindo com asco. Tudo então se tornava claro: o golpe na autoestima, a humilhação, a afronta à dignidade.

Durante anos, pouco ou nada mudava: o costume aceite como desculpa, a cultura macha que reinava, o privilégio do abuso estava de pedra e cal. Mas de repente as vozes das mulheres começaram a ser ouvidas. Água mole em pedra dura tanto malha até que fura. O costume questionava-se. A cultura era desmontada. As desculpas já não serviam. A censura da violência sexual contra as mulheres tornou-se um assunto que, pese embora as evidências, sempre alguns tentaram e tentam diminuir, menorizando as mulheres, apelidando-as de histéricas, apupando as suas queixas. Iniciativas multiplicavam-se, algumas catalogadas como absurdas: carruagens "cor-de-rosa", só para mulheres, em metros ou comboios, em vários locais do mundo, por exemplo. O que era aquilo? O retorno do tempo das classes escolares para meninos e meninas? Parecia-me um retrocesso. E, na verdade, era um retrocesso civilizacional. Como é que os homens puderam ser tão idiotas que se tenha tido de proteger as mulheres das suas investidas sexuais através de uma tão radical solução? Ah, mas apalpões não são uma agressão violenta, dizem eles. Fundamentalismos! Pois, não, são festinhas boas. Tão boas como quanto um gay vos passa a mão pelo rabo. Que tal? Imaginem receber festinhas dessas a cada vez têm de entrar num comboio ou num metro. O que eu digo é que foi triste ler essas notícias que me passavam uma mensagem desoladora: a de que não podem existir relações de amizade entre homens e mulheres já que eles não se podem conter, coitadinhos, não conseguem segurar as suas mãos, nem travar a língua. Se queríamos esse convívio tínhamos de aprender a calar. Parecia que nesses lugares já tinham desistido de mudar o comportamento masculino. Estavam a combater o medo do assédio e a incutir mais medo. Montesquieu dizia que não eram as leis que mudavam os costumes... Mas, isto?

Quando a "lei do piropo" saiu li que muitas mulheres desvalorizavam o assédio na rua. Alinhavam na crítica macha de que o piropo é inofensivo, giro até, uma coisa rica, criativa, positiva, que estávamos a limitar a liberdade de expressão e a querer uniformizar todo o comportamento humano, que o piropomotivava até a aproximação dos sexos, que havia coisas piores, que, essas sim, deviam mobilizar o legislador. Mas se eu caminho pela rua fora e tenho de mudar de passeio e de trajecto ao ver um ajuntamento de homens, por achar desagradável ouvir as suas "bocas", algo não está certo. Serei assim tão puritana? Serei uma excepção? Acaso mudam eles de passeio se têm de passar por um grupo de mulheres? 

E, quando chega a noite, quantos homens hesitam sair à rua por temer a possibilidade de violência sexual?  Quantos homens escolhem trajectos a dedo para evitar ruas escuras, percorrendo mais metros? No ano 2000 fui viver para o Porto. De noite regressava a casa de taxi. Um taxista, que passei a chamar sempre que precisava, deixava-me à porta do meu prédio e só arrancava depois de eu fechar a porta da rua. Foi iniciativa dele, eu não pedi, embora, ao usar o taxi, já me estivesse a proteger. E se não tivesse dinheiro para um taxi? E não estou a falar de sair para a "noite", para a diversão. Quantos são os homens que têm medo de sair do trabalho de noite para apanhar um transporte e regressar a casa? Ah, exagero, os homens também têm medo de ser roubados. Ahah, não é a mesma coisa. Um piropo não é um assalto físico, na sua maioria os homens nem se aproximam. Mas enviam mesnagens sexualmente sugestivas, algumas até agressivas. Vamos aceitar que isso é inócuo? Que não contribui para gerar uma apreensão nas mulheres quando têm de sair à noite? Capaz de lhe limitar os movimentos? Esse medo entranhado afasta as mulheres de ofertas de trabalho, de oportunidades de estudo, limita a sua esfera de acção. Desde pequenas somos prisioneiras do medo: crescemos a ouvir "tem cuidado". E se nos queixamos ainda podemos ouvir que foi culpa nossa, não apenas dos estranhos, mas até da nossa família: afinal, tínhamos sido avisadas e fomos-nos meter na boca do lobo...As mulheres são obrigadas a ter cuidado, os homens que continuem a reinar na sua coutada.

Vou só aqui deixar um célebre acórdão para reflexão. Leiam. Não foi um trolha que lança bocas sexuais dos andaimes sem ter a noção de que é um idiota que escreveu, foi um homem com instrução académica, um "senhor", um juiz:

Acórdão do STJ de 18 de Outubro de 1989 - BMJ nº 390: “Se é certo que se trata de crimes repugnantes que não têm qualquer justificação, a verdade é que, no caso concreto, as duas ofendidas muito contribuíram para a sua realização. Na verdade, não podemos esquecer que as duas ofendidas, raparigas novas, mas mulheres feitas, não hesitaram em vir para a estrada pedir boleia a quem passava, em plena coutada do chamado «macho ibérico». É impossível que não tenham previsto o risco que corriam; pois aqui, tal como no seu país natal, a atracção pelo sexo oposto é um dado indesmentível e, por vezes, não é fácil dominá-la. Ora, ao meterem-se as duas num automóvel justamente com dois rapazes, fizeram-no, a nosso ver, conscientes do perigo que corriam, até mesmo por estarem numa zona de turismo de fama internacional, onde abundam as turistas estrangeiras habitualmente com comportamento sexual muito mais liberal e descontraído do que a maioria das nativas.”

Em 2015, a "lei do piropo" suscitou uma avalanche de discussões sem nexo, completamente estéreis,  nas redes sociais. Pouco esclarecimento, muita confusão. O piropo de cariz sexual era crime, incluido na formulação do crime de Importunação sexual. Não se tratou de criminalizar o galanteio, mas apenas o uso de palavras ofensivas e humilhantes de teor sexual. O que então ficou previsto foi que "propostas de teor sexual", isto é, o piropo ordinário, o nojento, que provoca repulsa e humilha o seu destinatário, é crime. Esperava-se que os comentários sexistas que se ouvem nas ruas fossem punidos. Mas ainda hoje as pessoas têm dificuldade em reconhecer que um "piropo", essa trivialidade, essas "portuguesíssimas bocas", como se lê na sinopse a um livro sobre o "piropo nacional", possa ser um  crime. Leiam-se, de preferência, em voz alta as colecções disponíveis nainternet, junte-lhe linguagem corporal provocatória, que quase sempre os acompanha, e um tom de voz lascivo, imaginem-se as jovens a sair da escola e a serem brindadas com essas pérolas. No mínimo, um piropo é uma injúria, e no máximo poderá ser um crime.

O ano passado (2020) um revisor da CP disse a uma passageira que vestia um vestido decotado qualquer coisa como "Se estivesse frio as mamocas constipavam-se." O revisor ainda lhe disse que ela era uma provocadora por andar assim vestida. A mulher queixou-se às instâncias possíveis.  A queixa foi arquivada.

A tal alteração legislativa do artigo 170º do Código Penal, referente à "importunação sexual", que, passou a incluir também "formulações de propostas de teor sexual", a "lei do piropo", não tem tido a interpretação que as pessoas esperavam. Nem todos os piropos estão abrangidos, nem todos os comentários: apenas aqueles que sejam uma proposta de cariz sexual directo. Daí que o comentário do revisor da CP não tenha sido considerado um caso de assédio sexual, não há ali uma proposta, um convite, apenas um comentário. O revisor, entendeu o tribunal, pode ter ofendido a honra e consideração da vítima, mas isso não é um crime de natureza sexual. E é assim: um comentário - ou um piropo - até pode ser muito ordinário, mas se não contiver um convite de teor sexual não é crime sexual, é uma  injúria, pelo menos para o tribunal que apreciou o caso. 

Na realidade, parece que nem a autoridade policial quer saber de quem assedia verbalmente na rua : num vídeo, um homem que ligou para a esquadra, ouviu o policia perguntar "mas além dos piropos, o que é que esses homens estão a fazer (que justifique o envio de um carro patrulha). O homem em questão esteve no carro, parado no trânsito, a ver e a ouvir um grupo de homens a assediar todas as jovens e mulheres que passavam em frente ao café onde se encontravam, os piropos eram de carácter obsceno, ofensivos, do género, diz ele "fazia-te isto, fazia-te aquilo". Muito dificilmente seriam punidos, talvez o juiz acabasse por entender que nenhum estava a fazer uma proposta digna de ser levada a sério. Por estas e outras, vozes críticas pedem a definição do assédio sexual como um crime autónomo, tipificado. A  formulação da "lei do piropo" levanta questões de aplicação e só se pode esperar que os juizes façam com ela o que é esperado, eles têm essa margem.

O assédio em contexto laboral

Quando praticado em contexto laboral, o assédio sexual visa condicionar o próprio acesso ao trabalho, a sua manutenção, a obtenção de promoções profissionais, etc. Se alguém está servir-se do seu status, do seu posto ou lugar profissional para conseguir algo, se tem capacidade para influenciar a sua carreira, profissional, escolar, formativa, condicionando o seu avanço, a sua promoção, à prestação de favores sexuais, isso é assédio. Por vezes o objectivo é criar um ambiente intimidatório através dos comentários de natureza sexual, prejudicando quem está subordinado. 

Este tipo de assédio que acontece quando as pessoas passam bastante tempo juntas não é o mesmo que sucede à mulher que passa na rua e ouve um piropo. Tem a ver com a relação de desigualdade entre pessoas, homens ou mulheres, que partilham um mesmo espaço laboral ou uma instituição: são casos conhecidos o do médico e enfermeira, do chefe e secretária, ou mesmo do professor e aluna. Acontece fruto de situações de convivência onde alguém detém um qualquer ascendente ou uma posição de superioridade sobre outrém que pode usar para extrair vantagens.

Actualmente vigora uma maior informalidade nos meios laborais, e em geral, que faz esquecer as hierarquias ou torna mais fluidas as relações e relacionamentos que se estabelecem. A existência de um estatuto de desigualdade entre duas pessoas não torna de imediato as relações que se estabeleçam entre elas, profissionais e pessoais, num problema. E o assédio também acontece entre colegas, na ausência de qualquer hierarquia. Ou pode ser perpetrado por fornecedores ou clientes. O problema só acontece quando a possibilidade de dizer não a um avanço da outra parte mais poderosa pela mais fraca fica limitado, independentemente de sexos. Fica limitado porque essa parte que detém mais poder pode usá-lo de forma errada para obter o que deseja. Fica limitado porque a parte mais fraca sofre um prejuizo se não anuir. Verifica-se então um abuso. Uma coisa é o patrão convidar a secretária para irem comer sushi no novo restaurante que abriu na cidade, mesmo sabendo que ela tem namorada. Isto é socialmente inadequado, indelicado, constrangedor, criticável, questionável, etc. Outra coisa é o patrão convidar a moça e dizer-lhe que se ela não aceitar ir comer sushi com ele a promoção que ela ia obter no mês seguinte, fica adiada, ou que vai para outra funcionária. O patrão passa a de idiota social a criminoso. Se o patrão convida sem fazer exigências, recebe um não e continua a insistir, tornando-se um chato, esse comportamento também é assédio. É fácil de identificar quando não há assédio: se a secretária puder dizer não ao convite do patrão sem haver lugar a quaisquer represálias não há assédio.

Outra questão que surge constantemente é que é difícil distinguir sedução e assédio. A sedução, na sua origem, vem de seducere, que quer dizer, levar para o lado, desencaminhar. Quem seduz tem de saber persuadir para desencaminhar o outro para si. Dos seus trunfos não fará parte a intimadação, nem sequer velada. Quem seduz quer divertir-se, quer companhia, quer sexo, e, calhando, não por esta ordem. Para alcançar isso não coloca o seu objecto de desejo em situações constrangedoras, não lhe faz sentir desconforto, não deliberadamente. Procura uma adesão, voluntária. Tem consentimento para agir, ainda que ele não tenha sido declarado, expresso, as ações cúmplices de quem é seduzido, confirmam-no, permitem-lhe avançar. Esse homem não é nenhum autómato programado para a conquista sem inteligência emocional para ler na outra parte as reacções aos seus avanços. Saberá adequar-se ao que ouve, vê, saberá recuar, pausar, dar tempo, mudar de estratégia. O sedutor convence usando de sua inteligência, sentido de humor, linguagem corporal, ou recorrendo à arte da boa conversa entre outros trunfos.  Há quem diga até que a sedução não é um jogo: é uma arte. Que um jogo tem adversários e na sedução não existem adversários, tal como não existem regras escritas. O sedutor nunca conduz o seduzido a um caminho contrário aos seus interesses, apresenta-lhe um novo caminho que os dois percorrem juntos. Neste jogo não raro se troca de lugar e até se perde a noção de quem conquista quem. 

Já quem assedia vence, mas não convence. As palavras de quem assedia, as ditas e as escritas, denunciam uma intencionalidade diferente da aproximação sedutora. Os actos de quem assedia, não raramente, mostram que o sujeto não sabe parar quando vê - se é que vê - que a outra parte, desagradada, mostra desagrado ou lhe resiste. Não vê que só ele é que está retirar gozo da situação de assédio e que a outra parte, objecto da sua manipulação, se transformou em vítima. Não há reciprocidade, não há qualquer cumplicidade, não há qualquer possibilidade de troca de lugar. 

O contexto da situação é muito relevante para se distinguir entre um e outro, nunca devendo palavras e actos serem apreciadas isoladamente da circunstância vivida ente homens e mulheres.Sabemos bem que os nossos comportamentos são muitas vezes ambíguos. E que o erotismo é uma zona de cinzas, complexa, propícia a equívocos. Por isso sedução e assédio são por vezes confundidos, mas só se quisermos. 

O envolvimento de duas pessoas é um processo complexo, estão nele implicadas as suas história de vida, a sua cultura, a sua personalidade, o tempo particular em que vivem. Mas por mais ambígua que seja a vivência das manifestações da nossa sexualidade, é, parece-me, de fácil entendimento que  ter  liberdade sexual não é ter direito a importunar o outro, (assédio) e causar importunação, seja homem ou mulher. Cada um tem o direito a determinar o seu comportamento sexual, mas não a impô-lo ao outro. E quem tem mais poder (social, profissional ou físico) sabe que o tem e que pode abusar dele, e até ficar impune.

No The Guardian encontrei uma lista para os inseguros que andam por aí a dizer que "já não se pode fazer nada". Se responder que SIM a alguma destas perguntas é melhor ponderar dar um passo atrás:

- O modo como estou a avançar pode assustar ou preocupar a outra pessoa?

- Ela/Ele já deixou claro que não está interessada/o em mim?

- Será que estou a avançar depressa demais e dessa forma a arruinar qualquer hipótese de sucesso?

- Será que o meu avanço não passa de uma resposta, motivada por atracção sexual, física, a um convite nunca feito expressamente pelo outro ou outra?

- Será que o contexto em que me encontro (entrevista de trabalho, por exemplo) torna o meu avanço ofensivo ou inapropriado?

- Considerando toda a situação, será que não estou a ser um chato?

Reflexão a partir de Flirtation or sexual harassment, The Guardian

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