Do assédio dos homens ninguém fala.


Pessoas há que quando ouvem a expressão "caça às bruxas" se lembram imediatamente do Mcarthismo, da década de 50, nos EUA, quando o senador republicano imaginou milhares de comunistas infiltrados e apelou aos cidadãos patriotas para os denunciarem. Até Charlie Chaplin foi investigado. Outras pensam na perseguição das mulheres  com estranhos poderes durante a Idade Média. Agora a expressão está novamente em voga e já se estreou em Portugal. Catherine Deneuve usou o termo arrepiada com a ideia de que as denúncias que se sucederam no caso do produtor cinematográfico Weinstein suscitassem uma onda de puritanismo: a "caça às bruxas" ditaria o fim da liberdade sexual, dizia. Para esta existir o direito de importunar é necessário, assim como a liberdade para seduzir. Basicamente o que estava a contecer era que os homens estavam a ser punidos, escorraçados dos seus empregos, por terem tocado o joelho de uma mulher ou tentado roubar um beijo. Homens arrastados pela lama por terem sustentado inuendos sexuais em jantares profissionais, ou por terem enviado mensagens com carga sexual a mulheres que não estavam interessadas nisso... 

Já chego atrasada a esta polémica: finalmente O NOME! Chegou mais depressa do que imaginei. Joana Emídio Marques faz a denúncia numa postagem onde começa por referir a "vaga de actrizes e famosas" que estão a revelar o assédio nos "bastidores do mercado da fama, da ambição e do poder". A jornalista que escreve no Observador parece ter sido espicaçada pelo texto de Henrique Raposo, que os pediu no Expresso, com este título: "Minha cara Sofia Arruda, faltam nomes". (Sobre o caso de S.A. escrevi aqui, tentando, sobretudo, mostrar o porquê de tanta mulher não ser capaz de falar.) Não li, isto agora é tudo exclusivo para assinantes e se vou assinar tudo o que quero ler fico sem dinheiro para o Memofante.

Fazendo coro com ele, Joana censura as mulheres que não revelam os NOMES dos assediadores: Cassandra, escreve eladisse o nome, contraruiamente a Catarina Furtado. Diz que há "show off" à volta da Catarina Furtado. (Joana parece gostar de mitologia. Eu também: quem foi Cassandra? Sabem? Uma devota servidora de Apolo. Este apaixonou-se por ela e ensinou-lhe os segredos da profecia. Quando Cassandra se negou a dormir com o deus, ele, por vingança, lançou-lhe uma maldição: jamais alguém acreditaria nas suas profecias ou previsões. Passou a ser considerada louca pelos troianos quando os alertava para a desgraça.)

"Gostava que os jornais mostrassem o rosto das miúdas da província que eu fui, das miúdas dos subúrbios. De todas aquelas que são assediadas só pelo facto de nascerem mulheres e não apenas as "famosas" que foram vagamente assediadas. " Joana lembra que o problema é de todas as mulheres e não apenas das que estão na ribalta, mas mais uma vez insurge-se contra mulheres que afloram o problema vagamente, que não são capazes de "chamar os bois pelos nomes", ( o termo não doi usado por ela) expressão que se tornou muito popular nos últimos dias. E depois acrescenta que "Gostava que os jornais falassem ( também) dos casos de assédio que se passam dentro das redações". Se os jornais quiserem o que não faltam são casos de assédio para lhes encherem as páginas. Eles andam há anos nos panfletos e  nas brochuras das associações, mas sem NOMES. O assunto, está visto, só vende a sério se assinado.  

Refere o mito de Filomela, que vale a pena recordar, aos que não conhecem o mundo fantástico das histórias mitológicas: Filomela foi violada por seu cunhado, Tereu, rei da Trácia, casado com sua irmã, Procne. Para impedir Filomela de denunciar a violência sofrida, Tereu cortou-lhe a língua. Apesar disso, Filomela consegue contar à sua irmã o sucedido, bordando uma mensagem. Ao saber do crime do marido, Procne mata o filho do casal, Ítis, e serve sua carne a Tereu. Para escapar à perseguição de Tereu, as duas pedem auxílio aos deuses, que as transformam em pássaros. Filomela é transformada em rouxinol, sua irmã, numa andorinha e Tereu em poupa.

E depois afirma: "Se és mulher terás poucas irmãs e muitas inimigas. Se és famosa terás irmãs que vêm fazer-te eco para melhor debicarem a tua fama. Indiscutível que a sororidade é mais uma bandeira que verdade. "Depois recorre ao "toda a gente sabe" para citar um conjunto de personalidades do mundo do cinema - Manoel de Oliveira - e da literatura - Saramago, David Mourão Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, que supostamente teriam assediado mulheres e talvez até obtido favores sexuais delas. Toda a gente sabe? Eu não sei, mas acho bem possível. E agora fico a pensar que apertei a mão a um tipo que assedia mulheres! Ai! E nessa altura nem estava em voga o álcool gel. Bem, podia sempre ter sido pior. Podia ter apertado a mão ao  Gabriel Matzneff: pedófilo. Se não sabem quem é, sugiro um saltinho ao Google. Vão descobrir que a sociedade consegue ser muito cúmplice e protectora dos abusadores. Verão como há sempre alguém que insiste que Matzneff é um grande escritor e que os moralistas puritanos querem liquidar a literatura. O homem era um colecionador sexual de crianças e usava o que fazia com elas como material literário. Procurem os nomes de Francesca Gee e Vanessa Springora. É uma história inacreditável. Já devia sr capaz de encarar estas decepções como corriqueiras, mas fico sempre perplexa com a natureza humana. A gente quer sempre que aqueles que admiramos sejam perfeitos. Quanto aos nossos escritores, pois, já não estão vivos para fazerem o contraditório. Se estivessem iam dizer que não, que não se lembravam. Tudo possível, é claro. Isto é tudo um lodo muito insalubre para mim, que gosto de clareza. Mas a culpa não é da Joana, fugiu-lhe a boca para o passado, não era preciso, porque o presente mantém-se inalterado, o problema é que é anónimo. 

Por fim, Joana conta a sua história de assédio e dá o NOME: Manuel Alberto Valente. Aconteceu há 10 anos. Diz que eram amigos de Facebook e que o editor já lhe tinha enviado mensagens de teor sexual. Não disse os seus termos e nem como lhes respondeu. Isso era importante já que o Facebook não é exactamente o Tinder, o que não impede de fazer as vezes de Tinder. Eu também já tive a minha quota de pilas, que não pedi, mas que os meus "admiradores" acharam que eu merecia.  Quando ele a convida para jantar, aceita na mira de obter revelações importantes para um artigo. Achou depois que o homem o marcou para uma data em que a mulher estava ausente de propósito. Após introito cavalheiresco no restaurante, o editor vai e " tira do bolso uma caixinha de comprimidos que espalhou na palma da mão e aproximou do meu rosto e lançou: estás a ver? Não tenho aqui nenhum comprido azul. " Ela fica perplexa e ele diz: "Oh, soltou ele " não te faças de sonsa". Possivelmente já com mais de 60 anos, o editor queria dizer que ainda estava para as curvas, Joana, com metade da sua idade, devia parecer-lhe apetitosa. Só que ela estava ali para comer e não para ser comida. Para Joana aquele era um jantar de trabalho, para o editor era um engate. O que ele queria dizer é que não tomava Viagra, claro. Não creio que estivesse a fzer um role play da famosa cena do Matrix. 

A jornalista acabou por não conseguir obter a informação desejada. Ela diz que no final do jantar ele já tinha percebido que não a ia levar para a cama e que ela já tinha percebido que sem isso não havia informações que lhe tinham sido acenadas. O editor ofereceu-se para lhe dar boleia até ao carro e no momento da troca de beijos para a despedida o homem ainda achou por bem começar a tentar beijá-la na boca,  "com uma descontração que mostrava que ele deve ter feito isto centenas de vezes." ( Joana, também não é preciso exagerar!) Ela afastou-se, saiu do carro, a sentir-se humilhada, chorou, contou a amigos, queixou-se do sucedido ao então assessor de imprensa da Porto Editora, Rui Couceiro, que reconheceu "haver esse problema". Termina com um toque ao Henrique Raposo, a dizer que tem mais nomes, que talvez não dê jeito ouvir.

Depois destas revelações, o ex-editor recorreu ao Facebook para desmentir as acusações de assédio sexual feitas contra si, falsas e graves, diz ele, informando que vai agir judicialmente contra Joana Emídio Marques, evitando alongar-se a promover o "justicialismo de praça pública." Nas caixas de comentários lia-se esta pérola: "Está oficialmente aberta a caça às bruxas. Vale tudo para conseguir ascender à extremamente honrosa condição de "vítima". Então, como é? Queriam NOMES ou não queriam NOMES?

Se alguém prestou atenção ao #meetoo deve ter notado que maior que o silêncio que as mulheres guardaram durante anos sobre o assédio que sofreram, só mesmo a desconfiança quanto ao invocado pelas vítimas. Pois bem, pediam NOMES, agora têm um, mas a desmedida cautela, as reservas e dúvidas com que algumas pessoas admitem a possibilidade da história da Joana ser verídica é quase comovente. Porquê? É assim um relato tão extraordinário? Em que quadrante da galáxia? Uma das que mais me diverte é que a Joana devia ter marcado um almoço e não um jantar. Ah, era? Porquê? Ao almoço os homens são assexuados? Não há inuendos sexuais diurnos?

Não sei como é que o tribunal vai lidar com isto, mas sei que se subjacente a um encontro há uma aproximação criada no âmbito de um contacto meramente profissional, há expectativa de certas condutas de parte a parte. Já discuti uma proposta negocial no bar daquele hotel histórico que fica em St. Catarina, no Porto, não me ocorre o nome. Era suposto eu ter recusado e dito que queira antes reunir antes na pastelaria? Era suposto subirmos dali para os quartos? Era suposto eu estar alerta para fugir caso a insinuação sexual surgisse em vez de concentrada naquilo que ali me levou? Marcou-se no bar do hotel a reunião por conveniência de ambos e o assunto era trabalho. Como dizia o primeiro chefe que tive, "trabalho é trabalho, conhaque é conhaque." Ninguém é assim tão louco que invente uma história destas só para ter a experiência, sempre agradável, de ser processada judicialmente. A presunção de inocência obriga o juiz a decidir a favor do arguido sempre que, depois de examinadas todas as provas, subsista no seu espírito uma dúvida razoável sobre a verificação dos factos que respeitam àquela culpa e sua gravidade. E nem ninguém seria assim tão profissionalmente desastrado se não esperasse que a sua conduta nunca seria exposta, ou, caso exposta, considerada digna de consideração penal. Aguardemos. 

Para o fim, uma nota de rodapé. Quando uma mulher fala de assédio os homens parecem sentir-se atacados, quando, acredito, ninguém está contra eles, como dizia Deneuve, nem contra a sedução ou a liberdade sexual. Eu, pelo menos, não estou. Estou contra quem abusar, seja homem ou mulher. Nessa argumentação, alguns não resistem a desviar para eles a atenção: dizem que há homens vítimas disto e daquilo. E é verdade. Do assédio aos homens ninguém fala. Não é assunto. (E porquê? Pensem lá.) Nem eles mesmos falam disso a não ser quando surge o tema do assédio das mulheres: aí, ai, coitados dos homens, que também são alvo de doloroso assédio. E é de lamentar, pois é, já que esses desgraçados ainda estão pior do que nós: são assediados por homens e mulheres e depois envergonhados até ao tutano pela cultura masculina que lhes cobra uma vergonha infinita por terem sido vítimas. Macho e vítima são duas palavras que não ficam nada bem na mesma linha de texto. Mas um caso não exclui o outro: são as mulheres que vão na frente da lista de vítimas da violência sexual. Alguns homens até  são imaginativos. Ora leiam este comentário:

É caso para dizer que os homens se estão a deitar na cama que fizeram: se existissem mais mulheres em posições de topo seria bem mais fácil para eles "trepar" na horizontal. Sorte têm os gays e os bi. Os outros, é isto: aguenta. Tenham paciência. É preciso dar um tempo à mudança: não serão apenas as mulheres a prosperar numa cultura de igualdade e onde os ambientes organizacionais sejam mais equitativos. Enquanto esse tempo não chega,  e como são precisos dois para trepar para o topo da hierarquia, os homens preteridos sempre podem tentar um #mentoo para apelar a práticas de progressão de carreira de mérito. Que não se confundam as cabeças nem as relações: cabeça grande está para relações laborais, pequena para as outras ocasiões... simples! Ou então, se não podes vencê-las, junta-te às senhoras bem falantes: toca a seduzir o chefe! Quem lê comentários assim até pode ser levado a pensar que existem muitas mulheres no topo de carreira, e que chegam lá - e de forma rápida - a seduzir alguém pelo caminho. Já os homens, não tendo essa hipótese, é só mérito, e longo trabalho suado. Não estou a inventar nada. Juro. É que por vezes também dizem que tudo isto não passam são invenções feministas...

"O assédio sexual no local de trabalho pode assumir diferentes configurações. Contudo, verifica-se que a configuração vertical de sentido descendente assume particular relevância, sendo os/as superiores hierárquicos/as ou as chefias diretas os/as autores/as mais frequentes das situações de assédio sexual vividas em contexto laboral, quer por mulheres, quer por homens: 44,7% das mulheres alvo identificam os/as superiores hierárquicos ou os/as chefias diretas como autores e 33,3% dos homens referem o mesmo.

O assédio sexual vertical de sentido ascendente (down-top) é mais frequente entre os homens alvo (6,3%) do que entre as mulheres (1,7%), situação que não será alheia a formas de desigualdade na estruturação do mercado de trabalho e das organizações, nomeadamente, os tectos de vidro que vão impedindo o acesso das mulheres a posições de gestão e chefia no interior das organizações.


Fonte: Estudo feito em 2015: assédio sexual e moral no local de trabalho.






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